Estou pronta, imóvel diante da porta. Tenho medo de abrir, de começar aquele dia,
aparentemente igual a todos os outros, mas na realidade o primeiro de uma vida que
não será mais como a que tinha antes. A escola, minhas amigas, seus problemas, a
partir de hoje tudo aquilo ganha contornos diferentes e infinitamente mais distantes.
— Estava esquecendo de lhe dizer — chama Jenna, um segundo antes de eu
abrir a porta.
Tem um bilhete na mão. Sinto um arrepio, não sei por quê.
— Uma menina ligou para você ontem.
— Por que não me disse ontem à noite?
— Esqueci, ora!
— Era importante!
— Acontece nas melhores famílias, às vezes — rebate ela, sorrindo.
— Com você então... — respondo brincando.
Ele faz uma careta, fingindo que está ofendida.
Pego o bilhete.
— Obrigada.
Jenna volta a seus preparativos matinais e eu leio o pedacinho de papel dobrado:
‚NINA— 910 091 99.'
Ela ligou.
Talvez tenha lembrado alguma coisa. Talvez esteja encrencada.
É uma Não Nascida, penso comigo.
Ela também.
É uma sensação estranha, mas agora que sei quem sou, quem somos, o medo
que sinto é diferente. É a diferença entre ter um inimigo desconhecido e saber quem
você vai ter que enfrentar. O Leviatã, meu... Pai. A simples palavra já me dá horror.
Nunca tive um pai.
Paro ao lado do telefone e resolvo ligar. Talvez ainda esteja em casa.
Sem hesitar, levanto o fone e digito o número. A linha está livre.
No segundo toque, uma voz feminina responde e, por sorte, não é uma
gravação.
— Alô.
— Bom dia, é a...
— Sei quem é... Sou Nina.
— Oi, que bom que resolveu ligar.
— É, preciso falar com você.
— Estou indo para a escola agora, mas...
— Agora. É urgente, por favor.
Pela voz, parece desesperada.
—Está bem.
Penso rapidamente num local seguro. Não posso voltar ao Refúgio, Morgan
proibiu. É melhor um lugar cheio de gente ou um lugar mais tranquilo?
— Vamos nos encontrar no Parque Pequeno, perto do centro. Em meia hora,
certo?
Do outro lado não há resposta. Caiu a linha? Desligo, esperando que tenha
ouvido. Claro, penso, se não tivesse ouvido, teria ligado de novo.
Preciso avisar Morgan e só tem um jeito, já que ele não vai mais à escola. Corro
até meu quarto em busca de alguma coisa vermelha. Não gosto muito dessa cor, por
isso demoro a encontrar. Finalmente, descubro uma velha echarpe de viscose que
nem lembrava mais que tinha.
Vai ficar uma beleza com o pulôver verde!, penso com uma careta de desgosto,
embora a moda seja a última de minhas preocupações nesse momento. Enrolo a
echarpe no pescoço e volto para a entrada, onde Jenna e Lina estão prontas para sair.
Hoje todo mundo se atrasou.
— Tudo bem? — pergunta Jenna.
—Tudo, claro!
Devo estar com uma cara meio tensa, sem falar no look esquisito. Jenna
pergunta se quero carona. Não faz isso nunca e resolve fazer justamente no dia em
que vou matar aula. Inacreditável.
Um pouco mais tarde, finjo que entro na escola para tranquilizá-la, espero que
pegue o caminho para o hospital e saio pelo pátio. Ou, pelo menos, tento. Sinto um
olhar apontado para mim. Quando me viro, só vejo um par de óculos escuros. É o
Professor K, imóvel, olhando para mim ao lado do portão. Não tenho certeza, mas
tenho a impressão de que sabe aonde estou indo e o que vou fazer. Mas não faz nada
para me deter. Ao contrário, de repente ergue a mão e acena — noto que não está
mais enfaixada. Em seguida, desaparece no pátio, cada vez mais misterioso.
Vou me afastando da escola quase correndo. Espero não encontrar mais
ninguém, mas não tenho sorte. Na primeira esquina, dou de cara com Seline, que me
olha como se eu tivesse acabado de desembarcar de uma astronave.
— A que houve com você, Alma?
— Por quê? — me faço de desentendida.
— Que roupa é essa?
Sabia que ia reparar.
— A de sempre... Só coloquei essa echarpe.
— Estou vendo!
Ficamos em silêncio por alguns instantes, até ela perceber que não tenho
intenção de ir à escola.
— Vai para onde?
— Tenho... uma consulta com o médico.
— Uma consulta? E por que veio até a escola, então?
— Bem... porque tinha esquecido de avisar você. Ainda bem que nos
encontramos...
— Ah... legal! — ela sorri.
— Não queria que ficasse preocupada. Agora que Naomi foi embora, ficamos só
nós duas: temos que nos unir.
— É verdade. Espero que não seja nada grave.
— Como assim?
— A consulta.
—Ah, não. Só rotina. Sabe como é, depois do acidente os médicos querem me
monitorar, como dizem eles.
— Não esqueça de me contar como foi. Vai entrar mais tarde?
— Se der tempo, vou. Senão, a gente se fala de tarde.
— Está bem. Vou estar em casa. Na verdade, ia sair com Adam, mas ele não vai
poder — diz com uma expressão triste.
— Está tudo bem?
— Na verdade, não. Não dá certo, é só isso. Bem que você avisou. E no fundo
eu sabia que ele não era mesmo confiável... Só que dessa vez ele não fez nada de
errado: não me enganou. Só não parece muito interessado — conclui.
