Deixamos em casa uma Naomi exausta, mas sorridente, devolvendo-a a uma família
mais tranquila, que parece ter acabado de se salvar de uma epidemia.
Pai e mãe nos convidam para entrar, mas tenho pressa. Não consigo pensar em
outra coisa além do meu quarto revistado de cima a baixo.
Sarl sabe disso e recusa o convite:
— Obrigado, mas prometi à mãe de Alma que a levaria para casa
imediatamente. Quem sabe outra vez...
— Obrigado, tenente, por tudo o que fez por nossa filha — diz o pai,
comovido.
— Claro, muito obrigada pelo que fez — repete a mãe, que parece não
encontrar o que dizer, logo ela que sempre queria dar a última palavra. É verdade
que, às vezes, um evento traumático serve para restabelecer o equilíbrio das coisas.
Sob nossos olhos, Naomi mergulha no abraço de seus pais. Quando a porta se
fecha atrás deles, Sarl e eu já estamos no elevador.
— Sente falta do seu pai?
Estranho, ninguém mais me pergunta isso.
— Não, acho que não. Ele nos abandonou, então não quer saber de nós. E
também não queremos saber dele.
— Talvez o seu irmão precise dele.
— Aprendeu a viver sem ele há muito tempo. Além do mais, se ele ficou do
jeito que está, foi graças a meu pai.
— Sua mãe me disse que você tem problemas com Evan, que não se entendem
muito bem.
— Na verdade, nem nos falamos. E, para ser sincera, Evan tem problemas com
todo mundo.
Fico pensativa, lembrando a noite no ginásio, a barra de ferro em minhas mãos,
pronta para cair em cima dele.
Sarl percebe.
— Não gosta muito de falar sobre isso, não é?
— Não muito. Na verdade, não tenho nada a dizer. Ninguém escolhe a família
em que vai nascer. E eu, com certeza, não escolhi a minha.
— Não fale assim. Tem uma mãe maravilhosa e uma irmãzinha adorável.
Quanto a Evan, quem sabe com o tempo...
— É verdade, Lina é adorável — corto secamente, mas o tom que ele usou para
dizer que Jenna e maravilhosa nao me escapou. Acho que gosta dela, de alguma
maneira.
Voltamos para o carro. Estabelecemos um acordo tácito de silêncio. Pela
primeira vez naquele dia, penso em Morgan e choro.
♦♦♦
Em casa, Jenna está agitada, Evan não está, Lina aperta a boneca preferida nos
braços como se quisesse garantir que tudo está bem.
— Finalmente! — exclama Jenna, assim que me vê entrar, correndo para me
abraçar. Acho que já fui bastante abraçada no dia de hoje.
— Oi — é tudo que digo.
— Muito obrigada por trazê-la - diz em seguida a Sarl.
Ele parece feliz, mas meio sem graça.
— Preciso ir. Alma, por favor, me ligue se lembrar de alguma coisa.
Concordo e ele sai pela porta nova e blindada.
— Ele já lhe contou o que houve, não?
— Contou.
— Dei uma checada. Acho que não falta nada nas suas coisas, mas é melhor
você ver.
Vamos juntas para o meu quarto, implacáveis como um pelotão de fuzilamento.
Quando chego, as coisas parecem bem piores do que imaginava. Está tudo de cabeça
para baixo: lençóis, livros, cadernos, roupas, fotos. Quem entrou aqui com certeza
estava procurando alguma coisa específica. O meu caderno roxo.
— Você sabe quem é o responsável por isso, Alma? Porque, se souber, vai ter
que me dizer e vamos denunciá-lo à polícia. Sarl me contou a história de Agatha, sua
colega de turma. O que ela fez é muito grave. É uma criminosa. Ah, essa sua escola...
— O que Agatha tem a ver com isso, agora? E a escola? Sabia muito bem para
onde estava me mandando quando me matriculou lá, mas a gente não tinha dinheiro
para mais nada, lembra? E no fundo não é tão ruim assim — digo, tentando
convencê-la de que não estou num covil de bandidos, mesmo sabendo que ela não
está totalmente enganada.
— Sarl falou que pode ter sido alguém que você conhece, alguém que sabia o
que estava procurando ou que queria se vingar por algum motivo. Tem alguém com
raiva de você?
— Xi, dá para fazer uma lista...
— Não é engraçado, Alma.
— O que não é engraçado é ver que um louco entrou aqui e fez esse estrago! —
digo, fingindo que estou furiosa. Na verdade, estou muito preocupada com minha
família e morta de medo no que me diz respeito.
— Tente ajudar a polícia, se puder. E olhe como fala comigo — conclui ela,
saindo do quarto.
Lina fica na porta, com a cabecinha apoiada na moldura. Olha para mim com
aqueles olhos grandes e meigos. Em seguida, chega mais perto, coloca a boneca
sentada perto da cama e começa a apanhar as coisas que estão no chão. Fico olhando
ela se mexer, leve como uma pluma, entre os destroços que cobrem o piso. De
repente, ao pegar uma moldura de vidro, ela corta o dedo. Corro para ver o que
houve. Tem um corte no indicador direito. Pego um lenço para estancar o sangue,
mas ela não deixa. Pega a minha mão e vira com a palma para cima. Usando a ponta
do indicador ferido, escreve uma coisa com sangue. São quatro letras maiúsculas:
‚AM0R'.
Olho no fundo de seus olhos, límpidos e serenos. Vejo um mundo lá dentro. O
seu. Povoado de silêncio e paz, duas coisas que já nem lembrava mais.
Acho que está dizendo que me ama. Estanco o sangue com o lenço e dou um
beijo em seu rosto. Ela sempre consegue me surpreender e me ajudar com seus
pequenos gestos, que para mim são grandes porque chegam justamente quando mais
preciso.
Vou buscar um curativo e coloco em seu dedo. Só então vou limpar a palma da
minha mão. Olho as quatro letras desaparecerem da pele. Sei que ficarão impressas
para sempre em meu coração.
Terminamos com a arrumação. É muito bom que Lina exista, muito bom não se
sentir tão sozinha.
♦♦♦
Antes de dormir, olho para o círculo de luz que o horripilante abajur cor-de-
rosa projeta no teto. E me vejo fazendo dois pedidos: primeiro peço para não escrever
mais nenhum conto; segundo para encontrar logo uma pista, pelo menos uma, que
me ajude a entender em que confusão estou metida.