Quando bato na porta do gabinete de Sarl, ele não manda entrar, como de costume,
sem sair de sua escrivaninha, mas levanta e vem abrir a porta pessoalmente. Será que
pensou que Jenna tinha voltado, que talvez tivesse esquecido alguma coisa, quem
sabe um beijo? Sacudo a cabeça. Não, não pode ser. Ela está com Gad.
— Oi, Alma. Aconteceu alguma coisa? Está com uma cara...
— Nada, desculpe. Só estava pensando umas coisas aqui comigo.
— Entre, sente-se.
Na sala, flutuam cheiros que já se tornaram familiares, dominados agora por um
perfume adocicado de biscoitos de chocolate. Lá estão eles, numa lata aberta em cima
da escrivaninha.
Sarl intercepta meu olhar.
— Foi sua mãe quem me trouxe há pouco.
— Eu sei. Encontrei com ela.
Ele se sente na obrigação de explicar.
— Foi muito gentil da parte dela, mas não precisava. Tenho prazer em ajudar
vocês.
— É verdade, tem nos ajudado desde que nos conhecemos — comento fazendo
referência à morte do pai de Lina. — E talvez uns biscoitinhos feitos em casa, além
do mais por Jenna, não sejam um agradecimento tão grande assim.
— Pois para mim são. E sua mãe cozinha muito bem.
— Talvez, quando sobra tempo para cozinhar.
— Ainda está preocupada com o sujeito que invadiu sua casa.
Rimos.
— Mas eu disse que pode ficar tranquila. Que certamente é uma provocação de
algum garoto que sofreu por sua causa — brinca ele. — Não tem mesmo ideia de
quem fez aquela bagunça em seu quarto? Já viu se falta alguma coisa?
— Acho que está tudo lá. Quanto ao responsável, não tenho a menor ideia.
— É tão estranho... Por que alguém faria uma coisa dessas sem nenhum
motivo?
— Talvez seja algum maluco. Tem tanto maluco por aí.
— Pode ser, mas imagino que não veio até aqui só para isso.
— Na verdade, queria notícias de Agatha. Gostaria de visitá-la, para ver como
ela está pessoalmente.
— Você é menor de idade, Alma. Só pode entrar numa prisão na companhia de
um adulto.
— Acha que Jenna iria comigo? Duvido. Mas talvez você pudesse assinar uma
autorização...
— Não quer que sua mãe saiba que vai visitá-la?
— Ia inventar mil histórias, ficar preocupada, e não há motivo para isso.
— Agatha é uma menina cheia de problemas, e o centro de detenção de
menores não é um centro comercial. Acho que deveria avisar sua mãe.
— Agradeço o interesse, tenente, mas acho que já demonstrei que sei me virar
sozinha. E depois, se não fosse por mim, Agatha não estaria presa. No bem e no mal,
cumpri com meu dever.
— Sei disso e sou muito grato, mas...
— Por favor...
Sarl se enrolou. Ótimo.
— Tudo bem, mas quero saber como foi o encontro. Pode ser que se abra com
você e conte mais do que nos contou. Seria muito útil, agora que sabemos a verdade.
— Recebeu os resultados da autópsia?
Faz que sim.
— O resultado é claro: a tia já estava morta quando Agatha começou seu
‚tratamento', se podemos dizer assim. Parece que teve uma parada cardíaca. O que
não sabemos é se Agatha deixou que morresse ou não.
— Não acredito. Sua vida dependia da vida da tia. Não queria acabar num
orfanato, faria tudo o que pudesse para que ela não morresse.
— Também acredito que só a encontrou quando já era tarde demais.
— Portanto, não é uma assassina?
— Não. Mas o que fez continua a ser muito grave. É um crime. Está sob
tratamento psiquiátrico e espero que isso possa ajudá-la a curar suas velhas feridas.
Por mais que me esforce, não consigo imaginar Agatha confiando seus
problemas a um espremedor de cérebros.
— E tem alguma novidade sobre o outro assassinato, o da papelaria?