— Ainda vai encontrar a pessoa certa para você, Seline, tenho certeza. Bem,
desculpe, mas tenho que ir senão vou chegar atrasada.
É assim que nos separamos: eu corro para o parque e ela caminha lentamente
para a escola. Não sabe que eu daria tudo para trocar com ela, para trocar minha vida
pela dela.
♦♦♦
Apesar do atraso, chego primeiro à entrada do parque.
Sento num banco e olho para o céu opaco que, visto através dos galhos das
árvores, parece uma velha renda amarelada pelos anos. O sol não passa de uma luz
refletida pelo colchão de nuvens que pesam sobre a cidade.
O ar, carregado de umidade, tem cheiro de terra. Volto a pensar no desenho de
Lina, no homem enterrado ligado ao homem vivo por um fio vermelho. Vermelho...
como a echarpe que tenho no pescoço, o sinal combinado para chamar Morgan.
Qual é o significado do vermelho? Para mim, nunca teve significado algum até
agora. Era simplesmente uma cor que eu detestava.
Ela não demora muito a chegar. Dentro de uma jaqueta impermeável cinza-
escuro, Nina caminha depressa, os braços cruzados no peito, com a atitude de quem
está se protegendo de alguma coisa. Está com uma mochila nas costas, que logo
reconheço: é a mesma que usava na noite em que tentou matar o escritor!
Faço um esforço para ficar impassível. Onde está você, Morgan?
Não viu a echarpe vermelha? Não devia estar de olho em mim?
— Oi — digo quando ela para na minha frente.
— Oi — responde, evidentemente perturbada.
— Vamos dar uma volta?
Ela me segue sem dizer nada.
— Por que queria me ver com tanta urgência? — pergunto sem rodeios.
— Aconteceu uma coisa.
— Que coisa?
— Encontrei isso em cima do meu armário... — Aponta a mochila. — Achei
estranho porque não lembrava de ter colocado nada lá. Quando fui ver, notei que era
muito pesada e resolvi abrir. E lá dentro... lá dentro tinha...
— Pregos, martelo, cordas, um punhal...
Ela arregala os olhos quase em pânico. Sua voz treme de emoção.
— Como é que você sabe?
— Da mesma forma que sabia dos arranhões em sua mão.
— Aquela história do escritor de novo?
Faz a pergunta com uma mistura de resignação e desprezo, como se soubesse
que, querendo ou não, é a única explicação possível.
— Temo que essa história seja sua, Nina.
— Você é maluca!
Deixa a mochila cair no chão e desata a chorar. Observo a cena pensando em
mim mesma, muito tempo atrás, às voltas com as primeiras lágrimas da minha vida.
Não sei o que dizer, a não ser:
— Calma, fique calma. Talvez eu possa ajudar, se parar de chorar.
Ela enxuga os olhos claros, exausta.
— Desculpe. Quase nunca choro.
— Sei, eu também não chorava. Sonha?
— O quê?
— Sonha, pelo menos de vez em quando? Aposto que não, que não sonha
nunca. E que não sabe nadar, que odeia a água. Não é verdade?
— Como é que sabe tudo isso a meu respeito? Quem é você? Não me lembro de
você! Não conheço você!
— É verdade, a gente não se conhece. Mas nos encontramos no Bairro Oeste,
algumas noites atrás.
Ela começa a bater nas têmporas com os punhos.
— Por quê, por que não consigo lembrar?
— Existe um motivo, mas agora precisa se acalmar.
Apoio a mão em seu ombro, mas ela salta como se tivesse sido espetada com
uma agulha.
— Desculpe, estou com os nervos à flor da pele. E depois...
— Eu sei, nunca suportou o contato dos outros.
Ela arregala os olhos, aterrorizada.
Fico me perguntando o que posso fazer por ela naquele momento.
— Por favor, me explique o que é tudo isso.
Ouço passos e só no último instante percebo que tem alguém às minhas costas.
Já estou pronta para gritar e fugir quando reconheço sua voz.
— Pode deixar que eu explico.
Morgan está ao nosso lado.
Nina olha para ele assustada. Mas eu o abraço.
— Ainda bem que chegou
Morgan me abraça rapidamente e me afasta. Naquela altura dos fatos, Nina está
mais confusa ainda.
— Quem é esse?
— Meu nome é Morgan. Oi, Nina.
— Como é que sabe meu nome? — Seu olhar corre entre nós dois, inquieto. —
Estão juntos nisso! É uma brincadeira de péssimo gosto! O que desejam? Têm
alguma ideia de quanto me assustaram?
— Ter medo é normal. Mas não é brincadeira, infelizmente. E estamos aqui só
para ajudar — diz Morgan, com toda a calma que consegue reunir.
— É verdade, Nina. Pode confiar em nós.
Ela sacode a cabeça, mas não parece convencida. Também não vai embora, fica
ali, hesitante, frágil.
— Pode ir agora, Alma. Vou ficar com ela.
Olho para ele espantada.
— Queria ir com vocês.
— Normalidade, lembra?
—Mas...
— Normalidade... e regras.
Abaixo a cabeça e faço o que ele manda.
Vou embora sem uma palavra. Quando viro, eles já estão fora do meu campo
visual. Imagino que foram para o Refúgio. Talvez ele a leve para fazer a prova da
água na sala das piscinas, depois vai lhe dar um macacão e ficará olhando enquanto se
veste.
Não, digo a mim mesma. Morgan não estava com nenhuma mochila hoje.
Nenhuma mochila e nenhum macacão.