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O segundo salão é enorme e também é ocupado por uma grande piscina cheia d’água.

As paredes são revestidas de pastilhas verde-claras. O teto é muito alto e

ligeiramente arredondado, como nos porões. Na verdade, trata-se de um imenso

reservatório de água, tipo uma cisterna.

E tem gente.

Dois rapazes e uma moça. Olho para eles espantada. Mas eu... a conheço! É a

menina que vi conversando com Morgan e o Professor K!

Percebe que estou olhando para ela com ar interrogativo, mas se limita a

sustentar meu olhar sem dizer nada, como se esperasse que alguém nos apresentasse.

E esse alguém é Morgan.

— Pessoal, essa é Alma.

— Oi — cumprimentam os três em coro. É evidente que não foi a primeira vez

que ouviram meu nome.

Não sei o que dizer, como me comportar. Até essa noite, não estava entendendo

nada do que acontecia, agora é certo que entendo menos ainda. Trato de me

concentrar no único rosto conhecido, o da menina. É muito bonita, alta e com um

corpo esguio. Mas é o rosto que impressiona: a pele clara e perfeita, os olhos escuros

que brilham como uma noite estrelada, emoldurados por sobrancelhas importantes e

tão pretas que parecem pintadas. Os cabelos, também negros e cacheados, estão

presos num longo rabo de cavalo. Está de jeans e moletom branco com capuz, mas

nela tudo parece fashion.

— Alma, essa é Anel.

Ela dá um passo em minha direção e estende a mão. Meu aperto é firme, como o

dela. Ambos frios. Trocamos um olhar intenso, que ocupa todo o espaço entre nós e

nos aproxima mais do que eu gostaria.

Parece loucura, mas é uma espécie de proximidade primitiva. Largo a mão dela

de repente, como se o contato tivesse ficado insuportável.

— Prazer em conhecê-la, Alma — diz ela finalmente. Tem uma calma, bastante

baixa e muito vivida para uma pessoa tão jovem. Se fechasse os olhos, poderia dizer

que pertencia a uma mulher de meia-idade.

— O prazer é meu — respondo, cerimoniosa.

— E eles são Raul e Christian.

Os dois rapazes avançam.

— Bem-vinda — diz Raul, sério.

Usa os cabelos curtíssimos, quase raspados na cabeça clara. Os olhos negros têm

um desenho levemente amendoado, e os lábios carnudos combinam com o nariz

curto e maciço. Tem dois sinais logo abaixo do olho direito e um brilho de desafio

estampado no rosto. Está completamente vestido de preto, de modo que é difícil

distinguir as roupas na luz fraca do salão.

— Bem-vinda — repete Christian em seguida. Ele, ao contrário, é sorridente e

tem os traços mais suaves, os olhos azuis e grandes, dentes brancos, cabelos claros e

finos como os de uma criança.

São dois rapazes lindíssimos que, ao contrário de Anel, nunca vi antes. Ou, pelo

menos, não que me lembre.

— Obrigada — respondo cautelosa.

Lanço a Morgan um olhar carregado de perguntas.

— Vou lhe mostrar o Refúgio — diz ele.

— Refúgio?

— É, chamamos esse lugar de refúgio porque é um local em que podemos ficar

em segurança — responde Anel num tom seco, como se quisesse destacar a estupidez

da minha pergunta. Percebo uma leve hostilidade, como se ela não me quisesse por

aqui.

— Anel! — exclama Morgan.

— Desculpe...

— Vamos tentar fazer com que se sinta em casa, certo?

Como poderia me sentir em casa naquele lugar? A simples ideia me dá arrepios.

Anel faz que sim, mas não parece muito convencida. Pelo jeito, acho que quem

manda aqui é Morgan. Mas comanda o quê? Parece uma espécie de sociedade secreta.

— De qualquer forma, Anel tinha razão, o Refúgio é um local seguro para nós,

o único na cidade — explica Morgan. — Depois de fechada, aquela segunda porta só

pode ser aberta por uma caneta igual à essa e é impossível arrombar ou derrubar. Foi

projetada especialmente para isso, como todo o resto.

— E de quem vocês se protegem?

Eles trocam um olhar de entendimento.

— Dos Masters — responde Morgan.

Meu olhar passeia pelos rostos de cada um.

— Não é só você que os Masters perseguem. Querem acabar com todos nós.

Mas aqui estamos bastante seguros.

Bastante?, penso comigo.

— E querem acabar conosco por quê? E, sobretudo, o que eu tenho a ver com

vocês, com eles, com esse Refúgio?

