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Adotada. E se Naomi tivesse razão?

Talvez Larissa tenha sido adotada. Ou, quem sabe, eu. Isso significaria que

Jenna mentiu para mim a vida inteira. Volto para casa cheia de perguntas e

expectativas, frustradas imediatamente pelo vazio que me recebe. Na mesinha da

entrada vejo o bilhetinho de sempre, que nem precisava ler, pois já conheço o

conteúdo de cor. Acabo lendo por atenção ou por culpa, sei lá. Jenna está no hospital,

Lina com uma amiga, e Evan não é sequer mencionado. Só para variar, não há

ninguém aqui, como se uma família não vivesse ali. Na mesa da cozinha encontro

um segundo bilhete de Jenna: ‚Para quem quiser, tem massa de forno no congelador.

Basta esquentar no micro-ondas.' Massa de forno no micro-ondas: que apetitoso!

Não, obrigada! Melhor um sanduíche fora, enquanto procuro a casa de Morgan.

Antes de sair, localizo o endereço que Adam me deu no mapa da cidade. Zona Oeste.

Ou seja, do lado oposto àquele em que me encontro agora.

Vou até o barzinho perto de casa, o mesmo onde li a notícia do primeiro

homicídio. Será que o gatinho que preparava meu café de manhã ainda trabalha lá?

Não entro naquele lugar há um bom tempo.

A esta hora, o bar está cheio. Alguns comem sentados nas mesinhas, outros em

pé no balcão, todos com um olho no relógio. Olho ao redor, mas o menino bonito

não está por ali. Uma pena. Um rosto familiar faria com que me sentisse menos

perdida. Em seguida, ele sai de uma porta atrás do balcão e me reconhece

imediatamente. Ganho de presente o seu melhor sorriso. Os olhos cor de avelã são

luminosos e vivos, parece feliz, daquela felicidade que você tem vontade de dividir

com todo mundo.

— Oi! O que deseja? — pergunta com voz clara.

Dou uma olhada rápida nos sanduíches expostos na vitrine do balcão como

carros estacionados num salão do automóvel.

— Um sanduíche de presunto com alface, sem maionese. Obrigada.

— E para beber?

— Um Chinotto com gelo.

— Quase ninguém mais bebe Chinotto.

— Melhor. Está cada vez mais difícil ser original.

— É assim que escolhe seus refrigerantes?

— Claro que não. Bebo porque gosto.

— É feito de laranja-da-terra, não? É amargo!

— Muita coisa é amarga. E depois, se não existisse o amargo, também não

existiria o doce. Não é?

— Já vi que gosta dos contrastes. Eu também gosto.

Lá vem ele tentando se insinuar. Se soubesse o que me passa pela cabeça, logo

veria que não tem nada a ver. Mas já que não sabe e não tem como saber, resolvo

ignorar a indireta.

— Vem cá, pode esquentar o sanduíche para mim?

— Claro. Pode sentar que levo tudo na mesa.

— Não, obrigada. Vou comer no caminho.

Ele olha para mim decepcionado. Talvez, entre uma conversa e outra, quisesse

me chamar para sair.

— Tudo bem. Pode ir pagando no caixa enquanto isso.

A mulher do caixa é aquela figura clássica: gorda o suficiente para encher,

usando um termo de teatro que combina bem com a figura, o pequeno camarote que

tem à sua disposição, com as unhas pintadas de vermelho brilhante, a tonalidade

certa para quem mexe com dinheiro, e uma maquiagem de boneca gigante com

prazo vencido. Os cabelos são uma nuvem loura, com o maior volume possível e mais

impenetravel que a floresta tropical.

— Quero pagar um sanduíche de presunto e um Chinotto.

— Cinco e cinquenta — diz ela com voz de cantora de ópera.

Olha para mim com olhos de porcelana contornados com delineador preto.

Entrego o dinheiro, e as moedas tilintam no pratinho diante dela.

Duas caras, duas coroas.

O menino dos olhos cor de avelã me entrega o saquinho e se despede.

— Até mais.

— Tchau.

Quando desembrulho o almoço, sinto um cheirinho de pão quente que me abre

o apetite. Pego o sanduíche e dou a primeira mordida. O presunto é mais perfumado

do que saboroso, tem um gosto de papelão no fundo, mas não importa. Já comi coisa

pior. Só lá pela terceira mordida é que percebo que dentro do saquinho, junto com a

latinha de Chinotto, tem um bilhetinho que não parece ser a nota. Pego com os

dedos cheios de migalhas de pão. Leio um número de telefone e um nome: Lore.

‚Ligue se tiver vontade.'

Um convite original, penso. Só faltava mesmo você, Lore, para complicar minha

vida! Amasso o bilhete e jogo de volta no saquinho. Abro a latinha e bebo um gole.

Pequenas bolinhas de anidrido carbônico borbulham em minha boca como loucas e

explodem liberando o sabor amargo de que gosto tanto.

Do fim da rua vejo meu ônibus chegando ao ponto. Melhor andar rápido. Mal

tenho tempo de entrar antes que o motorista feche a porta. Não parece muito

paciente, pelo jeito como dá a partida, pisando no acelerador sem nenhum cuidado e

correndo o risco de desequilibrar pelo menos a metade dos passageiros que estão em

pé, inclusive eu mesma.

Um tímido raio de sol fura a pesada cortina de nuvens que se concentram sobre

a cidade como um gigantesco guarda-chuva. Todos olham surpresos para aquele

lampejo de luz, tão raro que ninguém tira os olhos dele, com medo de que

desapareça. Parece um bom sinal. Pelo menos é o que espero.

Acabado o sanduíche, beberico o refrigerante. À medida que me aproximo do

bairro de Morgan, sinto a agitação crescer dentro de mim como uma espuma tóxica.

Coloco os fones no ouvido e tento me acalmar com música, mas não consigo ouvir

nem a primeira até o fim.

Desligo tudo, exceto a cabeça, que continua a funcionar, mesmo quando não

deve. Vejo meu reflexo no vidro do ônibus. Sou Alma ou Larissa? Larissa é Alma?

Quem está viva, quem está morta?

O meu ponto chegou. Desço. Jogo os restos do almoço na lixeira e tento

entender onde estou. É uma grande avenida arborizada, com as plantas nuas, ainda à

espera das folhas que vão cobrir seus galhos. Além da rua, ergue-se uma série de

arranha-céus como um maço de legumes brotando do cimento. Observo suas vidraças

perfeitas que abrigam negócios e vidas que importam. É uma zona rica, que não

conheço muito bem. Abro o mapa e vejo que direção devo tomar. A julgar pelo

mapa, o apartamento de Morgan fica num desses arranha-céus. É estranho, mas,

embora eu não soubesse onde ou como ele vivia, não esperava uma coisa desse tipo.

Espero que o sinal passe do vermelho para o verde e atravesso as seis pistas da

avenida. Aqui também é a mesma rotina: mesmo tráfego, mesmo caos, mesmo ar

digerido pelos motores dos carros.

Sigo pela calçada sem pensar em mais nada. Se desse atenção a tudo que me

incomoda no dia de hoje, provavelmente teria que ficar imóvel na cama, à espera da

chegada do juízo final. Portanto, avanço como se usasse antolhos e só enxergo o meu

objetivo: os arranha-céus.

Sopra um vento contrário e frio que me obriga a fechar a jaqueta leve demais até

o queixo. Abraçada a mim mesma, penso que nunca me senti tão sozinha quanto

agora.