Fico paralisada diante dele, que me olha como se eu fosse uma aparição. Finalmente,
sem dizer uma palavra, agarra meu braço e me puxa para dentro de casa, fechando a
porta às nossas costas.
Mas nem lá dentro ele me solta.
— Está me machucando — digo, tentando ficar calma.
De repente, ele me solta, como se meu braço queimasse. Continua a me olhar,
incrédulo.
— Não sou sua filha... Meu nome é Alma — explico, esperando trazê-lo de
volta à realidade.
Sabia que ia causar algum efeito naquele homem, mas não esperava uma reação
daquelas.
— Se for brincadeira, é de péssimo gosto.
— Não, não é brincadeira. Vi a foto de sua filha numa exposição na cidade.
Fiquei muito perturbada. Somos idênticas.
Markos para de chorar, mas não de olhar para mim fixamente, como se tivesse
medo de que eu pudesse sumir no ar de uma hora para outra.
— Se não tivesse visto minha filha dentro do caixão, pensaria que era ela.
Inclino a cabeça. Posso entender como se sente.
— O que quer de mim? Por que veio aqui?
— Queria conhecer a história de Larissa.
O ar está carregado de tensão. O silêncio dura um bocado antes que Markos
comece a falar:
— Venha, vamos nos sentar. — A voz é mais suave agora. A verdade, o fato de
que não está diante de sua filha, enxugou suas lágrimas como um sopro.
Vou atrás dele. A entrada continua sem interrupção pelo mesmo ambiente
luminoso, amplo e todo de madeira, tanto o chão quanto as paredes. O ar cheira a
frutas cítricas, com uma predominância de limão, acho eu. À direita, separada do
resto por um pequeno pedaço de parede, vejo a cozinha, arrumada e cheia de
utensílios de todo tipo. Do outro lado, dois grandes sofás escuros e modernos com
algumas almofadas coloridas, dispostas com meticuloso cuidado. Duas estantes
cheias de livros que parecem arrumados milímetro a milímetro separam a sala do
corredor. Observo Markos: seu aspecto descuidado não combina nem um pouco com
a ordem que reina naquela casa.
— Quer beber alguma coisa quente?
— Sim, um café talvez.
— Não tenho café, mas posso oferecer um chá.
— Está ótimo também.
Não gosto muito de chá, mas nesse momento aceitaria qualquer coisa, desde
que fosse quente. Sinto como se as paredes fossem revestidas de placas de gelo.
Markos bota a água para ferver e pega duas xícaras numa estante pendurada na
parede. Olha para mim de vez em quando, como se quisesse ter certeza de que sou
mesmo real.
— Vem da cidade, então?
—É.
— Vai à escola? Quantos anos tem?
— Dezessete.
Ele para.
— A mesma idade de Larissa...
— Eu sei, li na internet.
— Entende que essas coincidências são incríveis para mim, não?
— Para mim também, pode acreditar.
— Vocês são idênticas, têm até a mesma idade. Só que você está viva e ela... ela
não.
— Então não vê mesmo nenhuma diferença entre nós?
Ele pensa um segundo, enquanto a chaleira começa a chiar.
— Só a voz. A dela era mais doce, mais quente. A sua, ao contrário, é... não sei,
como se viesse de longe.
Um fio ondulante de fumaça sobe das xícaras em que Markos serviu o chá. Pego
a minha. O líquido é rosa vivo e emana um forte perfume de frutas vermelhas.
— Venha.
Vou até o sofá.
— Aqui não — diz ele. — Vamos subir.
A escada fica um pouco adiante, também de madeira, sem corrimão. Três lances
e chegamos ao andar de cima. Ë um único e enorme salão, com o teto de traves
inclinadas e grandes janelas sem cortinas. Parece outro mundo comparado com o
resto da casa. Há um forte cheiro de madeira e papel no ar. As paredes estão cobertas
de fotografias de todo tipo e formato, mapas, atlas, desenhos e até tecidos coloridos
de aparência exótica. Ao redor de todo o salão, há livros empiffiados, como se fossem
colunas, elevando-se até a metade da parede. Diante da janela maior há uma mesa
com um computador branco que se destaca num mar de papéis, pastas, jornais, capas
de CD, canetas, hidrocores, velhos rolos de filme: um caos tão surrealista que é quase
perfeito. O computador está ligado. Uma foto de Larissa sorridente e feliz é o
descanso de tela. Eu nunca estou tão feliz. Essa é outra diferença entre nós.
