Percorro mais uma vez o caminho para a casa de detenção a bordo do mesmo ônibus
e na mais fria indiferença: como a gente se habitua rápido às coisas negativas. De
acordo com o meu conto, o assassinato do escritor deveria acontecer hoje, e não sei o
que fazer a não ser perguntar a Agatha onde mora o cara da foto. Poderia procurá-lo,
conversar com ele e, quem sabe, conseguir entender alguma coisa. É, a gente
realmente adapta a tudo! E quando esse tudo vira um hábito e começa a fazer parte
de nossa vida, é porque o mal já se transformou numa banalidade diante da qual
reagimos com indiferença e o bem foi esquecido como se fosse uma coisa fora do
nosso alcance.
♦♦♦
Primeiro obstáculo: o mesmo policial de bigode ruivo informa que não poderei
me encontrar com Agatha.
— E por quê?
— Está na solitária.
— Ah, não! O que ela fez?
— Houve uma briga com uma presa e Agatha mordeu a outra moça.
— Que droga, era só o que me faltava! — reclamo.
— Sinto muito, o regulamento é muito rígido sobre certo tipo de coisas.
— E quanto tempo ela vai ficar isolada?
—Normalmente, duas semanas. Menos, se tiver bom comportamento.
— Duas semanas?
Em duas semanas posso estar morta ou trancada aqui dentro para lhe fazer
companhia, penso comigo.
— Não tem jeito de falar com ela? Talvez com uma autorização especial, sei
lá...
— Não, não tem jeito. E já fui bastante flexível com você. Sua autorização era
para um único encontro e essa já é a terceira vez que vem aqui.
Examino a carta de Sarl e descubro que ele tem razão. Suponho, portanto, que
devo me considerar uma menina de sorte. Mas, na verdade, me sinto como um
catalisador capaz de atrair todas as desgraças do planeta.
— Está certo — digo, abatida. — Acho que volto na semana que vem, então.
— Como quiser. Meu conselho é que arrume outra autorização. Essa aí já
perdeu a validade, não dá mais — diz, olhando para a minha carta amassada.
♦♦♦
Saio da casa de detenção com o humor abaixo do nível do mar. Agora só me
restam o endereço do escritor e as coisas que escrevi no caderno roxo para tentar
reconhecer a assassina e detê-la. Por que não posso ser uma simples garota de 17 anos
e passar a noite em casa diante de um filme na TV com aquele ator maravilhoso, cujo
pôster enfeita meu quarto? Talvez porque nunca tenha entendido qual é a graça de
ter a cara de um estranho me olhando na intimidade do meu quarto. E, na verdade,
continuo sem entender até hoje: já tenho um número suficiente de olhos em cima de
mim me vigiando.
Pego o primeiro ônibus que passa, não importa para onde. Só espero que as
horas que me separam da minha missão impossível passem rápido e sem dor, pelo
menos elas.
Coloco os fones e aperto o play do MP3. Deixo que ele resolva o que vou ouvir.
Não quero ter que me preocupar com isso também.
O ônibus vai para o sul, na direção do rio. Desço depois de alguns pontos. Não
tenho vontade de dividir aquele espaço tão pequeno com outras pessoas. Preciso de
ar, muito ar e todo para mim. Chego ao rio e me aproximo da margem. A cilada que
armamos contra Adam aconteceu um pouco mais acima. Parece que já se passou uma
eternidade desde aquela noite.
Fico encantada observando a superfície da água que corre sem parar. Antes da
aula do Professor K, nunca tinha pensado nela como algo digno de algum interesse.
Mas, mesmo que não queira, ela é parte de mim e do mundo em que vivo. Uma
presença misteriosa, que não sei ainda se é amiga ou inimiga. O rio hoje está
puxando para o verde-escuro, porém mais transparente que o normal graças aos
últimos dias de sol. Sento na camada de cimento que reveste as margens. Está
quente.
A música escorre dentro de meus ouvidos assim como a água no leito do rio.
Parece que estou dando adeus a essa cidade, a essa vida, o olhar carregado de
melancolia, o coração cheio de lamentos.
De repente, noto alguma coisa sendo arrastada pela corrente. Levanto num
salto. Parece um cão, pequeno, talvez um filhote. Tem o pelo marrom-claro, e às
vezes se confunde com a água, surgindo e desaparecendo entre as ondas e os reflexos
da luz do sol sobre o rio. Ele tenta desesperadamente nadar, mantendo a cabeça fora
d’água. Olho ao redor procurando angustiada algum barco onde eu possa subir para
tentar pegá-lo, mas não vejo nada. Estou pronta para mergulhar e enfrentar o rio.
Mas como? ‚Fique longe da água', martelam as palavras do tal bilhete. Mas quero
salvar o cãozinho! E o escritor!
Quando viro para verificar onde ele está agora, vejo que o animal sumiu. Espero
para ver se ressurge um pouco mais abaixo. Nada. Então me convenço de que foi
uma alucinação, que o filhote só existiu mesmo na minha fantasia. Uma ilusão da
minha mente para me obrigar a mergulhar naquelas águas geladas que querem me
prender, me puxar para baixo, tomar posse de mim, para sempre.