51

— Não Nascida — repito. — Não Nascida.

— Você é uma alma que nunca conseguiu vir ao mundo como todas as outras e

que, portanto, acabou nas mãos do Leviatã, o senhor de My Land, o único pai que

conhecemos. Um pai cruel e terrível.

— Está querendo que eu acredite que sou filha... do Mal?

— Como todos nós. Somos como cristais, Alma, de uma beleza perfeita e altiva,

desejada e ao mesmo tempo inatingível. Porque é fria desprovida de sentimentos...

— Bem, mas minha mãe, Jenna... Jenna também é uma bela mulher.

— É diferente... seu fascínio tem algo de antinatural, de diabólico, que

enfeitiça, apesar de ser gélido. Nunca ficou com ninguém. Não acha estranho?

— Isso nunca me interessou, é só.

— Não é isso. Fomos educados para não sentir emoções e rejeitar as dos outros,

para sermos duros e frios, para não permitir que elas nos influenciassem, O Leviatã

nos ensinou a odiar o contato humano, o calor dos afetos. — Faz uma pausa. Em

seguida, fitando um ponto no vazio: — Não podemos querer bem a ninguém, não

sabemos amar. Aquelas palavras, pronunciadas quase em voz baixa, penetram meu

peito como flechas envenenadas. Ferem, queimam, espalham líquido de morte onde

nunca houve vida, segundo o que acabei de saber.

— E sem esses sentimentos, nossa existência não é muito mais do que uma

simples ilusão.

Mordo os lábios. É o que sempre pensei. Ilusão. Uma simples ilusão.

Morgan olha para mim.

— Está se reconhecendo em tudo que estou dizendo, não está?

— Detesto ter que admitir, mas estou — respondo, mais impassível do que

gostaria.

Lentamente, começo a entender algumas coisas.

— E por que os Masters querem nos matar? Quem são eles?

— Os Masters são caçadores, sem coração nem alma, criados pelo Leviatã com o

único objetivo de matar quem se rebela.

— Não têm vontade própria. — É a primeira vez que um dos rapazes abre a

boca.

— Exatamente, são meros executores. E por isso que são tão eficientes: não

podem conhecer a piedade.

— Nem pensam como os outros: não sentem medo — interrompe o mesmo

rapaz, Christian.

— Só querem nos matar — confirma Anel. — Separar nossa alma do corpo e

nos jogar na água.

Viro num salto.

— E como conseguem separar a alma do corpo?

É Morgan quem responde:

— Através dos olhos. Preste muita atenção naqueles olhos, Alma!

— Então... Foi assim que mataram o dono da papelaria! É por isso que os olhos

ficaram transparentes, porque o Master... arrancou sua alma!

Morgan faz que sim.

— E agem sempre do mesmo modo?

Ele suspira:

— Em geral, sim. Os Masters não andam armados, não têm a inteligência

necessária para manejar objetos complexos. Só recebem instruções muito simples do

Leviatã, como, por exemplo, jogar alguém na água, onde, mesmo que uma parte da

alma fique no lugar, seria definitivamente separada do corpo.

— E o que acontece com os nossos corpos?

— Enquanto os deles, criados pelo Leviatã, se dissolvem, os nossos continuam a

existir, mas, sem alma e sem sepultura, são condenados a vagar para sempre, sem

descanso, sem sossego. Teve uma pequena demonstração do que acontece há pouco,

quando pedi que entrasse na piscina.

— Então eu podia ter morrido?

— Se eu não tivesse tirado você de lá... Na realidade, não seria correto dizer que

estaria morta, porque nem nasceu. Apenas voltaria para My Land.

Sacudo a cabeça. Não entendo. My Land? A água?

— Ouça, Alma... My Land é um mundo só de água, de pura água E mesmo

vivendo do lado de cá, quando nos aproximamos muito dela, ficamos mais

vulneráveis ao chamado do Leviatã, que nos atrai para tentar nos colocar de volta em

suas fileiras e dominar nossas almas de novo.

— Era isso mesmo que sentia... — exclamo. — Como se alguém estivesse

tentando dobrar minha vontade para me obrigar a mergulhar. E era um poder muito

forte, convincente e hipnótico. No final, era quase... agradável.

— Era o poder do Leviatã. Ele está dentro da sua mente, é capaz de controlá-la,

obrigando você a agir de acordo com seus planos. A sensação agradável de que fala é

o aniquilamento dos sentidos. Quem não sente não sofre. E a recusa inicial representa

a sua ligação com a vida. Embora ilusória, sua vida tenta manter você longe Dele.