— Aqui em cima é bem diferente — observo.
— É onde vivo agora.
Só então percebo uma espécie de cama, no fundo, feita de grandes almofadas
quadradas apoiadas no chão com outras menores por cima.
— Minha mulher fica lá embaixo. Eu não consigo. Não consigo nem olhar o
quarto de Larissa.
— Sua mulher consegue?
— Ela reagiu de uma maneira que não consegui: colocou ordem, dentro e fora
de si. Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Está tudo sempre igual. A
imobilidade lhe dá segurança, é o que a ajuda a seguir adiante. Eu, ao contrário, vivo
das lembranças confusas, que são a única forma de vida que me resta.
A dor que aquele homem carrega dentro de si é profunda, inconsolável. Por ele,
consigo sentir alguma coisa parecida com compaixão.
— ... E hoje você chegou, assim, do nada. Quando a vi, pensei que eu tinha
morrido também, que finalmente estava com minha filha. Mas você é real,
dolorosamente real.
— Sinto muito... Infelizmente, sua filha e eu temos mais uma coisa em comum,
e quando descobri isso senti o sangue congelar em minhas veias.
— O que é? — Atrás das lentes, os olhos de Markos foram atravessados por
raios de luz.
— Larissa morreu no dia 18 de setembro do ano passado, não?
Ele faz que sim com a cabeça.
— Três noites depois, fui vítima de um terrível acidente de carro, no qual duas
amigas minhas perderam a vida.
— Mas você está aqui para me contar... — diz ele, que talvez ainda desconfie
que eu possa ser um fantasma.
— Justamente, eu escapei. Sem um arranhão.
— Teve muita sorte.
— É o que todos dizem. A polícia, os médicos, todos ficaram surpresos por
causa do que aconteceu com minhas amigas.
— O que está tentando me dizer?
— Que sua filha e eu somos idênticas e fomos vítimas de um trauma violento
quase ao mesmo tempo: eu sobrevivi, ela não. É como se estivéssemos unidas pelo fio
que liga a vida à morte.
Diante de minhas palavras, Markos sentou na escrivaninha e abriu uma pasta do
computador que continha fotos. Deu um dique e apareceram os rostos de quatro
meninas sorridentes: uma delas é Larissa.
As outras devem ser as três amigas que morreram com ela naquela noite.
— Eram muito unidas. Frequentavam a mesma escola e, de noite, já estavam
juntas de novo. Faziam parte de uma espécie de clube. Você também faz parte de
algum clube?
— Não, não gosto desse tipo de coisa.
— Melhor assim. Veja como elas acabaram. Nunca terei paz por causa do que
fizeram... do que Larissa fez.
— Acha que sua filha foi responsável pela morte das outras?
— Deixaram um bilhete: ‚Nós permaneceremos sempre.' Foi ela quem
escreveu.
— Isso não quer dizer...
— Larissa era uma líder, entende? As amigas obedeciam, admiravam, imitavam
Larissa. Até nos seus erros.
Penso em mim com Naomi, Seline e Agatha. Ai, meu Deus! Será que também
somos assim?
Li um artigo na internet. Falava de maldições.
Markos me encara.
— As pessoas são estúpidas, Alma, estúpidas e cruéis — diz com uma expressão
de dar medo. — Numa cidadezinha como essa, se quatro meninas tão jovens morrem
sem um motivo razoável, todos pensam no maligno.
— No maligno?
— O diabo.
— Quer dizer que acham que as meninas estavam possuídas?
— Não. Acham, ou melhor, estão convencidos de que Larissa, só ela, estava
possuída pelo demônio, que encarnava o mal por causa de sua beleza, do fascínio que
exercia sobre os outros e que isso levou as amigas a se suicidarem com ela.
Fico paralisada. Minha cabeça pesa como se estivesse separada do corpo, que não
controlo mais. O diabo. Nunca parei para pensar se ele existe ou não, nunca acreditei
em maldições, mas só no que posso ver, nos fatos reais. No entanto, agora tudo
parece possível; agora que sinto que o mal está me cercando por todos os lados. É um
mal que tem mil rostos, mas nenhum que se possa identificar e destruir. É invisível e
cada vez mais real.
