Domingo de manhã.
Um lindo sol brilha no céu límpido e os sinos das igrejas ressoam no ar. É uma
melodia festiva, de convocação dos fiéis. Às vezes, sinto inveja deles, que sabem o
que fazer e para onde ir. Tudo já está estabelecido, indicado. Basta acreditar.
Eu, ao contrário, nunca acreditei em nada, a não ser em mim mesma. E agora
começo a duvidar até dessa única certeza.
Estou me arrumando para visitar Agatha. Quando já estou na porta, percebo
que estou vestida de preto dos pés à cabeça. Astral baixo ou alguma morte à vista?
Não dou bom-dia a ninguém, não encontro ninguém. Ouvi a porta de entrada
abrir e fechar bem cedo essa manhã. Sei que Jenna prometeu levar Lina ao parque de
diversões, que reabriu há pouco tempo, depois da trágica morte do engenheiro que o
construiu. Os proprietários estão convencidos de que o riso das crianças pode
devolver um pouco de alegria ao lugar, mas acho que ninguém que saiba da história
vai conseguir andar na montanha-russa sem sentir um arrepio extra: de terror. E eu
não tenho paz por causa do que escrevi sobre aquela morte horrível. De que adianta
saber com antecedência o que vai acontecer, se não posso fazer nada para impedir?
Antes de sair, tenho tempo de reparar que não sinto aquele cheiro habitual das
frituras de Gad no ar. Olho para a porta fechada do quarto de Evan, à minha
esquerda. Se está em casa ou não, já não faz a menor diferença. Desde a nossa última
conversa, na cozinha, acho que não tenho mais nenhuma esperança de me acertar
com meu irmão. Nunca me importei muito com ele, pelo menos era o que pensava
até o momento em que tentei matá-lo. Ainda não consigo refletir sobre aquela noite
de uma maneira mais racional. Mas as sensações que tive ainda estão à flor da pele.
Como pude? O que ou quem me fez agir daquele jeito?
♦♦♦
O centro de detenção para menores fica na zona norte da cidade, alguns
quarteirões atrás da estação de trens. Nunca tinha estado por aqui. Olho ao redor,
como um turista num país estrangeiro. Não é que tenha muita coisa para ver, mas se
existe uma qualidade que reconheço nesta cidade é a variedade das zonas e dos
quarteirões que a compõem. Aqui, por exemplo, não há arranha-céus, nem casas
particulares com jardins, mas somente longos conjuntos habitacionais que parecem
saídos diretamente de uma caixa de construções prontas. Estão enfileirados um ao
lado do outro, em perfeita ordem, em sua simples e perfeita miséria. Nunca apreciei
as geometrias esquemáticas demais. Acho que existe muito mais harmonia nas coisas
mais irregulares.
O ônibus me deixa bem na frente do centro de detenção. Desço, deixando um
único passageiro a bordo, um senhor de rosto enrugado, com aparelho auditivo
encaixado ao redor da orelha como um enfeite tribal. Olhando bem, ele dá a
impressão de que viaja pela cidade sem nenhum objetivo, consciente apenas de qual
será o seu destino final.
Diante dos meus olhos se ergue o centro de detenção para menores. É um
daqueles edifícios que ninguém procura, mas que não pode deixar de notar quando
topa com ele por acaso. Como todo mundo que vê alguma coisa diferente, estranha,
você olha, mas logo desvia os olhos curiosos, porque se sente culpado: sabe que lá
dentro só há sofrimento, enquanto você, aqui fora, está bem e livre. Em seguida,
resiste à tentação de dar uma última olhada e deixa aquilo tudo para trás, na
esperança de esquecer rapidamente. Do lugar onde estou, o exterior do prédio parece
idêntico a uma escola, com pátios e janelas. Chegando mais perto, as diferenças
aparecem: barras, arame farpado, guardas. Mas a impressão de que, no fundo, seria
uma metáfora perfeita da escola não me abandona.
O portão é alto, fechado, intransponível. À direita, na guarita, há um homem
com um rosto comum, que olha para mim através do vidro da cabine à prova de
balas.
Chego mais perto e entrego a carta de San. O homem não diz nada. Só lê.
— Pode entrar — me despacha ao final da leitura, abrindo o portão.
Quando entro, tenho a nítida sensação de que tudo ficou diferente. Olho para
trás e repito que é impossível. São apenas três passos, mas é como se tivesse entrado
num outro mundo, separado do mundo das pessoas livres por uma redoma. E agora,
eu estou dentro dessa redoma.