Sarl parece suspeitar de minha pergunta. Talvez eu esteja exagerando. Preciso
ser mais cuidadosa com ele.
— Por que tanto interesse pelos homicídios, Alma? Quer dizer, à parte o
jornaizinho da escola. É a segunda vez em dois dias que faz perguntas sobre o dono
da papelaria.
— Deve ser o meu lado sombrio, tenente.
— Todo mundo tem um. O segredo é mantê-lo sob controle.
Ele tem razão, mas o meu já está totalmente fora de controle.
— Bem, voltando à sua pergunta, ainda estamos esperando os resultados da
autópsia e temos muitas perguntas em aberto: a primeira é a causa da morte, pois
não há marcas aparentes no corpo, de violência ou de qualquer outra coisa... a não ser
o detalhe dos olhos.
— Dos olhos?
De imediato, revejo nitidamente a imagem de seus olhos, quase transparentes.
E, como alguém que vê uma cena horripilante, fecho os meus.
— É. O legista disse que ele era cego. Mas não entendo como um cego poderia
trabalhar sozinho numa loja.
Como poderia ser cego? O homem-anjo enxergava muito bem. Tenho certeza
disso. Mas não posso dizer a San!. Não posso contar que o conhecia e que me vendeu
a caneta, com a qual talvez eu tenha matado um homem, e o caderno em que
descrevi os assassinatos que ele está investigando sem sucesso.
— Tem certeza? Quer dizer, de que era mesmo cego?
— Pelo que o legista disse, tinha os olhos de um cego. Mas até amanhã, no
máximo, saberemos mais alguma coisa. — Olha para mim com atenção. — Já esteve
naquela papelaria? Estudantes costumam frequentar papelarias para comprar
cadernos, canetas e tudo o mais, não?
E agora? O que vou responder? É melhor dizer uma meia verdade que uma
mentira inteira? Não, tenho medo demais de ser descoberta.
— Acho que não. Parei algumas vezes para olhar a vitrine, sim. Era sempre
muito bonita.
— Quer dizer que nunca viu aquele homem, o dono?
— Não. Como disse, nunca entrei lá.
Sarl não parece convencido.
— Nem as suas amigas...
— Não, nenhuma.
— Fique tranquila, Alma, não é um interrogatório.
Preciso ficar mais calma.
— Claro... o senhor é um tenente da polícia e às vezes fico impressionada —
respondo tentando parecer sem graça.
Sarl sorri, divertido. Tento relaxar.
— Tem toda a razão. Não consigo parar de me comportar como um policial
nem com os amigos.
Olho para ele, espantada.
— Está querendo dizer que sou sua amiga?
— Conheço você e sua família há anos. E como não tenho uma família... sinto
vontade de protegê-la como se fosse minha filha.
Seu afeto por mim é claro e cristalino e isso não me deixa indiferente. Os olhos
de San são grandes e cheios de bondade. Caminha na minha direção e, para minha
grande surpresa, pega minhas mãos. Segura com delicadeza, sem usar a força que se
pode esperar de um homem como ele. Cuida de mim como de um objeto frágil, que
deve ser manuseado com atenção. E não está enganado, de modo que não retiro as
mãos.
— Vou redigir a autorização para que possa visitar Agatha — diz ele, largando
minhas mãos para ir se sentar atrás da escrivaninha. — Prometa que vai tomar
cuidado.
Juro que se mais alguém me disser para tomar cuidado, vou ter um ataque.
Logo em seguida, me entrega uma folha dentro de um envelope.
— Entregue ao policial na porta de entrada.
— Obrigada.
— A gente se vê.
♦♦♦
Saio do gabinete de San com a sensação de que tem alguma coisa que ele não me
disse. Aperto a carta na mão e fico pensando no que vou dizer a Agatha, se devo ou
não confessar que fui eu quem a mandou para aquele inferno. Não, melhor tomar
cuidado.
Estou na rua. O sol já está se pondo. Daqui a pouco vai escurecer de novo: mais
uma noite. Melhor eu me apressar. Onde está você, Morgan?