Longe de suas ordens.

Meu pensamento corre para a noite no ginásio.

— Então foi o Leviatã quem ordenou que matasse Evan?

— Foi.

Seguro a cabeça entre as mãos. Morgan coloca a mão em meu ombro, mas quase

não sinto.

— E o caderno, os contos que escrevo? Também são ordens do Leviatã?

— Não temos certeza. — Morgan olha para os outros. — Nenhum de nós

nunca fez nada desse tipo.

— E daí?

— Daí que achamos que é um... dom, que você é capaz de captar as ordens que

o Leviatã transmite às almas de outros Não Nascidos. Talvez seja capaz de ouvir os

fluxos de seus pensamentos... tem uma capacidade maior do que a nossa de

estabelecer contato com Ele.

— Mas... o que é Ele? E por que o chamam de Leviatã?

— Ele é o espírito maligno em estado puro, é o Mal, a escuridão, a noite, o caos,

o desespero. Reúne em si todos os horrores do mundo, pois é também o seu criador.

O Leviatã é um monstro, um dragão marinho que vive num mundo de água

venenosa. E é... seu pai.

Os outros concordam gravemente.

— Isso é demais! Não posso acreditar.

— Mas é assim. Você é sua filha e ao mesmo tempo seu instrumento. Mas isso

não quer dizer que vai continuar sendo. E por isso que resolvemos nos unir. Nós

também escapamos da rede, nos revoltamos e estamos lutando contra o nosso

destino.

— Mas como? Você mesmo não disse que Ele é onipotente?

— É verdade. Mas somos muitos, cada dia mais. E não seria a primeira vez que

os Filhos se revoltam contra o Pai.

Encaro um por um, desconsolada.

— Mas vocês são apenas quatro...

— Aqui e agora, nesse momento — rebate Morgan, com os olhos em fogo. —

Mas existem muitos Não Nascidos nessa cidade. E fora dela também. Alguns não

têm nenhuma consciência: são muito ligados ao Pai para se unirem a nós, mas outros

já estão no bom caminho. É um caminho longo e arriscado, que nos faz vacilar a cada

passo, que nos obriga a lutar o tempo todo contra a tentação de voltar atrás. Mas, no

final, é um caminho que leva à liberdade.

— Mas como, Morgan? Como, se o Leviatã nos domina, entra em nossas

mentes, nos faz agir como Ele quer e, quando nos rebelamos, envia criaturas sem

piedade, com olhos aterrorizantes, para nos matar...

— Autômatos — diz Christian.

— Monstros — sublinha Raul.

— Uma maldade estúpida injetada num invólucro que parece um corpo, mas

nada tem de humano — diz Anel. — Seus olhos são o espelho de sua natureza. Usam

luvas, chapéu e óculos porque são seres das trevas, não suportam os raios do sol, e

porque precisam se esconder.

— E como podemos detê-los?

— Do mesmo jeito que eles usam para nos matar: jogando-os na água —

explica Anel.

— São como robôs, mas feitos de carne e osso, entende? — intervém Morgan.

— São destruídos pela água e têm que ser substituídos por outros exemplares.

— Nós os chamamos de Golens — diz Raul, sombrio. Olho para Morgan, com

a cabeça latejando.

— Um deles me seguiu no parque. Quando me atacou, usei a caneta de aço para

me defender. Enfiei bem no olho. Ainda estremeço, só de pensar! Lembro que não

saiu sangue, só um líquido meio parecido, da mesma cor vermelha, porém muito

mais... ralo.

— De fato, não é sangue, é uma espécie de linfa. Sob certos aspectos, os Masters

se parecem mais com os vegetais do que com os humanos. Não precisam se alimentar

nem dormir.

— Autômatos, como eu disse.

— Fantoches — insiste Raul.

— E são muitos?

— Não sabemos precisamente quantos, mas reparamos que o número aumentou

ultimamente. Esse foi um dos motivos que me obrigaram a sumir por um tempo.

— O que fez durante esse tempo todo?

— Não estava muito longe, mas tinha que fazer uma coisa... Aqui.

— Aqui? Quer dizer que não saiu da cidade?

— Digamos que sim. Depois eu explico. É melhor ir aos poucos.

Revejo sua casa, sem o menor vestígio de sua presença, e tenho vontade de pedir

explicações, mas não na frente de todo mundo.

— E vocês? — pergunto aos outros. — Também somem e reaparecem do nada

nas suas vidas normais?

