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Sair ao ar livre depois de seis horas dentro dos subterrâneos do Velho Aqueduto me

provoca uma forte tontura, como se tivesse chegado ao topo da montanha mais alta

do mundo. Além de uma sensação de vitória, naturalmente. Mas, na verdade, é como

se tivesse sido privada de alguma coisa, como se minha identidade tivesse sido

arrancada de mim, amassada e jogada fora como papel velho, deixando-me assim,

nua e indefesa.

O ar da noite é fresco, agradável. O céu está clareando, se preparando para um

novo dia. Ao nosso redor, os passarinhos madrugadores cantam como se quisessem

dizer, em sua língua incompreensível, que estou de volta à realidade. Morgan

caminha silencioso.

Percorremos o mesmo caminho da noite anterior, mas de trás para a frente. Quando

olho para o cemitério, não me parece tão inquietante: já estou me sentindo mais

próxima de quem está sepultado debaixo da terra do que de quem vive aqui em

cima.

No carro, não damos uma palavra. Cruzo com pessoas, rostos, bocas e olhos que

me observam, e fico me perguntando o que será que vêem, além do meu rosto, tão

bonito quanto maldito. Talvez não vejam nada, só um vazio. Sinto um frio

penetrante e absoluto que atravessa meu corpo de cima a baixo. Como será não ter

um corpo? Como é a vida de uma alma?

Morgan estaciona na frente do meu prédio.

— Normalidade, Alma.

— O quê?

— Tem que agir como se nada tivesse mudado. Normalidade.

— Vou tentar.

— Entrarei em contato com você em breve. Enquanto isso, se precisar falar

comigo, use alguma coisa vermelha, uma echarpe, um boné.. uma bolsa, qualquer

coisa e vou entender.

— E o que vai fazer agora?

— Já chegamos. Por favor, é tarde.

Abro a porta e me preparo para descer.

— Morgan?

— Sim.

— Sou realmente a única a sonhar com os assassinatos?

— É, é a única. Mas não é propriamente um sonho. Nós não sonhamos.

— Como assim?

— Consegue se lembrar de algum sonho, com exceção dos assassinatos?

— Bem...

— Não é possível, garanto.

— Na outra noite sonhei uma coisa. Meu corpo navegava num rio como se fosse

um barco. Estava me sentindo muito bem, até o momento em que ouvi o barulho de

uma cachoeira a distância. E então, me dei conta de que estava indo em direção à

morte.

— Não foi um sonho, Alma. Era o Leviatã chamando você para perto dele. Era

uma mensagem, uma forma de induzi-la a voltar para Ele.

— Toda vez que sonho... sonho com o Leviatã?

— Exatamente, e nunca subestime o poder dele. Ele se insinua na mente, gota a

gota, escava noite após noite, e a pessoa pode acabar se rendendo à sua vontade. Acho

que sua mente é extraordinariamente forte, pois conseguiu enfrentá-lo até agora, mas

não é forte o bastante para derrotá-lo. Para isso, precisamos de muita gente desejando

a mesma coisa. Muitos mais do que somos hoje.

— Não somos... quer dizer, vocês não são muitos.

— Até pouco tempo atrás tinha mais gente, mas alguns não resistiram.

— O que significa não resistiram?

— Que voltaram para My Land.

Fico sem palavras. Penso em minhas mãos frias. E agora, pela primeira vez, acho

que entendi por que sou assim. Sou uma criatura gelada porque que pertenço a My

Land.

Dou um beijo rápido em Morgan e sou engolida pelo portão, depois pelo

elevador, onde finalmente respiro o ar daquela normalidade que ele pede tanto que

eu mantenha.

Quando abro a porta de casa, todos ainda estão dormindo. Jenna não está no

turno da madrugada, Lina ainda não acordou e imagino que Evan esteja em seu

quarto, sem dar a menor bola para o que acontece a seu redor.

Talvez seja a primeira vez na minha vida que me sinto realmente feliz por estar

aqui. Olho ao redor, como se estivesse voltando de uma viagem que me levou a

lugares muito distantes, durante muito tempo. No entanto, só estive fora algumas

horas. Poderei renunciar algum dia a tudo isso?

Sempre pensei que não me importava, que minha família não passava de uma

punição que tinha que aguentar, dia após dia. Achava que eram um peso para mim.

Mas agora...

Entro em meu quarto, silenciosa como uma ladra. Largo a mochila e tiro o

macacão que Morgan me deu, com vontade de tomar uma chuveirada. O cheiro

adocicado da água da piscina está grudado em minha pele. Deslizo pelo corredor até

o banheiro. Ligo a água e fico olhando ela sair pelos buraquinhos do chuveiro. Coloco

no mínimo, como gosto. Tem a energia de uma chuvinha de primavera. Coloco a

cabeça embaixo do jato, esforçando-me para permanecer o máximo possível. Pode me

apagar, digo. Faça-me desaparecer.

De repente, arregalo os olhos, apavorada.

Ouço a água saindo dos canos. Posso sentir os canos mergulharem na direção do

subsolo.