Agora entendo a reação da mulher na loja. Ela acha que sou o demônio.
— Não queria assustá-la, desculpe — diz Markos.
— Aconteceu uma coisa hoje. Entrei numa loja na cidadezinha para pedir
informações sobre seu endereço. A mulher com quem falei primeiro tentou me
convencer a não vir aqui. Depois, quando viu meu rosto, ficou como louca e começou
a gritar coisas horríveis...
— De que tipo?
— Ela me amaldiçoou.
— Não sabe como sinto por você ter passado por uma coisa dessas, mas por um
instante até eu pensei que era Larissa. Não sei como, mas pensei.
Chegou a hora de fazer a pergunta que me trouxe até aqui. Trato de fazê-la, sem
rodeios.
— Larissa era sua filha biológica?
A pergunta deixa Markos chocado.
— Claro!
— Era filha única?
— Aonde está querendo chegar, Alma? Acha que ela podia ser sua irmã gêmea?
— É, pensei nisso.
— Está enganada. Era filha única. E sempre foi, até sua morte. Talvez se
tivéssemos outra como ela... desculpe, às vezes a dor nos faz dizer bobagens.
— Abaixo os olhos, um pouco confusa. Preciso me convencer de que essa
história não passa de uma inacreditável coincidência. No entanto...
De repente, Markos abre outra foto de Larissa. Não posso acreditar no que meus
olhos veem. Não posso. Junto com os olhos, a minha boca se escancara à espera de
encontrar coragem para falar. Larissa sorri para a câmara. Usa uma camiseta preta
com decote em V e um peixe azul-esverdeado bordado na frente. Não consigo parar
de olhar para ela, porque tenho uma camiseta idêntica e porque era exatamente a que
estava usando na noite do acidente.
— O que houve?
Aponto a foto.
A camiseta...
— Era a preferida de minha filha. Foi sepultada com ela.
As palavras que procurava desaparecem como a névoa da manhã diante do
primeiro sopro de vento. Um gelo primitivo toma conta de mim.
Não sei como, não sei por quê, mas algo de horrível me liga a Larissa. Agora
tenho certeza disso.
— É melhor eu ir. Está ficando tarde — digo, olhando pela janela is sombras
das árvores se alongando sobre a casa.
— Está bem, mas... posso lhe pedir um favor antes que vá?
Tenho quase medo de ouvir o que é.
— Posso tirar uma foto sua? Minha mulher nunca vai acreditar nesse encontro.
Hesito um instante. Tirar fotografia sempre me deixou desconforrel. No final,
concordo:
— Tudo bem. Onde fico?
— Fique aí mesmo onde está.
Markos tira uma máquina de uma bolsa preta que está ao lado da escrivaninha e
aponta para mim. Por que será que me lembra uma arma?
Acerta o foco, e o anel ao redor da objetiva gira num chiado. Bate a foto. Em
seguida, olha o retrato na telinha da máquina.
— Estranho — sussurra.
— O quê?
— Não ficou boa. Os olhos estão desfocados. Se não se incomoda, vou tentar de
novo.
Volto à pose ou pelo menos tento permanecer parada na mesma posição.
Novo clique.
— Hum... Também não ficou boa. Não tem importância, deve ser algum
problema com a máquina. Pode ser o sensor sujo.
Não entendo nada de máquinas fotográficas e acredito nele, feliz com o fim do
suplício.
Descemos a escada e vamos em direção à porta. De novo, sinto o perfume
cítrico.
— É melhor colocar o chapéu. E vá direto para a estação, por favor. O pessoal
perdeu a razão e não quero que lhe aconteça nada de mau.
— Já tinha percebido. Obrigada. Pelas respostas também.
— Obrigado a você por ter me dado um sonho, mesmo que tenha sido por
alguns instantes.
Ele me abraça. Fico ali, imóvel feito uma múmia.
— É... não é mesmo a minha filha... — diz ele como se eu não estivesse lá, e
fecha a porta.
Não, infelizmente, não, penso comigo. Eu não tenho mais pai.