Quando volto para a escola, a manchete de um jornal exposto na banca chama a
minha atenção.
PROCESSO—RELÂMPAGO PARA A ADOLESCENTE
QUE EMBALSAMOU A TIA
É Agatha! Compro um e começo a ler com aflição.
São vários artigos nas páginas policiais. Um deles é assinado por Roth e fala da
entrevista que fez comigo naquele jantar. Meu nome não está lá, como ele tinha
prometido, apenas a letra A. Mas não é o que leio primeiro.
Agatha, 17 anos e duas acusações gravíssimas nas costas, ocultação
e profanação de cadáver, será julgada num processo-relâmpago por
determinação do magistrado. O motivo alegado pelo juiz é que a
adolescente precisa de cuidados psiquiátricos urgentes, devido aos
problemas mentais que apresentou na prisão.
Segundo boatos que circulam nos últimos dias pelos corredores da
delegacia, o tenente Sarl, responsável pela prisão da moça, teria pedido
que ela fosse colocada em isolamento, pois temia pela sua segurança em
razão de seu comportamento. Um guarda carcerário declarou que
Agatha teria ajudado outra detenta a tentar suicídio.
Pulo para:
Afastado o risco de uma condenação a três anos de prisão, o
advogado de defesa da adolescente declarou-se satisfeito com a
absolvição por incapacidade mental...
E finalmente:
A adolescente será transferida para um hospital psiquiátrico, onde
receberá tratamento por tempo indeterminado. O médico que trata do
caso, dr. Mahl, não fez nenhum comentário acerca dos prazos e do tipo
de terapia, dizendo que só poderá fazer uma previsão depois do início do
tratamento.
Agatha internada num hospital psiquiátrico! Vai enlouquecer de vez, tenho
certeza. Mesmo com o dr. Mahl.
Calma, Alma, calma. Primeiro é preciso organizar as ideias para depois agir sem
perda de tempo.
Dou uma rápida passada na entrevista e confirmo que Roth foi fiel ao que falei.
Amasso o jornal, jogo fora e caminho decidida para a estação ferroviária.
O consultório do dr. Mahl fica lá perto.
Prefiro andar. Não sinto nenhuma vontade de pegar um transporte barulhento e
cheio. Preciso de ar, uma necessidade que cresce cada dia mais.
A essa hora da manhã, as calçadas estão praticamente vazias. Ando rápido e, sem
perceber, já estou na frente do grande edifício da estação, diante dos portões
escancarados. Viro numa travessa e pela primeira vez, a poucos passos do consultório
do médico, me pergunto o que estou fazendo. Não sei se ele já chegou, nem se vai
poder ou querer falar comigo, mas tenho certeza de que vim até aqui sem pensar
direito.
Paro diante da porta e olho ao redor.
E fico paralisada.
Do outro lado da rua, vejo um sujeito, quase de perfil. Tem cabelos curtos e
pretos, usa uma jaqueta clara, e um fio de fumaça sai de sua boca e desliza pelos
ombros, como uma trilha branca.
É ele! O cara que me deu seu maço de cigarros. O assassino. Ele vira de costas e
caminha para a estação. Dou uma olhada para a porta e não consigo resolver se devo
seguir meu plano inicial ou ir atrás dele. Ir atrás dele... poderia ser perigoso. Morgan
nunca ia concordar.
Mas é o que faço.
Ele anda depressa, sem se virar, mas não consigo afastar de mim a desagradável
sensação de que sabe perfeitamente que estou ali.
Enquanto isso, fico me perguntando o que estará fazendo por aqui. É verdade
que da primeira vez também estava nas vizinhanças da estação, mas será que o fato
de encontrá-lo exatamente na rua do consultório do dr. Mahl, o médico que trata de
Agatha, que está presa junto com sua irmã, é uma simples coincidência?
Acho que não. E quanto mais penso, mais acho que existe uma ligação entre os
fatos, que tudo faz parte da mesma história. Até as pessoas que não pareciam ter nada
a ver com ela, como Agatha, por exemplo, são na verdade elos da mesma corrente,
talvez menores e mais fracos, mas sempre elos.
O cara para no sinal. A calçada de onde saem os ônibus fica do outro lado e é
mais ou menos onde nos encontramos da primeira vez. O bonequinho luminoso para
a travessia de pedestres ficou amarelo e começou a piscar. De um salto, ele atravessa
no último minuto. E eu fico parada, cortada pelo fluxo do tráfego.
Não posso deixar que escape assim. Pulo no meio dos carros que começam a
buzinar feito doidos. Então ele se vira, olha para mim, faz uma careta e, em seguida,
sai correndo.
Mais um passo, um carro, um palavrão e estou atrás dele. Corro no interior da
estação, na passagem subterrânea cheia de gente. Abro caminho do jeito que posso.
Consigo vê-lo, mas está muito distante. Uma revoada de pombos sobe bem na minha
frente. Lá está ele... aparece e desaparece na multidão, cada vez mais longe.
