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O Velho Aqueduto aparece hoje em toda a plenitude de sua desolação. Sob uma

cobertura cinzenta de nuvens altas e compactas como a tela de uma televisão antiga,

o edifício de tijolos não é muito mais do que um esqueleto arquitetônico.

Esta manhã, antes de sair, coloquei a echarpe vermelha. Ela ficou amarrada em

meu pescoço como o fio desenhado por Lina, mas Morgan não apareceu. E agora não

tenho outra escolha senão desobedecer às ordens que me deu. Preciso entrar no

Refúgio para contar o que aconteceu ontem. Bem, na verdade, foi ele quem pediu

que o mantivesse informado.

Durante todo o caminho prestei atenção para que ninguém me seguisse. Vi que

Adam teve que ficar na escola depois do horário para cumprir algumas tarefas que o

querido Scrooge arranjou para ele. Acho que vai ficar um bom tempo por lá.

Os Masters parecem ter desaparecido da vizinhança há alguns dias.

Empurro a porta de madeira, ou o que resta dela, e penetro no prédio.

A luz do dia guia meus passos ao longo das duas primeiras salas. Em seguida,

desço a escada correndo, enfrentando com coragem a primeira escuridão. Só quero

que os degraus acabem o mais rápido possível. Quando chego ao primeiro corredor,

paro e tento me concentrar. Ficar perdida aqui dentro seria o fim. Caminho

lentamente, acompanhada pelo zumbido das luzes fluorescentes ao fundo. Os

corredores parecem todos iguais, mas não são. Quando encontro o caminho

percorrido pelos canos enferrujados, vejo que estou no rumo certo e dou um suspiro

de alívio. Não ouço barulho de água, nem de motores ou bombas hidráulicas, só a

minha respiração acompanhando meus passos.

Depois, de repente, ouço um som agudo: parecem gritos distantes, abafados

pelas paredes das salas, cujos tons se misturam numa coisa que lembra o canto

dilacerante das sereias. Nunca tinha ouvido esses gritos antes e não imagino de onde

podem vir. Mas assim como surgiram eles somem, como se as vozes tivessem se

afogado em seu próprio lamento. E aquele silêncio pesado e surdo cai sobre mim

como um manto. Preciso chegar logo à porta do Refúgio, ficar sozinha naquele

labirinto me enlouquece. Lá está ela, finalmente! Pego a caneta e enfio na fechadura.

Giro 180 graus e a porta abre. Estou dentro. Nenhuma voz, nenhum sinal de vida.

A cisterna me recebe com sua calma líquida e inquietante.

— Onde está todo mundo? — pergunto a mim mesma em voz baixa.

Vou até a sala das camas. Talvez Morgan esteja lá. A porta está entreaberta,

acho que é um bom sinal. Empurro muito de leve e enfio a cabeça para dentro. Está

escuro, mas o raio de luz que vem das minhas costas ilumina uma fatia do interior,

revelando a presença de um par de pernas abandonadas sobre uma das camas. Abro

um pouco mais e vejo que aquelas pernas vão dar no corpo de Morgan, deitado de

lado com o rosto virado para a parede.

Está dormindo.

Queria me afastar sem acordá-lo, mas assim que dou um passo atrás, ouço as

molas da cama rangerem e ele surge à minha frente.

Está simplesmente lindo, apesar de expressão dura que marca seu rosto.

— Você me desobedeceu.

— Eu sei, mas é uma emergência, porque...

— Disse que não viesse aqui sem que eu chamasse. Nunca.

— Está vendo isso aqui? — digo, batendo com a echarpe em sua cara. — Estou

com ela, como combinamos, mas você não apareceu. E tenho uma coisa para lhe

dizer. Não tive escolha.

— Foi uma noite longa e difícil. Tinha que descansar.

— A minha também foi, ora, e aqui estou para contar o que houve. Se não

estiver irritado demais para me dar ouvidos, claro!

Eu mesma me surpreendo com a determinação com que o enfrento. Estou

cansada de viver com medo de tudo e de todos, para mim chega! Resolvo reagir.

— Estou ouvindo — diz ele, a boca relaxada e o olhar suave de quem está

disposto a ouvir.

— Ontem à noite, bem no meio do meu sono, sem me dar conta, coloquei umas

coisas na mochila e saí de casa. Não lembro para onde fui, mas sei que tinha um

objetivo preciso, uma missão a cumprir. Não ouvia nada a meu redor, olhava

unicamente para a rua. Cheguei à Ponte de Ferro e parei para observar o rio. A água

me atraía como se fosse um ímã, tanto que só desejava pular lá dentro, mergulhar e

deixar que me tirasse a vida. Botei as mãos no parapeito e senti o ferro gelado em

minha pele. Era agradável.

Morgan me olha com o rosto contraído como uma máscara de preocupação.

— Foi então que Adam me deteve. Fiquei surpresa ao vê-lo ali, mas não tinha

plena consciência do que estava acontecendo. Um estado de semiconsciência filtrava

minhas sensações e as devolvia completamente enevoadas. Adam parecia preocupado,

na verdade assustado com alguma coisa que eu tinha na mão. Pediu que eu lhe

entregasse. Só então percebi que estava com um facão na mão. Estava passeando pela

cidade armada com um facão, no meio da noite! E isso não é tudo. Na minha

mochila, encontrei pregos, cordas e um martelo. E quem colocou tudo lá dentro fui

eu!

Escreveu alguma coisa no caderno?

— Não, já verifiquei.

— Talvez o Leviatã quisesse obrigá-la a sair de casa, a ir até o rio...

— Para me obrigar a pular?

— Pode ser. E Adam? Viu o facão e todo o resto?

