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Voltar para casa com um gato nos braços e tentar convencer Jenna a ficar com ele vai

ser difícil, mas fazer isso com a aparência de quem encontrou o bichano dentro da

boca de um vulcão diminui muito as chances de sucesso. A casa de Agatha me

engoliu, mastigou e cuspiu como um alimento indigesto, cujas características

orgânicas passaram integralmente para mim. Sem contar a pele, que alterna manchas

vermelhas de tanto esfregar, com pontos negros daquele pá horroroso que parece

grudado em meus poros. Os olhos são duas lesmas enormes, cuja concha alguém

quebrou deixando à vista o corpo nu e vermelho de sangue. Quanto aos cabelos, estão

despenteados e cheios de tufos que parecem ter sido mergulhados em cola. O suéter

parece o pelo de um dálmata, cheio de manchas pretas, e a gola parece uma

rosquinha malfeita. Deixo o gato no chão por um instante e fecho a jaqueta até em

cima para disfarçar os danos. Trato de me arrumar da melhor maneira possível e me

preparo para enfrentar o meu destino, com Gato novamente nos braços.

A chegada não promete. A primeira pessoa que encontro é Evan: ele olha com

nojo, como se eu fosse um monte de estrume fumegante, e diz:

— Vou vomitar!

Muito obrigada, como sempre. Mas não é com ele que estou preocupada agora.

Avanço até a sala.

— Oi, Jenna — digo. Ela está de costas, na cozinha, lavando a louça.

— Finalmente! Sabe que horas... — Quando me vê, as reclamações ficam

bloqueadas na garganta, como se tivessem ficado grandes demais para conseguir sair.

— Nossa, o que aconteceu? E esse gato? O que significa isso, Alma? —

pergunta, lançando um olhar perplexo para Gato.

— Achei na rua. Não é lindo?

Lina, que chegou do quarto, parece apreciar enormemente o novo hóspede.

Coloco o gato no seu colo e fico olhando enquanto ela vai brincar com ele no tapete.

— Viu, Lina gostou.

— Nem pensar! E lembre-se de que ainda não explicou o que fez para ficar

desse jeito. Parece que escapou de um incêndio.

Nessa altura dos fatos, tenho duas possibilidades: ou conto a verdade, ou seja,

que se trata do gato de Agatha, que ela me pediu para tomar conta dele quando fui

visitá-la escondida, e que, para pegá-lo na casa dela, tive que desrespeitar a proibição

da polícia e entrar em seu quarto, onde dei de cara, literalmente, com as cinzas de

seus pais que ficaram uma parte dentro dos meus pulmões e o resto em cima de

mim, e que é por isso que estou desse jeito.... ou invento uma mentira colossal,

aquela do pobre gatinho salvo do incêndio, que sempre funciona e que seria um

ótimo jeito de não ficar de castigo em casa.

Opto pela segunda e começo a improvisar, tentando despertar piedade.

— Só notei por acaso. O pobrezinho estava escondido atrás de uns latões de lixo

e algum idiota resolveu se divertir tocando fogo neles. As chamas cortaram todas as

saídas do coitado e então resolvi salvá-lo. Dei um pontapé num dos latões para

afastá-lo e ele quase explodiu, e um monte de lixo meio queimado, fedendo mais que

um peixe podre, caiu em cima de mim.

— Por favor, Alma!

— Bem, de qualquer jeito, consegui libertar o gato e vim embora. Mas ele

começou a me seguir. Queria vir comigo. Foi ele quem decidiu.

É verdade, foi o que aconteceu.

— E você acha que eu devia mudar de ideia só porque foi ele quem decidiu?

— Não, mas Lina talvez mude.

E, na verdade, os dois já pareciam bons amigos: Lina segura um esquilo de

pelúcia pelo rabo e balança na frente dele, que tenta pegá-lo com a patinha.

Jenna lança um olhar que dispensa comentários: tudo bem, tantas você fez que

me convenceu, mas da próxima vez...

— Como é o nome dele? Já escolheu algum?

— Pensei em Gato.

— Gato? Quanta imaginação!

— Se preferir Ronrom...

— Por favor! — Ela vira para minha irmã. — E você, Lina, gosta do nome

Gato?

Ela concorda sorrindo.

— Bem, então está resolvido — digo.

— A não ser que queira dar sua opinião, Evan.

Meu irmão estava entrando na sala naquele momento. Está com a caixa da

guitarra na mão e já vestiu a jaqueta.

Dá uma olhada de puro desprezo para o gato e destila sua maldade:

— Façam o que quiserem, só quero que esse monte de pulgas fique bem longe

de mim e do meu quarto. Juro que se encontrar esse gato nas minhas coisas vou

devolvê-lo empalhado.

— Evan! Por que é sempre tão... — mas Jenna não tem tempo de acabar a frase,

pois ele dá as costas e vai em direção à porta.

Gato olha para ele e depois, com plácida superioridade, olha para mim como se

soubesse que Evan nunca vai ter coragem de fazer nada com ele.

Quando chega a hora de dormir, Gato resolve onde vai ficar e, como se soubesse,

escolhe a minha cama.

Estamos só nos dois no quarto agora. Olho para ele. Não nego que ter que

dividir meu espaço com um animal é meio chato, especialmente um gato. Fala-se

muito dos gatos, sobretudos os pretos. Alguns acreditam que são a encarnação do

maligno, outros dizem que trazem má sorte. Mas também são venerados, como em

certas religiões antigas. Algumas pessoas não gostam de ficar por perto, com medo

daquele olhar misterioso. Para ser sincera, Gato provoca certo temor reverencial,

como todas as coisas muito bonitas, mas impressiona porque parece ter uma

consciência das coisas que vai muito além do seu ser de gato.

De todo modo, agora está aqui comigo e, de um jeito ou de outro, vamos acabar

nos acostumando um com o outro. Até que não é ruim.

Já me sinto menos sozinha.