Corro tudo o que posso e sigo atrás dele até a plataforma, pelas escadas.
Plataforma 19.
Vejo um trem parado. Ele sobe num pulo, um segundo antes que as portas se
fechem e as rodas de ferro comecem a deslizar pelos trilhos.
Paro, sem fôlego. Sinto um cheiro vago de poeira de ferro e de ferrugem no
rastro do trem que se afasta.
♦♦♦
— O dr. Mahl está no consultório. Está atendendo, mas vou avisá -lo assim que
for possível — responde a secretária atrás do balcãozinho de madeira branca.
Pede que me sente na pequena sala de espera, com uma mesinha de centro cheia
de revistas variadas e cercada de poltroninhas de couro verde-claro, mais bonitas do
que confortáveis. A espera me deixa nervosa.
Por sorte, dura pouco. A secretária comunica que o médico vai me atender, mas
só dispõe de alguns minutos entre um paciente e outro.
Vou até sua sala. Conheço bem o caminho.
O dr. Mahl me recebe com sua habitual pacata serenidade. Pelo menos no que
diz respeito a ele, nada mudou. Seus cabelos castanhos encaracolados continuam altos
e volumosos na cabeça. O tom de voz é calmo e tranquilizante como eu recordava.
— Alma, que surpresa! E então, como vai?
Sento na frente dele, do lado de cá da mesa.
— Bom dia, doutor. Estou muito bem, obrigada.
— E Naomi?
— Também. Deve saber que Tito e seu bando foram condenados.
— Claro. Deve ser um alívio para ela.
— É, muito. Foi morar na praia, na casa de uma tia.
— Fui eu quem aconselhou que tirasse umas férias. Fico contente em saber que
resolveu seguir meu conselho. Bem, não tenho muito tempo, desculpe, e vejo que
está preocupada. Aconteceu alguma coisa que queira me contar?
Não precisa de um diploma para perceber isso. Estou tensa como elástico
esticado.
— É Agatha. Li no jornal que vai se tratar com o senhor. Ela é minha amiga. É
com ela que estou preocupada. Queria saber...
— Alma... — interrompe ele. — Sabe que existe segredo profissional: não
posso falar sobre meus pacientes.
— Eu sei, e não vim para isso. Só queria lhe dizer que Agatha jamais tentaria
suicídio. É uma pessoa cheia de problemas, mas não é uma suicida. Lembre-se disso.
Ela quer viver.
— Obrigado por me avisar. Mas aposto que foi outra coisa que a trouxe aqui
hoje. Não é verdade?
Meus olhos são uma confissão.
— Estou me sentindo culpada em relação a ela – digo num sopro. – Quem a
denunciou à policia fui eu. Queria ter certeza de que esta bem e de que vai ajudá-la.
— Ela sabe que foi você?
— Sabe... e me perdoou. Mas, agora, eu queria fazer alguma coisa.
— A decisão de interná-la num hospital psiquiátrico foi do juiz, depois de
cuidadosas perícias que eu mesmo verifiquei. Espero que entenda que ela realmente
precisa de tratamento.
— Mas se achasse que ficou curada depois do tratamento, o senhor a deixaria
sair?
— Sim, claro. Mas vamos precisar de tempo e esforço para que suas condições
melhorem.
— Ela é uma lutadora, sempre. Foi obrigada a engolir porcarias, sedativos para
que ficasse calma, mas não quer se matar, tenho certeza. Quanto à moça que queria
se suicidar...
O olhar de Mahl se torna mais intenso e atento.
— O que sabe sobre essa moça?
— O senhor a conhece?
— Sei o que fez, junto com o irmão gêmeo.
Que estava bem aqui, gostaria de dizer, em frente a seu consultório.
— Pois é, a versão de uma menina que tentou matar os pais não é confiável.
— Bem, desse ponto de vista, a versão de uma outra que tentou mumificar a tia
também não seria...
— Garanto que Agatha não é mentirosa. Ela errou, eu sei, mas por favor não se
esqueça do que eu disse.
— Estou preocupado, Alma.
Não posso deixar transparecer nada, não posso.
— Com o quê, dr. Mahl?
— Está cercada de companhias nada saudáveis... Acho que anda precisando de
um pouco mais de tranquilidade.
Não ouso negar, portanto fico em silêncio.
— Você também sofreu um trauma, perdeu duas amigas.
— Estou bem.
— Não teve mais dor de cabeça?
— Muito de vez em quando.
Mahl parece não acreditar. Agita-se na cadeira. É hora de partir.
Levanto.
— Obrigada, doutor. Pode me fazer um ultimo favor?
— Diga.
— Quando encontrar com Agatha, diga obrigada de minha parte. Ela sabe por
quê.
— Está bem. Cuide-se, Alma, e pode me ligar se precisar... me contar alguma
coisa.
— Certo.
— Promete?
— Prometo.
Levanto e deixo o consultório com a nítida impressão de ter sido psicanalisada
sem querer.
Conversar com esses espreme-cérebros é fogo.