E ouço sua voz, sob a água, dentro da água, sua voz me chamando.

Sacudo a cabeça com força para afastar dos ouvidos aquela voz.

Olho horrorizada para o bocal do chuveiro.

Toco os cabelos, o nariz, a boca, os olhos, os braços, o pescoço todo esfolado, o

seio e depois a barriga, os quadris, as pernas, e me encolho abraçando os tornozelos e

os pés. Como é possível que nada disso me pertença? Que não seja eu? Levanto e olho

para o jato d’água que não para de cair.

Os canos, vermes enroscados no subsolo.

O dragão marinho no seu mundo de água.

Aperto as mãos ao redor da cintura, os braços cruzados sobre o peito. Afundo as

unhas na carne, profundamente. De qualquer jeito, não é minha, repito comigo.

Machuca, eu me machuco, e não paro. Eu me odeio. Odeio esse corpo perfeito, odeio

tudo o que sou.

Choro, e as lágrimas deslizam pelo meu rosto, pingam nos ladrilhos, misturadas

à água. Em seguida, caio de joelhos na cerâmica brilhante. Não paro de chorar, não

quero parar até esvaziar minha dor. A água desce, sugada pelo ralo que quer fazer a

mesma coisa comigo. Tapo os ouvidos com as mãos. Minha cabeça dói, como se fosse

explodir.

— Me deixe em paz! — grito. — Vá embora, não sou sua. E nunca serei.

Fecho os olhos para enfrentar uma pontada que afunda em meu cérebro como

uma punhalada.

Venha.

Levanto o rosto para o jato quente. Arregalo os olhos e fico olhando a água cair

em cima de mim.

— Sou mais forte — digo.

O chamado desaparece. O ralo parece maior do que nunca. Tenho certeza de que

Ele está me ouvindo.

— Sou mais forte do que você.

Em seguida, ouço alguém bater na porta.

— Ande logo! O banheiro não é só seu!

Evan. Fecho a torneira do chuveiro e enfio o roupão.

O rosto de meu irmão é duro como o de uma estátua.

— Que merda de gritaria foi essa?

Nem penso em responder. Passo a seu lado como se não existisse.

Ele entra no banheiro e bate a porta violentamente às suas costas.

Deito na cama, completamente sem forças.

Gato olha para mim do alto da escrivaninha. Depois pula em cima da cama e

deita a meu lado. Através da toalha do roupão, sinto seu corpo magro e quente

contra o meu, percebo a vida pulsando sob o pelo negro e, por um instante, sinto

inveja dele.

Levanto com muito esforço. Preciso me vestir e me arrumar para a escola.

Normalidade, como disse Morgan.

Pego o macacão e enterro no armário de sempre, esperando que Jenna nunca

ponha as mãos lá dentro. Em seguida, enfio um collant listrado, uma saia e um

puloverzinho verde de gola rulê. Finalmente, pego a mochila e levo o maior susto:

está aberta. Tenho certeza de que puxei o fecho até o fim. O caderno sumiu!

Começo a suar frio. Alguém entrou no meu quarto enquanto estava no

chuveiro? Quem? E por quê?

Corro para a sala feito uma doida. E quase caio dura quando vejo meu caderno

roxo nas mãos de Lina, que está desenhando com seus lápis de cor. Arranco o caderno

de suas mãos, literalmente.

— Quem mandou você pegar? — berro, furiosa.

Jenna, que está preparando o café na cozinha, vira para mim, surpresa. Nunca

me viu falar daquele jeito com minha irmã.

Lina me olha com os olhos arregalados, sem acreditar no que ouviu.

Ficamos imóveis alguns instantes, ambas paralisadas pelo meu ataque histérico.

— Quando quiser alguma coisa, tem que pedir primeiro — digo num tom

mais calmo.

Ela não para de olhar para mim, como se esperasse uma palavra a mais, que

errei, que não estou zangada com ela.

Folheio o caderno, nervosa. Lina não tocou nas páginas em que escrevi os

contos. Estava fazendo um desenho numa das páginas seguintes.

Tenho que sentar para não cair. É o desenho de uma pessoa que segura um fio

vermelho. A outra ponta do fio está na mão de um homem estendido embaixo da

terra.

Meu olhar pula de minha irmã para o desenho sem parar. É difícil entender de

onde ela pode ter tirado uma cena daquelas.

Lina!

Curiosa, Jenna se aproxima. Mas fecho o caderno antes que possa ver alguma

coisa.

— O que desenhou?

— Nada de importante. Um campo. Mas não podia desenhar nesse caderno.

— E só uma menina.

— O caderno não é meu. Só isso.

Escondo os olhos com os cabelos. — Preciso acabar de me arrumar ou vou

chegar atrasada.

Estou saindo da sala quando faço meia-volta e dou um beijo em Lina.

— Eu te amo — sussurro em seu ouvido. — Desculpe.

É a primeira vez que pronuncio aquelas palavras na minha vida.

E é a primeira vez que tenho a sensação de que realmente sei o que significam.