11

Deixamos em casa uma Naomi exausta, mas sorridente, devolvendo-a a uma família

mais tranquila, que parece ter acabado de se salvar de uma epidemia.

Pai e mãe nos convidam para entrar, mas tenho pressa. Não consigo pensar em

outra coisa além do meu quarto revistado de cima a baixo.

Sarl sabe disso e recusa o convite:

— Obrigado, mas prometi à mãe de Alma que a levaria para casa

imediatamente. Quem sabe outra vez...

— Obrigado, tenente, por tudo o que fez por nossa filha — diz o pai,

comovido.

— Claro, muito obrigada pelo que fez — repete a mãe, que parece não

encontrar o que dizer, logo ela que sempre queria dar a última palavra. É verdade

que, às vezes, um evento traumático serve para restabelecer o equilíbrio das coisas.

Sob nossos olhos, Naomi mergulha no abraço de seus pais. Quando a porta se

fecha atrás deles, Sarl e eu já estamos no elevador.

— Sente falta do seu pai?

Estranho, ninguém mais me pergunta isso.

— Não, acho que não. Ele nos abandonou, então não quer saber de nós. E

também não queremos saber dele.

— Talvez o seu irmão precise dele.

— Aprendeu a viver sem ele há muito tempo. Além do mais, se ele ficou do

jeito que está, foi graças a meu pai.

— Sua mãe me disse que você tem problemas com Evan, que não se entendem

muito bem.

— Na verdade, nem nos falamos. E, para ser sincera, Evan tem problemas com

todo mundo.

Fico pensativa, lembrando a noite no ginásio, a barra de ferro em minhas mãos,

pronta para cair em cima dele.

Sarl percebe.

— Não gosta muito de falar sobre isso, não é?

— Não muito. Na verdade, não tenho nada a dizer. Ninguém escolhe a família

em que vai nascer. E eu, com certeza, não escolhi a minha.

— Não fale assim. Tem uma mãe maravilhosa e uma irmãzinha adorável.

Quanto a Evan, quem sabe com o tempo...

— É verdade, Lina é adorável — corto secamente, mas o tom que ele usou para

dizer que Jenna e maravilhosa nao me escapou. Acho que gosta dela, de alguma

maneira.

Voltamos para o carro. Estabelecemos um acordo tácito de silêncio. Pela

primeira vez naquele dia, penso em Morgan e choro.

♦♦♦

Em casa, Jenna está agitada, Evan não está, Lina aperta a boneca preferida nos

braços como se quisesse garantir que tudo está bem.

— Finalmente! — exclama Jenna, assim que me vê entrar, correndo para me

abraçar. Acho que já fui bastante abraçada no dia de hoje.

— Oi — é tudo que digo.

— Muito obrigada por trazê-la - diz em seguida a Sarl.

Ele parece feliz, mas meio sem graça.

— Preciso ir. Alma, por favor, me ligue se lembrar de alguma coisa.

Concordo e ele sai pela porta nova e blindada.

— Ele já lhe contou o que houve, não?

— Contou.

— Dei uma checada. Acho que não falta nada nas suas coisas, mas é melhor

você ver.

Vamos juntas para o meu quarto, implacáveis como um pelotão de fuzilamento.

Quando chego, as coisas parecem bem piores do que imaginava. Está tudo de cabeça

para baixo: lençóis, livros, cadernos, roupas, fotos. Quem entrou aqui com certeza

estava procurando alguma coisa específica. O meu caderno roxo.

— Você sabe quem é o responsável por isso, Alma? Porque, se souber, vai ter

que me dizer e vamos denunciá-lo à polícia. Sarl me contou a história de Agatha, sua

colega de turma. O que ela fez é muito grave. É uma criminosa. Ah, essa sua escola...

— O que Agatha tem a ver com isso, agora? E a escola? Sabia muito bem para

onde estava me mandando quando me matriculou lá, mas a gente não tinha dinheiro

para mais nada, lembra? E no fundo não é tão ruim assim — digo, tentando

convencê-la de que não estou num covil de bandidos, mesmo sabendo que ela não

está totalmente enganada.

— Sarl falou que pode ter sido alguém que você conhece, alguém que sabia o

que estava procurando ou que queria se vingar por algum motivo. Tem alguém com

raiva de você?

— Xi, dá para fazer uma lista...

— Não é engraçado, Alma.

— O que não é engraçado é ver que um louco entrou aqui e fez esse estrago! —

digo, fingindo que estou furiosa. Na verdade, estou muito preocupada com minha

família e morta de medo no que me diz respeito.

— Tente ajudar a polícia, se puder. E olhe como fala comigo — conclui ela,

saindo do quarto.

Lina fica na porta, com a cabecinha apoiada na moldura. Olha para mim com

aqueles olhos grandes e meigos. Em seguida, chega mais perto, coloca a boneca

sentada perto da cama e começa a apanhar as coisas que estão no chão. Fico olhando

ela se mexer, leve como uma pluma, entre os destroços que cobrem o piso. De

repente, ao pegar uma moldura de vidro, ela corta o dedo. Corro para ver o que

houve. Tem um corte no indicador direito. Pego um lenço para estancar o sangue,

mas ela não deixa. Pega a minha mão e vira com a palma para cima. Usando a ponta

do indicador ferido, escreve uma coisa com sangue. São quatro letras maiúsculas:

‚AM0R'.

Olho no fundo de seus olhos, límpidos e serenos. Vejo um mundo lá dentro. O

seu. Povoado de silêncio e paz, duas coisas que já nem lembrava mais.

Acho que está dizendo que me ama. Estanco o sangue com o lenço e dou um

beijo em seu rosto. Ela sempre consegue me surpreender e me ajudar com seus

pequenos gestos, que para mim são grandes porque chegam justamente quando mais

preciso.

Vou buscar um curativo e coloco em seu dedo. Só então vou limpar a palma da

minha mão. Olho as quatro letras desaparecerem da pele. Sei que ficarão impressas

para sempre em meu coração.

Terminamos com a arrumação. É muito bom que Lina exista, muito bom não se

sentir tão sozinha.

♦♦♦

Antes de dormir, olho para o círculo de luz que o horripilante abajur cor-de-

rosa projeta no teto. E me vejo fazendo dois pedidos: primeiro peço para não escrever

mais nenhum conto; segundo para encontrar logo uma pista, pelo menos uma, que

me ajude a entender em que confusão estou metida.