Procuro um modo de pegar no sono, mas acho que não vou dormir hoje. Gato, ainda
mais acordado do que eu, me observa com seus olhos enormes.
— O que devo fazer, Gato? — pergunto em voz alta.
Ele me encara, solene, fazendo pose de estátua de porcelana.
Bem diferente das encarnações de deuses e profetas!
— Não me diga que é implicante como a sua dona, Agatha, e simplesmente
não está com vontade de ajudar!
Devo estar ficando mesmo louca para fazer perguntas a uma bola de pelos com
quatro patas.
Um silêncio de morte envolve a casa. Já que não adianta pensar em dormir,
resolvo aproveitar para organizar as ideias. Pego várias folhas de papel e divido em
pedaços menores. Em cada um, escrevo alguma coisa: um nome, um acontecimento,
uma dúvida. A minha história recente.
ACIDENTE
LARISSA
DOR DE CABEÇA
COMPRO CADERNO ROXO
COMPRO CANETA DE AÇO
CONTOS
ASSASSINATO PUBLICITÁRIO
ASSASSINATO PARQUE DE DIVERSÕES
ASSASSINATO HALLE
TENTATIVA DE ASSASSINATO EVAN???
MORGAN
BEIJO E FUGA MORGAN
EDIFICIO ABANDONADO
CASA DE MORGAN
MORTE DO DONO DA PAPELARIA (HOMEM-ANJO)
MASTER
MASTER DESAPARECIDO NA ÁGUA?
QUARTO REVISTADO
ANEL DE DRAGÃO
ORIGAMI EM FORMA DE DRAGÃO
VÍDEO DE SELINE
VIOLÊNCIA CONTRA NAOMI — TITO
INCÊNDIO NO GABINETE DO DIRETOR
CASA DAS CONCHAS
AGATHA — DENUNCIA — PRISÃO
RAPAZ DOS CIGARROS
FOTO DO RAPAZ DOS CIGARROS
‚FIQUE LONGE DA ÁGUA'
ADAM
DAVID O ESCRITOR
NINA
Tento colocar os fatos em ordem, esperando não ter esquecido nada. Procuro
uma ligação lógica entre os acontecimentos, os nomes, os locais, mas não encontro
nada. Faço e desfaço todas as combinações possíveis entre as peças desse quebra-
cabeça e me dou conta de que não vou conseguir nada sozinha. Falta alguma coisa,
alguma coisa que dê sentido ao conjunto, que conecte os elementos. Sei que bastaria
uma chave, uma única chave, para entender. Mas onde encontrá-la? Um papelzinho
ficou na minha mão ‚EDIFICIO ABANDONADO'.
É o lugar onde vi Morgan entrar, mas... a simples ideia de voltar lá já me enche
de pavor.
‚RAPAZ DOS CIGARROS'... se pelo menos soubesse onde procurá-lo, onde
ele mora. Maldita Agatha! Tinha que ficar em isolamento logo agora! Agora que
poderia realmente me ajudar. Gato solta um miado, talvez tenha entendido que
estou irritada com sua dona maluca. Faço um carinho na cabecinha dele, que abaixa a
cabeça quando toco a orelha direita. Fecha os olhos, embriagado de puro prazer, mas
depois se afasta, irritado.
— É inútil ficar irritado. A realidade agora é essa, vai ter que se contentar
comigo.
Embaralho novamente os papéis. Silencioso, Gato salta na cama e começa a
lamber a pata.
Naquele instante, o toque do telefone me faz estremecer na quietude da noite.
Quem pode estar ligando para nossa casa a essa hora?
Saio correndo do quarto. O telefone não para. Levanto o fone com raiva.
— Alô? — digo em voz baixa.
— Oi, sou eu — ouço alguém dizer do outro lado. Não conseguiria descrever a
sensação que tive nem com todas as palavras do dicionário. Ela simplesmente não
existia na lista das possibilidades antes que eu experimentasse. Não me atrevia a
esperar por isso, mas, ao mesmo tempo, era a coisa que mais desejava no mundo. E
agora está acontecendo. Não é mais um daqueles pesadelos. Aquela voz é verdadeira
e é dele, finalmente.
—Morgan?
—Oi.
— É você mesmo?
— Sim, Alma. Sou eu.
As perguntas que acumulei nas últimas semanas se empilham nos cantos da
minha boca, empurram para sair e abrir caminho entre as outras. Cada uma delas
quer sua resposta, não sei a qual dar preferência. Todas elas me assaltam depois da
alegria de ouvi-lo e da raiva por ter me abandonado quando mais precisava dele.
— Não vai dizer nada?
— Não sei por onde começar.
— Recebeu minha carta?
— Recebi, mas estou assustada e desorientada.
— Eu sei. Por isso voltei. Precisamos nos ver.
— Quando?
— Agora.
O medo de que possa desaparecer novamente não permite que eu entenda
direito o que acabou de dizer.
— Diga onde.
— Na frente da sua casa em cinco minutos. — Desliga sem acrescentar nada.
Fico alguns instantes com o fone na orelha. Do outro lado, o bipe-bipe ritmado
da ligação interrompida. Meu coração bate a mil por hora. Aperto uma das mãos no
peito para tentar segurá-lo. Tenho medo de explodir. Recoloco o fone no lugar e vou
para o meu quarto, muito nervosa. Não sei o que fazer.
Sim, preciso me vestir, essa é a primeira coisa.
O que escolho? Não importa. Escolho qualquer coisa, basta que tenha gola rulê.
Gato olha para mim tranquilo, pelo menos ele. Quanto tempo vou ficar fora?
Não sei. Pego a mochila com o caderno e a caneta. Será que vou precisar de mais
alguma coisa? O que Morgan pretende fazer? Preciso ficar calma ou vou aprontar
alguma. Se tivesse mais tempo... não, melhor assim. Até agora, a espera estava me
matando. Como esperei esse telefonema que não chegava nunca, e agora não consigo
nem pensar! Tudo roda, dentro e fora, não consigo parar as coisas, fixar as ideias.
Olho o despertador. Devem ter passado cinco minutos desde que Morgan ligou.
Chegou a hora de ir. Ou será que é cedo demais? O que importa? Desço e espero. Ele
vai chegar. Dessa vez vai chegar com certeza.
Dou uma última olhada em Gato.
— Comporte-se — digo.
Depois vou para a entrada. Na penumbra do corredor, iluminado por raios
fantasmagóricos de luz, noto uma presença pequena e silenciosa. Minha irmã Lina.
Nós duas nos olhamos por alguns instantes. Parece preocupada. Tenho a nítida
sensação de que ela sabe o que está acontecendo e olha para mim como se estivesse
me abençoando. Não dizemos nada. Não precisamos de palavras. Seu sorriso é
suficiente para me dizer que tudo vai ficar bem. Na angústia e no horror que me
cercam, ela é minha tranquilidade, aconteça o que acontecer. O que seus olhos estão
me dizendo agora? Claro... esqueci uma coisa. Volto ao quarto, pego e mostro a ela.
Ë a sua sinetinha da sorte. Lina está sorrindo. Dou tchau, ela me dá um beijo no
rosto e volta para a cama.
Fora de casa, no elevador e ainda na entrada do prédio, aquele beijinho espalha
um calor agradável pelo meu rosto e faz com que me sinta viva.