Fora da sala de audiência o tempo passa lentamente. O corredor está calmo agora. Os
jornalistas se dispersaram como um monte de caranguejos quando a onda bate. Só
ficaram alguns, também à espera, sentados num banco ao lado do meu. Vejo que
falam da seita de Tito, de outros delinquentes como ele e da série de suicídios de
jovens. Não quero ouvir.
Trato de me concentrar no policial que está de guarda na porta da sala. Olha
fixamente para a frente, completamente mergulhado em seus pensamentos. É como
um daqueles cães enormes que ficam deitados na entrada das cidades: parecem
adormecidos, mas empinam as orelhas ao menor barulhinho. Cada um de nós tem
uma superfície, que muitas vezes reflete com dramática exatidão o que os outros
querem ver, e um fundo, no qual se movem e ficam encalhados os sentimentos
verdadeiros, os que não temos coragem de confessar.
Pego minha mochila, da qual não me separo um segundo, e levanto para ver a
hora. Percebo que lá fora a escuridão já caiu. Um grande relógio colocado em cima
da escada marca seis horas. Naomi já está lá dentro há três. Como será que estão as
coisas? Espero que tudo acabe o mais rápido possível, que Naomi saia daquela sala
depois de obter justiça e que eu possa retomar o rumo da minha vida.
— Alma! — Ouço uma voz dizer meu nome.
Estou diante do tenente Sarl, com sua jaqueta de couro preto. Tem os olhos
meio vermelhos e um ar cansado, mas nem por isso deixa de dar um meio sorriso. Ele
cheira à água-de-colônia misturada com tabaco.
— Pensei que estivesse na audiência, tenente.
— De fato deveria estar lá, mas houve uma emergência.
Sua expressão é preocupante.
— Que emergência? Outro homicídio?
— Não, por sorte. Mas... é uma coisa que tem a ver com você, sinto muito. —
Põe as mãos em meus ombros. Fico tensa na mesma hora e um arrepio gelado
percorre minha espinha. — Alguém entrou em sua casa. Sua mãe me ligou na hora
em que estava saindo do meu gabinete para vir para cá.
— Oh, não! Está todo mundo bem? Lina? — Respiro ofegante, absorvendo o ar
como se fosse acabar a qualquer momento.
— Não se preocupe. Estão todos bem. Nem estavam em casa.
— Como conseguiram entrar?
— Arrombaram a porta. Já chamei um serralheiro para instalar uma porta
blindada. É mais seguro.
Roubaram alguma coisa?
— Não, sua mãe encontrou a porta aberta quando chegou, mas tudo estava no
lugar... — diz San, deixando a frase em suspenso.
— Não estou entendendo. Se não houve nenhum roubo...
Na verdade, Alma, um dos quartos foi revirado de cima a baixo, só um.
Tenho medo de saber.
— O seu.
Arregalo os olhos como se não conseguisse mais segurá-los nas órbitas. A
mochila no ombro direito parece queimar, como se fosse uma prova evidente de
culpa. Meu caderno está lá, a um passo da lei que Sarl representa. Era isso que a
pessoa que invadiu meu quarto estava procurando? Acho que sim. Talvez fosse um
Master, alguém que poderia ter atacado minha família. Meu Deus, o que significa
essa violência que está apertando o cerco a meu redor?
Dou um passo para trás e os braços do tenente Sarl ficam alguns instantes no ar.
—Tem alguma ideia de quem poderia ser? Talvez alguém da escola, alguém
com quem brigou e que quis se vingar?
Involuntariamente, Sarl está me oferecendo a possibilidade de um bode
expiatório.
— Não sei, mas poderia ser. Bandido é o que não falta na minha escola. —
Penso em Adam. — Um deles tocou fogo na sala do diretor algum tempo atrás.
— Ouvi falar.
— E, depois, teve a Agatha.
— Pois é. Uma bela coleção de crimes. De todo modo, seja quem for, parecia
estar procurando alguma coisa. Sua mãe deu uma olhada no quarto, mas não tem
certeza se está tudo lá. Por isso, peço que verifique e me informe. Até o menor
detalhe pode ser um indício útil.
Como lhe contar que sei perfeitamente o que a pessoa estava procurando e que o
objeto em questão está bem aqui, diante dele?
— Tudo bem.
— Confio em você.
Abaixo os olhos. Tenho medo que ele leia nos meus olhos a vergonha que estou
sentindo.
Ainda bem que ele muda de assunto.
— Está aqui para o processo contra a seita?
Concordo, embora meus pensamentos estejam bem longe. Tenho pressa de
voltar para casa.
— Tito e seus cúmplices serão condenados graças ao testemunho de Naomi.
Pode ter certeza.
