O tique-taque ritmado de seus dedos no teclado do computador era o único barulho
que se ouvia no salão com mezanino que ficava na pequena torre da velha casa de
periferia, a única do Bairro Oeste que exibia aquela bizarra arquitetura medieval. No
interior, uma pequena lâmpada amarelada, no exterior a lua, enorme no céu noturno.
David estava sentado atrás da velha escrivaninha cheia de objetos, livros e papéis
empoeirados. Amava a poeira, achava a poeira fascinante, histórica. Foi por isso que
resolveu viver retirado na casa que tinha sido de seus pais: tudo ali dentro tinha
ficado exatamente como era, caótico e exagerado, coberto pelo espesso véu dos anos.
De vez em quando, dava um gole num café aguado, servido numa xícara lascada,
examinando as palavras brancas que se multzlicavam sobre a tela preta. A seus pés,
dormia um grande vira-lata que de vez em quando emitia uns leves resmungos. O
que será que você está sonhando, meu amigo?, pensou o escritor, ele que vivia de
mundos imaginários e para quem a realidade era apenas um sonho um pouco mais
real.
De repente, percebeu que o ar estava esfriando. Foi até a estufa de cerâmica cor
de tijolo, que ficava à direita, e constatou que estava quase apagando, de modo que
colocou mais lenha, ainda com o cheiro perfumado de bosque. Voltou em seguida
para o computador e para a história de seu protagonista, Giona. Sabia que estava
muito atrasado em relaçâo ao prazo de entrega combinado, mas sua agente já estava
habituada. Os prazos tinham uma importância bastante relativa para David e, com o
tempo, aquela impontualidade tinha se transformado numa forma de esnobar as
pessoas que passam a vida com os olhos grudados no mostrador de um relógio. David
nunca teve relógio.
Não tinham se passado mais de cinco minutos quando ouviu alguém bater na
porta. Ficou bastante surpreso. Com certeza, não era hora de visitas. Mas sua
imaginação ilimitada não demorou para produzir algumas explicações tão criativas
quanto absurdas. Desceu as escadas ainda pensando nessas possibilidades e foi até
aporta. Como se tratava de uma velha casa, um uma velha porta, ele não tinha como
saber quem estava do outro lado em abrir. E evidentemente não ia perguntar ‚Quem
é?'. Nunca fazia isso. Não se preocupava com nada. Tinha aprendido a viver na
superficie das coisas e a ignorar tudo o que ficava por baixo. Por isso abriu a porta
sem pensar.
Poderia esperar qualquer coisa menos dar de cara com uma moça tão bonita de
tirar o fôlego. Parecia uma bonequinha com o oval perfrito do rosto emoldurado por
cachos deliciosamente infantis e os olhos azuis, claros e poéticos. Meio hrpnotizado
por aquele rostinho, Davida convidou a entrar. Não reparou na mochila pesada que a
mocinha carregava nas costas nem lhe ocorreu que poderia conter os instrumentos de
sua próxima implacável morte.