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Logo em seguida, o Professor K se despede de todos.

Morgan fica conversando com ele na porta do Refúgio e eu fico sozinha com os

outros.

— O começo é difícil para todos — diz Christian, o mais sociável do grupo.

Acho que é o seu jeito de me dar boas-vindas e dizer que não estou mais

sozinha.

— Desde quando vocês sabem?

— Eu, há mais ou menos seis meses.

— E você? — pergunto a Raul.

— Dois anos.

— É por isso que é um viajante?

— Não é uma questão de tempo. Tem almas que nunca estarão prontas para

viajar, porque são muito fracas e frágeis.

— E o que fazem, se não podem ir para My Land?

— Podem acionar a bomba — responde Christian, apontando para a pequena

central de controle.

Raul concorda. É um sujeito estranho, que não se limita a olhar para você.

Encara as pessoas como se não conseguisse fazer nada sem aquele excesso de

intensidade que parece ser uma característica de sua personalidade. É algo que não

consegue evitar: é assim em tudo, até no tom cheio da voz, que ocupa o espaço não

apenas com o som das palavras, mas também com o poder e o peso que dá a cada

uma delas.

— Não é um jogo — acrescenta Anel, que não quer se sentir excluída.

— Acho que entendi — respondo. Em seguida, bocejo e peço desculpas. Estou

caindo aos pedaços.

— Pode descansar aqui, se quiser. Temos algumas camas na sala ao lado. Na

verdade, são estrados com um colchão, mas não são desconfortáveis.

Christian se afasta para o lado oposto da piscina. Vejo que se aproxima do que

parece ser uma simples parede, mas que na realidade esconde uma porta disfarçada

que abre assim que ele a toca.

— Venha — diz Anel, mais como uma ordem do que como um convite.

A porta secreta leva para um quarto não muito grande, com quatro caminhas

dispostas num perfeito estilo quartel, quatro mesinhas, duas cadeiras, uma das duas

com algumas roupas no encosto, um grande armário de madeira e dois lustres

pendurados no teto como dois ovos enormes. Nenhuma janela.

— É aqui que dormimos quando estamos no Refúgio — explica Christian.

— Então não vivem aqui?

— Não, pelo menos não todos. Só quem deixou definitivamente a família foi

Morgan, recentemente. Nós continuamos mantendo a ligação com a nossa vida

humana.

Tento imaginar o que significa viver sozinho naquele quarto. E fico me

perguntando se algum dia vai acontecer comigo também. Não, não quero nem

pensar. Não poderia deixar Jenna e Lina. E, para ser sincera, nem mesmo Evan.

Enquanto isso, Morgan retorna.

— Quer que leve você para casa? — pergunta ao me ver hesitar diante da porta

daquele cubículo.

— É, prefiro.

Rapidamente, nos despedimos dos outros.

— O professor recomendou que mantivesse a máxima discrição na escola.

Ninguém pode perceber nada. Ele continua a ser seu professor de ciências e você uma

aluna como as outras. É muito importante.

— Pode deixar, vou agir como se nada tivesse acontecido. Ninguém mais ganha

de mim nesse jogo deprimente.

♦♦♦

Dentro do carro, os sons da bomba que suga, das canetas que abrem portas, do

dique das fechaduras, da água que escorre ainda ecoam nos meus ouvidos. Parecem

tatuados nos meus tímpanos, sei que não se apagarão nunca mais.

— Onde ele os encontra? — pergunto de repente.

— Onde quem encontra o quê?

— É uma coisa que não entendi. Tudo bem com as almas, consigo imaginar a

coisa, mas onde o Leviatã encontra os corpos? Quer dizer, acho que não pode criá-los,

estou enganada?

— Não, realmente não pode. Pode surrupiar, roubar, mas não pode criá-los.

— E onde, de quem ele rouba?

— Usa os corpos de pessoas mortas, particularmente de pessoas que cometeram

suicídio.

Sinto uma vertigem.

— Suicídio?

— Sim, é uma lei cruel: para cada alma que não quer mais viver, existe uma que

deseja a vida desesperadamente. A primeira abandona o corpo que escolheu no

momento do nascimento, a outra é colocada nesse mesmo corpo pelo Leviatã, que o

torna ainda mais irresistível, como tudo que é maligno.

Escondo o rosto nas mãos, tentando entender o pensamento que passa pela

minha cabeça: então eu sou Larissa, ou melhor, vivo no corpo da filha do fotógrafo!

— O que houve?

— Eu a vi, Morgan!

— Quem!?

— A menina cujo corpo ficou para mim, a que se suicidou. A menina que era

eu!

— É mesmo?

Sua surpresa parece autêntica.

— Aconteceu por acaso. Fui a uma exposição de fotos com minha turma da

escola. O fotógrafo se chama Markos e é muito famoso. Estava admirando as

imagens, quando Naomi me chamou e me mostrou uma delas. Era o retrato de uma

moça. Uma moça igual a mim! Examinei várias vezes, até cheguei mais perto para

ver melhor: éramos como duas gotas d’água, duas irmãs gêmeas. Em seguida,

descobri que tinha cometido suicídio pouco tempo antes, junto com algumas

amigas. Na verdade, três noites antes do meu acidente.

