Jenna cantarola enquanto cozinha um jantarzinho rápido, Evan toca guitarra
trancafiado no quarto e Lina, na sala, assiste a um desenho animado que fala de
princesas esquecidas, com Gato adormecido em seus joelhos. A normalidade
doméstica da noite não me ajuda, ao contrário: me faz ver como estou distante dela
em meu mundo de mentiras, mistérios e segredos atrozes.
— Não está com muito apetite essa noite... — observa Jenna.
— Deve ser por causa das frituras.
— Que frituras?
— Fomos ao Gad hoje, Lina e eu.
Jenna parece surpresa.
— É mesmo? Já fazia um tempo que não iam.
— Justamente. Lina queria comer as batatas fritas do Gad. São as melhores da
cidade.
Jenna abaixa os olhos.
Evan não diz nada, como se estar sentado à mesa conosco fosse um simples
acidente do qual ele não tem culpa.
— Não precisa me explicar nada — digo. — Sair ou não sair com Gad é
problema seu. Ficamos com vontade de encontrar com ele e fomos até lá. Ponto final.
— Ouça, Alma, às vezes as coisas parecem ser de um jeito, mas depois você
acaba descobrindo que são de outro.
— Nem me diga! — exclamo sem pensar.
Ela me olha surpresa. Percebe que não estou falando por falar, mas não tem
como saber o porquê dessa reação. Leio em seus olhos o que está pensando:
impulsividade de adolescente.
Fantástico! A palavra ‚adolescência' é um enorme guarda-chuva que cobre tudo
e tudo justifica.
— Só queria dizer que entendo você — comento. Não toco no nome de Sarl.
Prefiro não pensar nele. A simples menção de seu nome faz com que me sinta
culpada e traz à memória a desagradável imagem da casa de detenção.
O tucano na base do relógio de passarinhos assovia oito horas.
Preciso ir.
— Vou sair hoje à noite, Jenna.
— Acho melhor não, Alma. Amanhã tem aula e você parece muito tensa e
cansada ultimamente. Acho que precisa de uma boa noite de sono reparador.
Com essa eu não contava.
— Volto cedo, prometo.
— E posso saber aonde precisa ir com tanta urgência?
— Prometi a Naomi que sairíamos juntas. Ela vai para a praia depois de
amanhã. Para se distrair um pouco, entende?
— Que história horrorosa, pobrezinha. Mas é por isso mesmo que fico
preocupada com você. Tem muita gente ruim por aí.
— Não sou mais uma menininha.
— Eu sei, mas vai ser sempre a minha menina. E como ela vai fazer com a
escola?
— O diretor permitiu que acompanhasse as matérias pela internet, por causa de
sua situação.
— Muito gentil da parte dele. Não pensei que fosse capaz de um gesto desses.
— Pois é, foi uma surpresa para todo mundo, sobretudo para Naomi. E então,
posso ir? Eu prometi.
— Está bem. Mas não chegue muito tarde, por favor. Não vai ter descontos
como os dela. Se não estudar, não vai aparecer nenhuma tábua de salvação, entendeu?
— Entendi, fique tranquila.
Antes de sair da sala, Evan lança mais um olhar carregado de raiva, meio
encoberto por uma coisa que parece medo.
O que será que anda imaginando? Talvez pense que vou matar alguém, já que
não tive sucesso com ele. Acha que sou uma criminosa. Se pudesse, ele me mandaria
para a prisão, de verdade. Mas não é do tipo que espiona, que faz denúncias. Parece
mais alguém que faz justiça com as próprias mãos. Resolvo ficar longe dele por
enquanto.
Olho minha imagem refletida no espelho da entrada. Não velo nada, só um
rosto qualquer, aquele que designaram para mim. Mas poderia ser outro. Minha
beleza, minha vaidade, é algo que não me pertence. Só o conteúdo desse invólucro
perfeito é meu. Minha arma é também a minha condenação, pois ninguém olha além
dela. Na realidade, ninguém me vê. Todos param nesses olhos verdes, nesses cabelos
brilhantes, nesses lábios sensuais. Para que serve tudo isso? Não para mim.
Deixo a casa como se não fosse mais voltar. Trago comigo a mochila, o caderno,
a caneta de aço, que agora são os meus amigos fiéis.
Lá fora é noite. Alguns ainda estão voltando do trabalho, outros saindo como
eu, provavelmente para se divertir em algum lugar.
♦♦♦
No ponto espero um ônibus que não quer saber de chegar. Dentro de um ano,
poderei tirar carteira, penso. Espero que não sirva para ir a lugares que podem servir
de cenário para homicídios. Dentro de um ano, ou eu existirei ainda ou os
homicídios...
Logo depois, começo a atravessar o ventre da cidade: o rio é a aorta; a estação, o
estômago; os parques, os pulmões; o hospital, o fígado. E o coração? Onde está o
coração? Talvez na parte velha, além do rio, lá onde tudo começou. Penso no
desaparecimento de Morgan naquele edifício abandonado. E em sua casa vazia.
Desço no ponto e, por um segundo, acho que vejo os dois velhinhos que me
deram informação no outro dia. Ela diz alguma coisa e ele aceita em silêncio.
Equilíbrios. Não devemos tocá-los, pois quando se rompem é muito difícil
reconstruí-los. Às vezes, impossível.
A imagem desaparece diante dos meus olhos e dá lugar ao vazio.
Ando com mais segurança agora que sei o caminho, mas não muito rápido.
Respeito o tempo, como se fosse um ritual.
Quando chego à casa, só há uma luz acesa no interior, proveniente da torre.
Aqui fora, no entanto, uma lua enorme espalha seu glacê prateado sobre todas as
coisas, inclusive sobre mim.