Quem responde é Raul.

— Quando você escolhe se rebelar, deixa de ser filho de alguém. Tem que

abandonar sua vida, ou melhor, a vida que o Leviatã lhe deu.

— Agora chega — interrompe Morgan. — Já disse que é melhor ir contando as

coisas aos poucos. Não podemos carregá-la com todo esse peso de uma só vez. Precisa

de tempo para entender e se habituar à nova realidade. Não queremos que acabe

como Eva... não é?

— Claro que não — diz Anel.

— Quem é Eva? — pergunto.

— Uma amiga nossa.

— Isso eu já entendi, mas o que houve com ela?

— Conto em seguida. Mas primeiro você precisa saber de uma regra

importante.

— Que regra?

— A partir de agora, é preciso que nos informe sem falta de tudo o que fizer. É

fundamental.

— Estão querendo me controlar?

— Claro que não! Mas agora que sabe quem é e conhece sua verdadeira

natureza, o risco aumenta. O Leviatã sabe de tudo, inclusive da sua rebelião, e vai

tentar atrair você de volta para Ele com mais insistência ainda.

— Faz muito tempo que os Masters estão nos meus calcanhares, bem antes que

soubesse que podia me rebelar!

— Você não sabia, é verdade, mas Ele, sim. Ele compreendeu. Percebeu que era

capaz de interferir em suas comunicações com os outros Não Nascidos e resolveu

acabar com você. Esses contos, previsões e sonhos premonitórios não faziam parte de

seus planos. Você se tornou um perigo para Ele.

Rio, nervosa.

— Precisa nos contar tudo, até as coisas que considera sem importância. Com o

tempo, vai aprender a agir e se defender sozinha, mas por precisa confiar na gente.

Estou num beco sem saída.

♦♦♦

Morgan e eu caminhamos um atrás do outro pelos corredores do aqueduto, que

já me parecem menos fantasmagóricos.

Estamos voltando para casa.

— Você praticamente ordenou que o informasse de tudo o que faço — digo a

certa altura. — Bem, tem uma coisa que precisa saber... — O barulho da água que

recomeça a correr, rápida, nos canos enferrujados acima de nós, desvia minha

atenção.

— Está ouvindo esse barulho?

— É água...

— Sei, mas para onde vai, se o aqueduto está desativado?

— Vai para o Refúgio. Serve para acionar o mecanismo da cisterna, aquela

piscina enorme que ocupa a parte central do salão. Da próxima vez que viermos aqui,

vou explicar direito como funciona.

— Sei que está fazendo isso pelo meu bem — digo, fazendo um esforço para

manter a calma —, mas é difícil ficar conhecendo a verdade aos pedaços. Tentei ligar

para o número que deixou escrito naquele origami em forma de dragão. A secretária

eletrônica respondeu. Era voz de mulher, dizendo que ela e Leo não estavam em casa.

Pensei que fossem seus pais, embora a gravação não mencionasse seu nome. Não

deixei recado, mas fui atrás do seu endereço.

— Como?

— Perguntei a Adam.

—Adam?

— Sabia que se encontravam fora da escola. Na piscina...

—Pois é, cheguei a suspeitar que ele era um Não Nascido, de modo que resolvi

fazer um teste e perguntei se queria ir comigo à piscina. Quando o vi nadar como um

peixe, tive a prova de que não era um dos nossos. Mas para não dar na vista tive que

convidá-lo para passar lá em casa. Dei meu endereço, mas ele acabou não aparecendo.

— Então não são amigos?

— Não. Não confiava nele naquela época e não confio agora. Tome muito

cuidado: ele não pode saber quem você é de jeito nenhum e menos ainda que temos

um refúgio.

— Não sou tão idiota assim.

— De agora em diante, todo cuidado é pouco... Mas termine o que estava

dizendo.

— Adam me deu seu endereço e fui à sua casa.

Ele ficou em silêncio.

Encontrei o arranha-céu onde você mora, procurei o apartamento e toquei a

campainha. Ninguém respondeu. Tentei de novo e nada. Então resolvi forçar a

fechadura.

—O quê?

— Arrombei a fechadura.

Morgan me escuta impassível, como uma estátua de gelo. Parece que o simples

fato de ter procurado por ele, apesar de sua proibição, foi suficiente para deixá-lo

furioso.