— É realmente estranho que a tenha visto. Mas isso é outra coisa que pretendia

lhe contar.

— Como funciona? Não entendo.

— Todos nós chegamos aqui num acidente. Um evento traumático. O acidente,

o choque que ele causa, é uma espécie de porta entre uma dimensão e outra.

— Está querendo me dizer que comecei a fazer parte desse mundo no acidente

em que minhas amigas perderam a vida?

— Isso mesmo.

— E elas morreram por minha causa?

— Não. Mas a morte delas permitiu que você viesse para a Terra.

— responde ele com uma voz tranquila.

— É por isso que fui a única a sair ilesa?

— Você simplesmente não existia antes do acidente. Eram duas amigas e só,

sem nenhuma Alma. O corpo de Larissa já estava sepultado naquela noite. O Leviatã

o desenterrou assim que a alma da moça o abandonou e colocou a sua no lugar da

dela. Foi ali que você ganhou vida. Depois, você foi até a rua e pediu carona para um

carro que sofreria um acidente logo em seguida. Havia duas meninas a bordo. Foi no

momento exato do acidente que você começou a existir como Alma.

Ouço o que diz, estremecendo a cada palavra.

— Quer dizer que não... não conheci as duas?

Morgan balança a cabeça negativamente.

— Sua cicatriz é a única marca de sua chegada traumática.

— E antes do acidente? Qual é a nossa situação?

— Nenhum de nós tem consciência do que acontece antes. Talvez tenha ido até

a rua a pé e depois pedido a carona.

— Então as minhas amigas, quer dizer, as duas meninas me deram carona por

puro acaso?

Ele faz que sim.

— Então é por isso que, naquela noite, estava usando a mesma camiseta com

que Larissa foi enterrada. É horrível!

Morgan se limita a me olhar com pena.

— Mas se ‚nasci' no momento do acidente, como é que tenho um passado?

Como é que Jenna e meus irmãos se lembram de mim como se estivesse lá antes do

acidente?

A memória que eles têm de você é um bloco único com a etiqueta ‚passado',

onde o Leviatã acrescentou seu nome. Se pensar bem, vai ver que as lembranças

conjuntas não são muitas nem muito precisas.

— É verdade, mas sempre pensei que era eu que não lembrava direito...

— Já ouviu sua mãe contar alguma coisa sobre você quando era pequena?

Balanço a cabeça.

— Tudo é arranjado para que a família hospedeira, os amigos e os colegas da

escola se comportem como se o Não Nascido existisse antes daquele momento.

Dezessete anos atrás, no seu caso. Dezoito no meu. As coisas foram analisadas em

seus mínimos detalhes pelo Leviatã. E mesmo que não sejam detalhes muito

precisos, não importa, porque geram confusão e caos. Medo.

— Então é por isso que... quando resolve ir embora... de verdade... a família não

tem muita dificuldade para remover você.

— Exatamente, porque na realidade você nunca existiu, ou melhor, só na mente

deles.

— Não é possível! É uma espécie de...

— Ia dizer mágica? Entenda como quiser, mas nós também somos mágica, quer

dizer, em nossa essência. Somos impalpáveis e transparentes, somos almas que só

podem ser reconhecidas porque um corpo nos envolve e nos dá forma, somos poeira

que precisa de um raio de luz para ficar visível.

— É horrível. Tudo isso é a coisa mais horrorosa que já ouvi. É a negação do

próprio conceito de amor, de amizade, de afeto...

— Não existe amor, amizade ou afeto no lugar de onde viemos, Alma, apenas

dor e desespero. Por isso fomos educados para não sentir emoção, para sermos

impermeáveis aos sentimentos. O sofrimento nos enfraquece.

— Mas como posso lutar contra tudo isso?

— Não se deixe abater, estamos lutando para permanecer na Terra e para

aprender a ser humanos.

— Aprender por quê? É uma coisa tão distante assim da nossa natureza?

— Isso a gente não tem como saber. Nenhum de nós viveu o suficiente para

descobrir.

— E o Professor K?

— É um Não Nascido que está tentando aprender a ser humano. No entanto,

por mais que sua inteligência seja extraordinária, existem coisas que nem um gênio

pode perceber. O ser humano é uma relação complexa entre a alma e o corpo. Eles

precisam se harmonizar num encaixe perfeito que se chama vida: ninguém sabe

explicar como se cria, mas todos podem reconhecer quando a vêem diante de si. É o

segredo da natureza, Alma, da natureza que o Leviatã odeia e pretende destruir. É

aquilo que faz nossas almas desejarem nascer e viver, que faz com que aceitem

morrer, submetendo-se ao destino de todo ser humano, porque a beleza do que

recebemos nesse caminho é única e inimitável. Somos Não Nascidos vindos de um

lugar chamado My Land. E tudo o que mais desejamos é ser.

Pela primeira vez desde que o conheço, senti uma emoção verdadeira brotando

das palavras de Morgan, como se fosse uma chama que ele tem que controlar para

não ser devorado.

E só então começo a entender de verdade que não sou muito diferente dele e

que, por mais que ainda me pergunte qual é o significado desse meu destino

absurdo, sinto com absoluta certeza que não estou mais sozinha.