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— Já acabamos de jantar. Agora pode me dar as informações que tinha prometido,

não?

— Tudo bem. Você mereceu.

Dou um sorriso forçado para que veja que não esqueci a chantagem. Mas tenho

que admitir que a noite não foi nada ruim. Roth foi simpático, a comida era

realmente ótima, assim como a música e o restaurante de primeira linha. Preciso

arranjar uma chantagem dessas com mais frequência.

— Vamos na ordem. Lembra do rapaz que foi preso pelo assassinato do parque

de diversões? Aquele que se suicidou?

Faço que sim. Lembro muito bem aquele dia. Fui à delegacia com Naomi para

fazer a denúncia. Morgan apareceu em seguida. Estava saindo da delegacia às pressas.

Fui atrás dele até a zona industrial, num edifício caindo aos pedaços. Entrei, mas lá

dentro perdi seu rastro. Depois, ouvi um estrondo, levei um susto enorme e acabei

fugindo. Voltei para a delegacia sem ter a menor ideia de onde ele tinha se enfiado.

Quando cheguei lá, encontrei um caos: o suspeito pelo assassinato recém-capturado

pela polícia tinha acabado de se suicidar. O que Morgan tem a ver com tudo isso

ainda é um mistério.

— A polícia já concluiu as investigações sobre ele. Encontraram provas em sua

casa. Roupas sujas de tinta, a mesma que foi usada para pintar a montanha-russa. A

tinta ainda estava fresca na noite do homicídio e ele não percebeu.

— Parece estranho, não acha? Tinta fresca tem um cheiro tão forte! E por que

levar o corpo até lá em cima, correndo o risco de ser visto e, além do mais, de se sujar

de tinta?

— Como é que sabe que ele não o matou lá em cima?

Preciso tomar cuidado, do contrário ele vai suspeitar de alguma coisa.

— Na verdade, não sei. Só estou tentando adivinhar e acho pouco provável que

alguém consiga levar um homem vivo, que tenta resistir, até o ponto mais alto da

montanha-russa. E para quê? Deve tê-lo matado antes, com certeza.

— Daria um ótimo detetive, Alma.

— Quem me dera que fosse verdade — murmuro.

— O que disse?

— Disse que não é verdade. Mas, voltando à investigação, a polícia chegou à

conclusão de que o culpado é ele mesmo.

— Um dos culpados. Como você observou, mesmo morto, o engenheiro era um

peso muito grande para se carregar nas costas até o local em que foi encontrado.

— E então deduziram que o tal rapaz tinha um ou vários cúmplices. Na

verdade, Sarl tinha me falado a respeito de uma organização criminosa que poderia

ser responsável pelos assassinatos. Mas uma organização composta por gente tão

jovem? Parece muito improvável... Talvez haja algum adulto por trás disso, que faz

com que eles cometam os crimes hediondos que planeja, para escapar de penas mais

pesadas.

— Em que está pensando? Parece distraída.

— Acho que a polícia perdeu uma testemunha importante com esse suicídio.

— Estão investigando seus amigos, contatos, conhecidos, para descobrir se

existe alguma Iigação com os outros assassinatos.

E com Morgan, penso comigo mesma.

— É verdade que tem que ter muita coragem para se matar digo, — como se

falasse comigo mesma.

— Sobretudo enfiando uma caneta no próprio pescoço.

A imagem do Master cujo olho acertei com uma caneta se projeta na minha

mente como um flashback. Que horror! E além do mais, ainda pode estar vivo. Pode

ter sido ele quem matou o homem-anjo.

— E do homem-anjo, não soube nada?

— De quem?

— Desculpe, do homem da papelaria.

— Por que lhe deu esse nome?

Como bom jornalista, Roth não deixava escapar nada.

— Porque era parecido com um anjo.

— Você conhecia o sujeito?

Não posso dar versões contraditórias ou vou cavar minha cova com as próprias

mãos.

— É que o vi uma vez, de fora.

—Imagine, você poderia estar na papelaria no momento errado e... vapt-vupt!

Não estaria jantando comigo agora. Às vezes, viver ou morrer é apenas uma questão

de sorte.

— Para dizer a verdade, entrei exatamente na hora errada, mas o assassino

resolveu me poupar — digo só para ver o que acontece.

Roth olha para mim sério, mas, em seguida, cai na gargalhada.

Tenho certeza de que acreditou em mim por um instante.

— Eles já souberam alguma coisa da autópsia?

Ele faz que sim.

— Os resultados são totalmente inexplicáveis.

— Fale logo! Pare de fazer suspense!

— Parece que os órgãos internos e os tecidos do corpo do homem eram muito

mais velhos do que sua idade. Estavam, sei lá... gastos.

— O que significa ‚gastos'?

— Significa isso mesmo. O médico que fez a autópsia se perguntou como

aquele homem fazia para continuar vivo. Além disso, as íris e as pupilas eram muito

mais claras do que o normal, tanto que o relatório fala de cegueira. Claro que, nesse

caso, teriam que explicar como fazia para administrar uma loja sozinho.

— Talvez tenha ficado cego por causa de alguma coisa que o assassino fez.

Para cegar um homem num tempo tão curto, é necessária uma luz fortíssima e

tão repentina que não deixe nem o tempo de fechar os olhos para se proteger. Muitas

variáveis juntas.

— Então ainda não determinaram a causa da morte?

— Não. Levantaram a hipótese de uma parada cardíaca, mas acho que foi apenas

a primeira resposta razoável que conseguiram encontrar.

Esperava que Roth fosse clarear minhas ideias, mas só fez confundi-las ainda

mais, como se isso fosse possível. Minha cabeça explode com tantos nomes, imagens.

dados. Preciso descansar.

— Tenho que voltar para casa. Tenho aula amanhã cedo.

— E desde quando você virou uma aluna-modelo?

— Desde agora — corto secamente e levanto.

Ele me segue, paga a conta e me encontra lá fora.

Sempre me sinto melhor ao ar livre. Respiro profundamente.

— Posso saber o que foi que lhe deu? Parece que foi picada por algum bicho

venenoso.

Tem razão, coitado.

— Desculpe. É que ando tendo umas dores de cabeça horríveis, que chegam de

repente e me deixam nervosa.

— Está melhor?

— Estou, obrigada.

Caminhamos para o estacionamento, que fica a uns 20 metros do taurante.

Sinto que alguém nos segue. Imagino que seja o manobrist Mas quando me viro vejo

uma figura a distância, atrás de nós. Penso kgo nos Masters, mas não usa chapéu. Usa

uma coisa que parece um puz. Acelero o passo, com Roth na minha cola. Assim que

chegamos a carro, viro de novo e a figura desapareceu, engolida pela escuridão.

Entro rapidamente no carro e aperto a tranca.

Roth olha para mim com pena. Deve estar pensando que estou ficando mesmo

maluca.

Dirige devagar, talvez para não me agitar ainda mais. Não diz nada chegarmos

diante da minha casa. Estou mais calma agora, segura.

— Obrigada pelo jantar e desculpe o...

Não tinha acabado a frase quando ele se esticou na minha direção e colou seus

lábios nos meus, como quem quer deixar uma marca. Eu o empurro com força e dou

um tapa bem dado na cara dele.

— Nunca mais faça isso — digo antes de descer do carro.

Roth fica imóvel, o olhar chateado, a boca semiaberta, mas muda.

É assim que o deixo e entro no meu edificio.

Em casa, diante do espelho do banheiro, não posso evitar de pensar no beijo que

Morgan me deu antes de me abandonar. Preciso revê-lo, para apagar os traços desses

lábios estranhos.