— Venha comigo — diz Morgan.

Vou atrás dele até uma espécie de bancada de alvenaria ao lado da piscina. A

água tem uma cor verde-clara que se confunde com a cor dos ladrilhos e do teto. É

mais clara que a das piscinas do outro salão, mas não o suficiente para que possa ver o

fundo perfeitamente. Levada por uma força repentina e incontrolável, caio de joelhos

e passo os dedos na superfície da água. Está gelada, mas não me faz estremecer. É

água, mas não sinto aversão como antes. Ao contrário, ela me atrai de maneira

irresistível. O que está acontecendo comigo?

Uma certa mão — Morgan de novo — agarra meu braço e me obriga a levantar.

— Sente-se aqui. Mais tarde a gente conversa sobre a cisterna.

Os outros também se sentam perto de nós, em silêncio, como se fosse a estréia

de uma peça de teatro.

Morgan começa a falar num tom de voz diferente, quase solene.

— Todos nós, Alma, temos uma coisa em comum, algo que nos liga

independentemente da nossa vontade. Todos viemos do mesmo lugar. De certa

forma, somos irmãos.

Abaixa os olhos. Dá para perceber que está procurando as palavras certas para

dizer alguma coisa, mas parece que ainda não inventaram as palavras certas para o

que precisa dizer.

— Chamamos esse lugar de My Land. Pode ser visto como um mundo próximo

do nosso, paralelo ao mundo da cidade, com o qual tem uma ligação permanente e

indissolúvel. E a partir da cidade que ele vive e encontra seus habitantes.

Ouço suas palavras com o coração quase parado no peito, sem saber se ele vai

voltar a bater.

— Não somos como os outros seres humanos... porque não somos humanos ou

pelo menos não completamente humanos. Temos o corpo dos humanos, mas a alma

que habita nosso corpo é diferente, não é livre. É a nossa alma que nos torna

diferentes, piores, maus. É ela que nos torna assassinos. Somos filhos de um mesmo

pai, cruel e sem piedade... Ele se chama Leviatã e nos capturou... ou melhor,

capturou nossas almas, trazendo-as para My Land. Conseguiu nos pegar quando

éramos almas errantes que só queriam ser admitidas nessa Terra, só queriam encarnar

como todas as outras almas e vir ao mundo. Mas o destino tinha negado essa

possibilidade às nossas almas. E o Leviatã se aproveitou disso, de nossa triste

fraqueza, de nossa nostalgia da vida, e nos reuniu a seu redor, nos criou e educou,

convencendo-nos de que éramos iguais a Ele. Por quê? Porque Ele odeia o mundo.

Esse mundo. Odeia porque é só o que sabe fazer e, portanto, deseja que seu ódio se

torne concreto e real. Para isso, estimula o terror e a violência. E faz isso através de

seres como nós. Somos os seus agentes do caos. O Leviatã nos deu um corpo de

grande beleza, uma inteligência superior, um caráter duro e insensível às emoções,

que são o verdadeiro ponto fraco dos humanos. Ele nos fez sedutores e irresistíveis,

tentadores, desejáveis. E sem piedade. Assim, somos enviados à Terra para matar sob

suas ordens, ao acaso, sem motivo algum. ‚Enquanto os homens conhecerem o terror.

conseguirei dominá-los', é o que Ele sempre diz. O medo é a sua arma. O medo da

morte e ao mesmo tempo o medo da vida. Mas numa certa altura, o mecanismo

travou, algo que Ele não previu em sua diabólica perfeição: um de nós despertou do

sono hipnótico em que Ele nos faz cair antes de nos mandar para cá. Alguém escapou

das malhas finíssimas de sua rede e começou a nadar em liberdade, no mar aberto. E

de la, vendo o mundo de outra perspectiva, finalmente se deu conta de que existem

outros horizontes, outros modos de viver, de que existe liberdade, e resolveu se

rebelar contra as ordens do Leviatã, recusando-se a ser apenas um fantoche nas mãos

de um pai infame. E cortou os fios...

Tento prestar o máximo de atenção nas palavras de Morgan, mas são como

pedras que me atingem com violência em todo o corpo. Não sei se é mais difícil para

ele explicar essas coisas de modo que pareçam reais ou para mim ouvir tudo aquilo

lutando contra o desejo de fugir porque sei que é tudo verdade.

— Está me dizendo que... eu... sou uma dessa almas? — pergunto quando

Morgan para de falar.

— Estou, Alma. Você também é uma de nós. É uma Não Nascida.