— Isso e, infelizmente, mais alguma coisa. Descobri que está me seguindo. E

que sabe da existência desse lugar.

Morgan não diz uma palavra.

— Perguntou o que tenho para fazer aqui.

— Isso não é nada bom — comenta ele com um ar solene que me assusta. — O

imbecil está apaixonado por você!

Fico olhando para ele de boca aberta.

— Imagine, que bobagem!

— Pois é o que penso, e acho que temos um problemão.

— O que quer dizer com isso?

— Que se continuar desse jeito, não vai acabar nada bem.

Morgan tem o tom frio de um soldado que segue um protocolo: a cada ação

corresponde uma reação.

— Só queria avisar. E dizer que vou dar um jeito de mantê-lo longe daqui. Eu

lhe devo isso.

— Você não lhe deve porcaria nenhuma. Fique longe dele e ele ficará longe de

você. É uma regra muito simples.

— E se suas regras não funcionarem dessa vez?

Nesse caso, eu darei um jeito.

— Não está pensando em fazer alguma coisa contra ele!

— Trate apenas de não deixar que ele se meta.

Abaixo o olhar e depois olho em volta.

— Onde estão os outros?

— Em casa, exceto Raul. Saiu, queria pegar um pouco de ar. Como disse, foi

uma longa noite. É o que eu devia fazer também. Quer vir comigo? — Parece

relaxado de novo. Suas feições, agora sem a raiva e a tensão de antes, voltaram a ser

suaves e harmoniosas.

Caminhamos ao longo do corredor. No caminho, tenho uma ideia.

— E se fizéssemos exatamente o contrário com Adam? Em vez de tentar afastá-

lo, podíamos lhe mostrar o aqueduto.

— Ficou maluca? Nem pensar!

— Não aqui, no andar de cima. Podíamos encenar alguma coisa. Algo que

justifique minhas vindas aqui de vez em quando. Se pensar que sabe o que fazemos

aqui, vai ficar convencido de que está tudo bem e vai ficar na dele.

— Qual é o seu plano?

— Uma sessão espírita, por exemplo.

Ele pensa um pouco.

— Pode dar certo — diz em seguida. — Mas para ter credibilidade todo

mundo tem que participar, e não gosto da ideia de que nos veja juntos. É muito

arriscado.

— Não vai conseguir distinguir os rostos, no escuro. Basta que me reconheça, e

talvez você também. Quem sabe a gente não se beija; se pensar que estamos juntos,

vai perceber que não tem a menor chance, se é que está mesmo apaixonado.

— Beijar como? Assim? — pergunta ele, olhando para mim de um jeito

estranho. Passa o braço pela minha cintura e me aperta contra o seu corpo. Com a

outra mão, acaricia meu rosto com decisão. E, com seus lábios nos meus, sua língua

abre caminho em minha boca à procura da minha. Ninguém tinha me beijado assim

antes. Mas o que sinto é esquisito, como se aquilo fosse um ‚dever', não uma coisa

espontânea, e ele estivesse interpretando um papel de maneira quase mecânica, sem

ter estudado o texto direito.

Ele me guia pelo corredor. Dobramos algumas esquinas e chegamos a outros

corredores e, finalmente, a uma nova porta. Além dela, vejo um quartinho com

alguns colchonetes empilhados no chão. Morgan acende a luz. É pequena e fraca,

pouco mais que uma vela presa na parede. Ele me beija novamente, no pescoço

também, e me deita no colchão.

— O que está fazendo? — pergunto num sussurro. — Os Não Nascidos não

sentem emoções, lembra?

— Quero tentar descobri-las junto com você, se quiser.

Não respondo, mas também não resisto. Ele está em cima de mim, sinto o peso

de seu corpo. Nenhum cheiro. E seus beijos também não têm sabor. Tira minha

jaqueta e desenrola a echarpe. Suas mãos me apalpam por baixo do moletom,

explorando avidamente. É uma sensação estranha, como se aquele corpo não fosse

meu de verdade, como se deixasse ele continuar porque o que ele toca não me

pertence de fato.

Permito que tire o moletom, depois a camiseta e o sutiã. Não para de beijar

cada centímetro de pele nua. Faz isso com método. E não sinto calor algum. Tira a

camiseta e aperta o corpo contra o meu. Ele também está nu, pele contra pele. Somos

frios. Quando sua mão desce para o meu jeans, sinto seus dedos abrirem o botão e

deslizarem abaixando o fecho. Não sei o que pensar, nunca fiz isso. Não deveria

pensar. Ele não para, toca o elástico da minha calcinha, brinca um instante com ele

antes que seus dedos toquem em mim.

Posso sentir sua excitação, cada vez mais forte e evidente, que me deseja, que

me assusta.

De repente recuo, puxo o fecho da calça e enfio o moletom.

— Não consigo. Não sinto o que deveria sentir... não sei, não quero. Não é uma

matéria da escola, Morgan!

Ele parece decepcionado, mas depois sorri.

— Não tem importância. Vai precisar de tempo para se habituar.

— Habituar a quê?

— Às emoções, a senti-las e vivê-las. É um longo caminho, Alma, que também

estou percorrendo. Todos nós temos que aprender a senti -las cada um no seu ritmo.

Meio tonta, eu me sinto frustrada por não ser como todas as outras meninas.

Tenho amigas que dariam a mão direita para fazer amor com Morgan e eu sinto

apenas um medo enorme.

Vamos passear fora do Refúgio, conversando bobagens, talvez porque nenhum

dos dois tenha vontade de pensar no que aconteceu naquele quartinho.

Nenhuma emoção.

Exceto o medo.

Só agora começo a entender o que significa realmente ser uma Não Nascida.