Normalidade. Isso significa ir à escola, fazer de conta que ouve com atenção as
conversas dos colegas, as aulas dos professores, quando na verdade você está pensando
numa casinha amarela, ou no Velho Aqueduto, ou ainda em seu Refúgio
subterrâneo. Essa é a minha normalidade. E a sua?
Na saída da escola, meu olhar cruza com o de Adam, distante e observador,
como se tivesse decidido que pertenço a um mundo que não tem nada a ver com ele.
Mas também noto algo triste em seu olhar que me faz pensar que, no fundo, ele se
importa comigo.
Imagino o que deve ter pensado quando viu a encenação daquela sessão espírita.
E sinto uma pontinha de remorso por tê-lo enganado. Mas, na verdade, é melhor
para ele. Adam tem uma possibilidade de salvação. E eu ainda preciso conquistar a
minha.
Com esse pensamento pregado no meio da testa como um lampião, sigo para o
aqueduto a pé. Estou tranquila, sei que Adam não vai mais me seguir. Depois de
tudo o que viu, deve achar que sou uma pobre imbecil e que não vale a pena perder
tempo comigo. É muito provável que eu também faça o mesmo.
Ao longo do caminho, olho para trás umas poucas vezes, só por segurança. A
partir de agora, preciso olhar para a frente, para My Land.
Quando chego ao Refúgio, já estou preparada para ouvir a bronca de Morgan
por ter aparecido sem ter sido chamada, mas logo noto que a reunião que estou
interrompendo tem problemas muito mais urgentes para resolver, O Professor K está
no meio dos outros como se estivesse fazendo um sermão.
Assim que me veem, todos se calam.
— O que houve? — pergunto. — Algum problema?
O professor sorri para mim.
— Não. Venha até aqui, Alma.
Obedeço sem abaixar os olhos.
— O assassino está num local seguro — diz Morgan.
— Onde?
— Nós o colocamos na área de quarentena — especifica o professor, como se eu
tivesse obrigação de saber do que se trata.
Morgan se sente obrigado a acrescentar alguma coisa:
— Para sua própria segurança, é melhor que não saiba de tudo, pelo menos por
enquanto. Só precisa saber que aquele sujeito não vai mais fazer mal a ninguém.
Agora está sob vigilância.
— Mas eu precisava falar com ele, saber por que me deu aquele bilhete e o que
deseja de mim.
— Isso é impossível.
— Morgan, não pode simplesmente...
— Pode sim! — interrompe secamente o professor.
— De qualquer maneira, temos problemas mais urgentes para resolver, nem
tudo gira em torno de você e de seu bilhetinho, — acrescenta Anel, gélida.
— Que problemas?
— Problemas em My Land.
Sacudo a cabeça com raiva.
— Vocês continuam a falar de My Land, mas eu não sei nem onde isso fica!
Morgan começa a olhar para o piso de ladrilhos.
— Embaixo de você. Em toda parte, embaixo de seus pés. Você caminha em
cima dela todo dia, como todos nós, e My Land está sempre lá, nas profundezas da
terra, onde ninguém ousa se aventurar. É um lugar escuro, inundado pela água em
que as almas flutuam como num líquido amniótico. My Land é seu ventre materno e
o Leviatã é seu Pai.
Todas as perguntas que estavam para explodir na minha garganta recuaram
diante das palavras de Morgan. O tom solene com que as pronunciou me assusta.
— Morgan, Raul, vocês precisam se preparar. — A voz do professor é forte e
segura.
— Preparar para quê?
— Vamos a My Land — responde Morgan, sem expressão.
— Mas... para fazer o quê? — balbucio. — Não entendo.
— Vou explicar da maneira mais simples... Você está em contato com a mente
dos Não Nascidos na Terra. Anel, ao contrário, ouve as ordens dadas às almas que
estão em My Land. O Leviatã está preparando uma verdadeira avalanche de chegadas
à Terra e estamos muito preocupados.
— E o que pretendem fazer?
— Vamos tentar libertar algumas almas.
— Mas como?
—Imagine um ímã colocado perto do metal. Se conseguirmos afastar os
elementos mais distantes... o ímã não vai conseguir atraí-los.
Continuo sem entender nada.
Fico olhando Morgan e Raul se aproximarem da beira da piscina.
Mais uma vez ouço aquele rumor mecânico, que hoje parece um rugido
desesperado que invade a sala inteira.
O nível da água da piscina começa a descer, descobrindo as paredes esverdeadas
e cobertas de podridão. A câmara de transição aparece.
Os olhos de Morgan e Raul parecem hipnotizados por ela e refletem uma luz
estranha, como uma chama sagrada.
— Já podem descer — diz o professor.
Apoiando-se no corrimão da escada de aço, eles descem, seguidos pelo Professor
K.
Os três entram na câmara e fecham a porta às suas costas.
— Como é que os dois vão poder viajar se só tem uma cama na cabine? —
observo.
— É só para Raul. Morgan já consegue viajar sentado. Seu corpo se habituou e
não se rebela mais ao sentir a alma se separando — explica Christian.
— Ah... então normalmente o corpo se rebela?
— Claro — rebate Anel, como se estivesse dizendo a coisa mais óbvia desse
mundo. — Um corpo sem alma não é nada; portanto, ele se agarra a ela até por uma
questão de sobrevivência, não quer deixá-la partir. Luta e se debate contra o veneno
que o professor injeta em suas veias. Olhando de fora, parece uma pessoa possuída
pelo demônio. Já viu um endemoniado, Alma?
— Não... quer dizer, acho que não.
— Quando o demônio toma posse de alguém, ele é muito violento, ataca e
agride até dominar a pessoa. E continua até que fique manso como um carneirinho.
— Por que está sempre tentando me assustar? — pergunto à queima-roupa.
— Porque um dia você vai estar naquela cama, se batendo feito uma doida,
sentindo a vida se paralisar lentamente em suas veias.
— Chega, Anel! — interrompe Christian. — Dessa vez ela tem razão!
Anel cala a boca, mas sua expressão deixa claro que as coisas entre nós não
acabam por aqui.
Por que será que me odeia tanto?
Depois de alguns minutos vejo o professor sair e fechar a porta.
Sobe a escada rapidamente e volta à cabine. Com a caneta de aço, ACiona a
alavanca da água mais uma vez e a cisterna volta a encher.
— Agora só nos resta esperar — diz ele.
Prefiro não fazer mais perguntas.
Começo a achar que as palavras também têm um poder obscuro, o poder de
criar coisas, de dar vida a situações. Portanto, digo a mim mesma que é melhor não
falar na possibilidade de Morgan e Raul não voltarem, pois assim eles correrão menos
riscos.
Quem sabe não falar no Leviatã, não pronunciar seu nome, possa ajudar a
destruí-lo...
Mas, por outro lado, o melhor truque do diabo é fazer todo mundo acreditar
que ele não existe.