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O ônibus me transporta de um lugar para outro, como aquelas esteiras que carregam

as malas na área de desembarque dos aeroportos. Na sala de aula, ouço as conversas

dos colegas, mas elas não passam de pano de fundo para meus pensamentos agitados.

Aperto o bilhete com o endereço de Morgan e revejo, como se estivesse na minha

frente, a moça da foto.

O intervalo chega quase sem eu perceber. E como sou uma prisioneira aqui

dentro, decido procurar um computador para fazer uma pesquisa.

Subo correndo, dois, três degraus de cada vez. Passo pela porta da biblioteca,

esperando que esteja vazia. Por sorte, está. Vou até o único computador disponível,

meio escondido no fundo da sala. Cfrculos coloridos ganham forma e se entrelaçam

de maneira hipnótica, no fundo negro da tela.

Sento na velha cadeira de escritório forrada de tecido bege, cheia de manchas

mais escuras que lembram a cor do café e que já fazem parte do tecido.

Aperto o mouse, digito minha senha e entro na internet. O processador mastiga

bytes como uma velha locomotiva a carvão.

Os endereços de vários sites aparecem quando digito o nome do fotógrafo,

Markos. Começo a navegar por eles como se estivesse tomada por uma fúria sagrada,

alimentada pela desesperante lentidão do computador. Busco, leio, clico, até que...

— É ela! — exclamo em voz alta.

A foto da moça aparece no alto de um site amador. A mesma imagem que vi na

exposição. Eu me revejo de novo e, como da primeira vez, estremeço.

Naquele momento, alguém entra. Duas meninas. Conheço as duas, mas não são

da minha turma. Uma é morena, alta e bem bonitinha. A outra é mais baixa, menos

bonita, mas com o olhar mais agudo. Elas me cumprimentam com um meio sorriso,

que respondo sem um pingo de entusiasmo. Arrumam suas coisas numa mesa e

começam a remexer as prateleiras dos livros.

Aquela presença me incomoda, mas sei que não podem ver a tela do

computador.

Começo a ler. E logo me arrependo.

A jovem filha de Markos, Laríssa, tínha acabado de completar 17 anos na noite

em que resolveu dar cabo da própria vida, junto com três amigas. Era dia 18 de

setembro, e, quando o fotógrafo voltou da inauguração de uma exposição de suas

fotos, encontrou os corpos das quatro meninas mortas, deitadas no chão de seu

quarto. Ao lado delas, um bilhete: ‘Nós permaneceremos para sempre.’ Quatro

palavras simples e misteriosas. Misteriosas demais para quem precisa de um motivo

verdadeiro para conviver com a dor. Ao lado delas, o instrumento que usaram para

realizar seu triste propósito: alguns vidros vazios de comprimidos.

...Desde aquela noite, Markos parou de fotografar. Ele e a mulher continuam

vivendo na mesma casa, mas as coisas nunca voltaram a ser como antes. Quatro

jovens vidas destruídas sem nenhum motivo geram raiva e maldade, alimentam

maledicências, evocam maldições. E muitas histórias terríveis nasceram a partir

dessas mortes inexplicáveís. Markos nunca mais deu entrevistas nem participou de

eventos públicos.

Próximas exposições: Museu de Arte Contemporânea de...'

Suicídio?

Larissa se suicidou? Junto com três amigas?

Nós permaneceremos para sempre... o que isso quer dizer?

QUE DIABO ISSO QUER DIZER?

Ela se matou três noites antes do acidente de carro que sofri com minhas

amigas. Larissa morreu e nada aconteceu comigo. Ela procurou a morte e eu a evitei

sem nem saber como.

E somos idênticas.

Duas gotas d’água.

Duas gêmeas.

Poucos dias separam os nossos destinos.

Simples coincidência ou existe alguma ligação entre nós? Quem é esse Markos?

Onde vive?

Continuo a procurar, freneticamente, esperando encontrar mais informações

sobre o fotógrafo e sua mulher, mas é inútil. Dizem apenas que vive numa

cidadezinha pequena, nada mais.

O som do sinal me obriga a parar.

No fundo, já sabia o que me interessava, só não tinha a menor ideia do que fazer

com aquilo.

As horas seguintes transcorrem em surdina. Dois professores se alternam na

turma, explicam, perguntam. Para meus olhos e ouvidos, eles não passam de massas

indistintas de formas e sons. Só espero que acabem, que me liberem logo.

Saio junto com Naomi e Seline.

— Descobriu alguma coisa? — pergunta Naomi, que provavelmente quer parar

de pensar na audiência de amanhã.

— A respeito de quê? — pergunta Seline, curiosa.

Não sei o que responder. Se disser alguma coisa a Seline, Adam vai acabar

sabendo. E, por enquanto, não quero que saiba.

— Nada de especial...

— Estávamos falando de Morgan — diz Naomi.

O olhar de Seline passa por cima de nós. — Preciso ir...

Naomi e eu olhamos Seline correr para Adam, que espera por ela sentado numa

moto escura.

— Não sabia que ele tinha uma moto — comenta Naomi.

— Por que falou de Morgan?

— Não sei. Não devia?

Sacudo a cabeça antes que as palavras escapem de minha boca.

— O que foi feito dele? — continua ela.

— Sumiu.

— Sumiu assim, sem explicação?

Não estou com vontade de falar e me limito a concordar.

— Não acha isso estranho?

— Claro, mas... é... é meio complicado.

Naomi olha para mim, hesita e depois:

— Não quero me meter na sua vida, mas... Houve alguma coisa entre vocês?

Ela sabe que nunca tive um namorado de verdade até agora.

— Um beijo, nada mais.

— É mesmo?

— Só uma vez — minto. — Não vamos transformar isso num problema de

Estado.

— E a moça da foto?

Finalmente mudou de assunto! Queria a opinião dela sobre aquela história.

— Descobri uma coisa muito louca. Ela se suicidou!

Naomi arregala os olhos:

— Não!

— Sim! Uns dias antes do meu acidente! Talvez não signifique nada, mas com

certeza é muito estranho.

Ela fica em silêncio, os olhos fixos num ponto qualquer da calçada.

Parece que está remoendo alguma coisa. Depois, de repente, seus olhos voltam

para mim.

— Tem certeza de que não tem uma irmã gêmea?

— Uma irmã gêmea?

— Podia explicar muita coisa. Sabia que alguns gêmeos sentem, de maneira

simbiótica, certos fatos que ocorrem bem longe deles, como se adivinhassem que está

acontecendo alguma coisa?

— Como é que sabe disso?

— Minha mãe tem uma irmã gêmea. Quando minha tia quebrou a perna, quem

a encontrou foi minha mãe. Ela tinha caído da escada e não conseguia chegar até o

telefone. Mas minha mãe sentiu uma necessidade inexplicável de ir até a casa dela

naquele dia. Era como um impulso irresistível, disse ela depois. E foi assim que

conseguiu socorrer minha tia.

— Já tinha ouvido falar de uma espécie de telepatia entre gêmeos, mas pensei

que era besteira.

— No caso delas, não foi. Talvez também não seja no seu.

— Só que... se for isso mesmo, significa que uma de nós duas...

— Foi adotada.