— Espero. E sobre os assassinatos? Li nos jornais que outro homem foi
encontrado morto, o proprietário de uma papelaria.
— Infelizmente, sim. Ainda estamos à espera dos resultados da autópsia para
levantar algumas hipóteses mais concretas. Mas duvido que esse homicídio esteja
ligado aos outros.
— Por quê?
— Modos de agir diferentes. Embora a causa da morte ainda não esteja clara no
caso da papelaria.
Como matam os Masters?, fico pensando.
— Tudo o que sabemos até agora sobre os outros homicídios é que o único
suspeito que prendemos, e que se suicidou em seguida, não fazia parte da seita
satânica. É bastante provável que não atuasse sozinho, mas junto com outros jovens
assassinos. Se isso for mesmo verdade, ainda temos que descobrir a que organização
pertencem e o motivo pelo qual cometeram os assassinatos.
— Está pensando numa verdadeira organização criminosa?
— É possível. Há uma espécie de ritual no modo como são mortas e...
penduradas as vítimas. Indica uma matriz comum. A simples ideia de que alguém
esteja convencendo jovens a cometer ações desse tipo já me dá vontade de mudar de
profissão.
Como não entendê-lo?
— Quer dizer que estão investigando o rapaz que se suicidou?
— Sim, e espero obter algumas respostas logo. Mas não quero que se preocupe
com esses detalhes. Fale um pouco de você. E os artigos, estão indo bem?
— Humm, é... muito bem. Mas esses detalhes me interessam muito.
— Pode me mandar um exemplar do jornal quando for publicado?
— Claro! — continuo mentindo. Fiquei muito boa nisso.
Naquele momento, a porta da sala 33 se abre. Os jornalistas surgem como
cogumelos depois da chuva e cercam os primeiros a sair.
— Venha, vamos até lá também — diz Sarl apoiando a mão entre meus ombros
—, depois levo você e Naomi para casa.
Vou atrás dele, confiante, pelo menos na carona.
♦♦♦
Sarl e um de seus agentes afastam Naomi da tempestade de perguntas e fotos
que cai sobre os protagonistas do processo. Mal tenho tempo de sorrir para ela e
pronunciar um rápido ‚como foi?', antes que seja arrastada pela multidão que se
dirige para a escada. Protetor, SarI segura Naomi pelo braço. Um policial segue os
dois de perto. E eu sigo o policial.
Os jornalistas nos perseguem até a saída do tribunal e de lá até o carro,
estacionado bem na frente do prédio. Outro policial já está na direção, pronto para
partir. Naomi e eu nos instalamos no banco traseiro, Sarl ao lado do motorista. O
agente que nos acompanhava cumprimenta o tenente e volta para o tribunal. Motor
ligado, nos afastamos rapidamente com as sirenes ligadas.
Pelo vidro traseiro vejo a multidão desiludida abaixar as armas da informação
moderna. Naomi continua em silêncio, imóvel.
Toco seu braço com a mão gelada. Ela vira para mim. Está com os olhos úmidos
de emoção.
— Consegui.
Pela primeira vez em muito tempo, o coração bate de felicidade dentro do meu
peito.
— Estou orgulhosa de você. Foi condenado?
Foi. Quatro anos de prisão. E terá que se submeter a sessões psiquiátricas
regulares.
Dou um suspiro de alívio. Finalmente, alguma coisa que caminha na direção
certa.
— Foi muito corajosa, Naomi — acrescenta o tenente Sarl. — Meu nome é
Sarl, sou da Delegacia de Homicídios: nos vimos algumas vezes no comissariado.
— Claro, lembro do senhor. E agradeço por tudo. Seus homens foram muito
gentis comigo.
Sarl sorri.
— É nosso dever...
Olho para ele. É bondoso e confiável, um pouco rude, talvez, mas só na
aparência. Ele vira e fixa os olhos na rua à sua frente.
— Foi difícil? — pergunto à minha amiga.
— Foi, estava com muito medo. E continuei com medo até o momento em que
o vi.
—Tito?
Ela faz que sim.
— Todo arrogante, como se tivesse certeza de que ia se dar bem.
Relembro sua risadinha antes de entrar na sala e entendo o que Naomi quer
dizer.
— Mas não podia conseguir, pelo menos não dessa vez. Resolvi que ia deixar de
ser uma vítima, que não teria mais medo.
Enquanto fala, seus olhos brilham com uma luz forte e orgulhosa, a mesma que
preciso ter para não me entregar.
— Obrigada, Alma, por ter me esperado e por ficar sempre perto de mim —
conclui Naomi, me abraçando. Sinto o calor de seu corpo em contraste com o meu. É
o calor da paz reencontrada.
Assim abraçadas, por um segundo nos sentimos realmente invencíveis.