— Era uma casa muito bonita, clara, moderna, diferente do que eu pensava. E

sobretudo era uma casa deserta. Verifiquei todos os quartos e não encontrei nada que

se referisse a você. Achei estranho, mas pensei que podia descobrir alguma coisa no

seu quarto, ou melhor, no quarto que pensava que seria o seu. Mas não encontrei

nada. Não havia um quarto seu. Por que não tem nada de seu em sua casa, Morgan?

Nem um quarto!

Morgan abaixa os olhos. Quando levanta de novo, me encara: é um olhar de dar

medo.

— Não devia ter feito isso, Alma — diz lentamente, separando bem as palavras.

Parecia realmente irritado.

— Eu sei, mas...

— Alguém poderia ter visto você. Poderia até ser presa. E seria o seu fim. Os

Não Nascidos não sobrevivem em cativeiro.

— O que quer dizer?

— Preferimos a morte a ficar trancados, prisioneiros num lugar onde não

podemos ter contato com outras pessoas... onde não podemos criar o caos.

Simplesmente nos matamos.

Nós nos matamos. Claro, que beleza!

— Vi você saindo do comissariado no dia em que a polícia prendeu o cara do

parque de diversões...

— Fui até lá por causa dele.

— Cheguei a pensar que você...

— Que fui até lá para matá-lo? Ridículo. — Morgan fala num tom aborrecido,

de superioridade, como se eu fosse uma irmãzinha menor que usou e estragou um de

seus brinquedos.

— Você estava fugindo, O que poderia pensar?

— Estava tentando salvar a vida dele! Sabia que o Leviatã ia obrigá-lo a se

matar. Mas cheguei tarde demais.

— Fazia parte do grupo de vocês?

— Ainda não. Não totalmente. Estávamos começando um trabalho de

conscientização com ele, e com muitos outros também, para trazê-lo para o nosso

lado.

— E o dono da papelaria? Qual era o seu papel?

— Isso também será explicado quando chegar a hora. Agora acho que temos

outras questões a esclarecer.

— Como, por exemplo, por que a sua casa não é sua casa?

— É o preço que pagamos. Quando nós, os Não Nascidos, resolvemos nos

rebelar contra o Pai, deixamos de existir como seres humanos, até mesmo na família.

Como foi o próprio Leviatã quem nos deu essa vida e nos entregou a ela, Ele pode

tomar de volta o que deu.

— Não, espere... não estou entendendo...

— Se tentar escapar de seu poder, a vida que Ele lhe deu desaparece e sua

família esquece você, apaga sua existência da memória completamente. Como se

nunca tivesse existido.

— Mas... e as suas coisas, tudo o que fez até aquele momento?

— Fica perdido.

— Não consigo imaginar como isso pode acontecer.

— E o que somos, Alma: almas tristes que vagam ansiosas por encontrar um

corpo, para poder nascer e sentir finalmente o sabor da vida; que sentem um desejo

tão grande de viver que vendem sua única possibilidade ao Leviatã, e que são

enganadas por Ele com a promessa de ter uma vida. Porém...

— Está dizendo que se decidisse me juntar a vocês, perderia minha família? E

ninguém mais me reconheceria?

— Como disse, é o preço a pagar.

— E para quê?

— Pela liberdade. É a única coisa que conta para quem nasceu escravo como

nós.

— Nós... — Ainda não consigo acreditar que sou como eles, uma filha do Mal,

uma alma que ganhou um corpo e uma missão monstruosa na Terra.

— Mas Adam ainda se lembra de você. Todos os seus amigos lembram.

— Não é bem assim. Os primeiros a esquecer são os familiares, as pessoas que

têm uma ligação mais forte com você. Depois, pouco a pouco, os amigos e

conhecidos também começam a esquecer. Não há regras e prazos definidos. Mas

agora vamos. Sua mãe não pode perceber sua ausência.

— De que adianta, se daqui a pouco nem vai lembrar que existi?

— Nossas famílias e os humanos em geral não podem suspeitar e acima de tudo

não podem nunca, eu disse nunca, entrar em contato com nosso mundo de origem.

Se algum deles soubesse, seria uma catástrofe.

— Soubesse de quê?

— Tem algumas pessoas que estudaram... o mundo de onde viemos, My Land,

Cientistas. Alguns deles acham que se um humano tentasse passar do mundo real

para My Land, as barreiras que separam as duas realidades poderiam se romper... e as

coisas de lá poderiam se misturar com as coisas daqui.

— Misturar... como?

— É perigoso até de falar. Vou levá-la para casa. Faça como se nada tivesse

acontecido, até chegar a hora de tomar a decisão. Mas quando esse momento chegar,

terá que escolher: nós ou eles.