Não há ninguém à vista. Caminho lentamente para uma porta que parece ser a
entrada. O ar é pesado, carregado. Levanto os olhos para as janelas gradeadas.
Imagino que tudo Lí dentro seja vedado, hermeticamente fechado para não deixar
nada sair, sobretudo o mal. Quase como se fosse um vírus que pode se espalhar.
Empurro a porta. Pesada, ela também oferece resistência. Parece que quer me
convencer a não entrar.
Entro num ambiente pequeno, que parece o hall de um hotel de riferia, tipo
pensão familiar. No chão de linóleo escuro há um triânulo de plástico amarelo com a
seguinte inscrição: CUIDADO! CHÃO ESCORREGADIO. Uma combinação
nojenta de cheiro de detergente floral com prazo vencido e água sanitária penetra em
minhas narinas. Na minha frente, vejo uma espécie de portaria com outro guarda no
interior. Ao contrário do primeiro, ele sorri e exibe um grosso bigode avermelhado
que se enrosca vaidosamente nas bochechas.
À esquerda, uma fila de cadeiras de plástico marrom abriga um casal de mãos
dadas, provavelmente os pais de alguém que está preso ali.
Olham para mim, mas logo retornam às suas misérias.
Entrego a carta de San ao novo guarda. Seria maravilhoso se as coisas
funcionassem assim na vida: você entrega uma carta, um passaporte para a felicidade,
e as coisas entram em seus devidos lugares. No entanto, minha carta só serve mesmo
para entrar num lugar que deveria tar bem distante dos planos de uma jovem como
eu.
— É uma amiga? — pergunta ele, lendo o nome de Agatha na carta.
— Colega de turma.
— Receber alguém vai lhe fazer bem. Desde que chegou, ela não tem
socializado muito.
Não sei por quê, mas isso não me surpreende.
Ele me passa uma folha de papel.
— Assine aqui, por favor. É a lista de presenças.
Faço o que ele pede, esperando que me deixe passar de uma vez.
— Espere um instante.
Dá um telefonema. Logo em seguida, a porta da direita se abre r outro homem
aparece: mais um guarda penitenciário.
— Pode ir com ele — me diz obiodudo.
Nesse meio-tempo, o outro já está andando. Mal tenho tempo de entrar e a
porta volta a se fechar.
Estamos num corredor longo e estreito, sem janelas e iluminadas por uma fila
de luzes fluorescentes suspensas sobre nossas cabeças. No fundo do corredor, um
portão idêntico aos que aparecem nos filmes sobre prisões. Do outro lado, um guarda
trata de abri-lo ao nos ver chegar. O corredor do lado de cá é mais largo e tem
algumas portas fechadas. O agente que me acompanha abre uma delas e faz sinal para
que entre.
É uma sala completamente nua, iluminada por uma única janela retangular,
protegida por grades. A decoração é muito precária: quatro mesas retangulares de
fórmica verde e duas cadeiras em cada uma. Na minha frente, mais uma porta
fechada. Ao contrário das outras, tem um pequeno vidro retangular na altura dos
olhos, para que os guardas possam ver o que acontece dentro da sala.
— Pode se sentar aqui.
Diz isso e se posiciona ao lado da porta que ficou nas minhas costas à espera.
Depois de alguns segundos, a porta com vidro se abre e Agatha entra, seguida
por um agente. Não está de algemas, usa um macacão azul com um suéter cinza, sem
forma e grande demais para ela, por cima.
Olha para a frente, como se eu não estivesse ali, mas o guarda a acompanha até a
mesa onde estou sentada, segurando seu braço. Ela se senta na minha frente, de olhos
baixos. O guarda sai por onde entrou.
Está ainda mais magra e pálida do que antes, como se suas cores tivessem se
apagado, os cabelos ressecados, os olhos cinzentos, até a pele parece transparente.
Parece murcha, sem vitalidade, como uma árvore jovem que não tem força suficiente
para crescer.
Embora não seja um sentimento comum em mim, não consigo deir de sentir
pena dela e, ao mesmo tempo, um forte desprezo por mim mesma pelo que fiz. Não
se trai uma amiga. Nem se for uma assassina.
— Oi — digo, cautelosa.
Ela não responde, mas cai na gargalhada. Ri alto, nunca a vi rir daquele jeito.