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A segunda campainha da escola ressoa implacável espalhando seu apito por todos os

corredores e todas as salas. As aulas vão começar, mas aqui, no laboratório de ciências

e química, não há sinal do Professor K.

Seline, Naomi e eu estamos sentadas na terceira fila. Na longa superfície da

bancada, os alambiques e provetas já estão a postos.

Finalmente, um pouco antes de a sala se transformar num circo de aviõezinhos

de papel voando de um lado para outro, de canetas transformadas em projéteis e de

apostas futebolísticas clandestinas, o professor entra na sala, ainda de casaco. Com

gestos apressados, coloca a pasta de couro na mesa, abrindo espaço entre os inúmeros

livros empilhados em cima dela.

— Bom dia a todos e desculpem o atraso. — Seu tom me parece um pouco

agitado demais.

— Bom dia — respondemos em coro.

É quando tira o casaco e o pendura no gancho que noto que sua mão está

enfaixada. Não sei por quê, mas fico chocada, talvez porque sempre tenha achado que

o professor é uma pessoa ‚delicada', por causa dos olhos e da brancura da pele...

A ideia de que possa ter se machucado, que aquele corpo que considero tão

frágil tenha perdido sangue, me parece uma verdadeira crueldade.

— Não sei quantos de vocês sabem, mas hoje é um dia muito importante para o

nosso planeta. — Vira para o quadro e escreve uma palavra em letras maiúsculas:

ÁGUA.

De novo! A água me persegue! Um desconhecido, que descobri que é um dos

assassinos que andam pela cidade, me deu um bilhete em que me aconselhava a ficar

longe desse elemento, e agora o professor resolve transformar a água no tema de sua

aula.

— Hoje é o dia mundial da água — explica o Professor K.

Não pensei que ele fosse uma dessas pessoas que caem nessa historia de dia

mundial de alguma coisa. Sempre achei que não passavam de golpes publicitários,

grandes negócios cujo único objetivo é organizar inúteis congressos em localidades

amenas para permitir que grupos de cientistas ou autodenominados especialistas

tenham férias grátis num pacote com tudo incluído.

— Esse dia não tem nenhum valor enquanto instituição. Infelizmente, por trás

de iniciativas desse tipo muitas vezes se escondem outros interesses que certamente

não têm nada a ver com o meio ambiente...

Ah, ainda bem que não me decepcionou.

— ... seu valor está no fato de que relembra a todos, mais uma vez o bem

fundamental que a água é para nós.

Não para mim, com certeza.

— Poderia começar lembrando que a água é o elemento mais presente em nossa

vida: recobre três quartos da Terra e constitui 65 por cento da massa do corpo

humano. Podemos viver sem comer por um bom período, mas não sem beber.

Alguém começa a bocejar.

— Mas todo mundo sabe disso. O que talvez não conheçam as propriedades

extraordinárias da água: a primeira delas é a memória…

— A água tem memória? — murmura Naomi.

— Não tenho ideia.

— Há muitos anos, um professor, um cientista de prestígio, tentou fazer alguns

experimentos com a água, para demonstrar que moléculas que entram em sua

composição são capazes, sob a forma de agregados chamados ‚clusters', de

memorizar a geometria das substâncias nela presentes e, portanto, de mantê-la

mesmo quando tais substâncias são dissolvidas. Obviamente, os resultados

desencadearam um mar de polêmicas que continuaram mesmo depois da morte do

cientista, que tinha caído em desgraça junto à comunidade científica, Mas o conceito

permaneceu, isto é, a possibilidade de que a água, esse fluido mágico, extremamente

adaptável e altamente solúvel, escondi uma característica que nunca foi reconhecida

em nenhum outro elemento: a memória. Outro cientista, nosso contemporâneo,

tentou até lar com a água...

Explode uma gargalhada geral. Mas eu continuo atenta e interessada. Nunca

ouvi ninguém falar da água dessa maneira. Posso vê-la todo dia saindo da torneira,

repousando no copo em cima da mesa ou escorrendo no rio da cidade, mas nunca me

perguntei nada a respeito e menos ainda se tinha uma memória das substâncias com

as quais entra em contato. Fascinante...

O Professor K ignora os risos.

— Esse cientista fez suas experiências colocando a água numa temperatura de

cinco graus centígrados abaixo de zero. Em seguida, fotografou os cristais que a

compõem antes e depois de ter pronunciado palavras más e palavras boas, observando

diferenças significativas na geometria dos cristais, em termos de maior ou menor

harmonia. Deixando de lado esses experimentos, a bem da verdade bastante

fantasiosos, podemos pelo menos refletir sobre a possibilidade de que a água

realmente tenha memória das substâncias com as quais entra em contato e de que

faça isso através dos campos eletromagnéticos que gravitam redor dos átomos.

— Desculpe, professor, mas, se fosse assim, a água poluída do planeta nunca

ficaria pura de novo — disse ‚Chapeuzinho', um colega que nunca vi sem um

chapéu enfiado na cabeça.

— Temo que sim. Por isso mesmo, temos que tentar evitar comportamentos

irresponsáveis com relação ao ambiente.

— É nisso que se baseiam os tratamentos homeopáticos?

— Isso mesmo, Naomi, a teoria diz que uma pequena quantidade de princípio

ativo diluído em muita água tem a mesma eficiência que teria se fosse tomada pura.

Isso pressupõe, evidentemente, que a água guarda esse princípio na memória e é

capaz de transmiti-lo no momento certo, quando entra em contato com outras

substâncias.

Levanto a mão. É uma das poucas vezes em que sinto necessidade de fazer uma

pergunta.

— Então, segundo o que o senhor disse, a água contida em duas garrafas

diversas não é igual?

— Não, não é. Um antigo filósofo dizia que um homem nunca se banha duas

vezes no mesmo rio, porque a água nunca é a mesma. Assim também, observou-se

que dois cristais de neve, mesmo sendo compostos de água no estado sólido, nunca

são iguais e que, quando congelados e descongelados, se recompõem com a mesma,

idêntica estrutura, sempre diferentes um do outro. Venham até aqui, um de cada

vez, e vou mostrar nesse microscópio o que estou dizendo.

Dito isso, o professor retira algumas lâminas do frigorífero do laboratório e

encaixa embaixo da lente do microscópio.

Quando chega a minha vez, fico impressionada com a beleza dos cristais. Nunca

tinha visto antes. Olho o primeiro e verifico que é diferente do segundo. Depois o

professor descongela os dois, recoloca no frigorífero e volta a pegá-los um pouco

depois. Efetivamente, parecem muito semelhantes, talvez idênticos, ao que eram

antes, mas sempre diferentes entre si.

Parece quase um passe de mágica.

Quando saio do laboratório me sinto leve e serena, como se toda aquela conversa

sobre a água tivesse me deixado num estado de tranquilidade embrionária.

A única coisa que me pergunto é: se a água representa mesmo um grande bem

para a humanidade, por que no consigo mergulhar nem na água da banheira? E por

que aquele sujeito me aconselhou a ficar longe dela? Quem dera que o Professor K

tivesse uma resposta para isso também.