Sempre ouvi dizer que o despertar na manhã seguinte de uma briga é traumático,
mas não imaginava tanta dor. Sinto como se meu pescoço fosse se destacar do corpo.
Levanto e vou até o espelho para verificar os estragos. Tenho um vistoso colar
rosa-choque feito de pele inflamada e esfolada, como se tivesse sofrido uma violenta
queimadura. Com certeza, em breve o rosa-choque vai dar lugar ao roxo dos
hematomas, que não vai sumir antes de algumas semanas. Passo a ponta dos dedos na
pele ferida. Arde terrivelmente.
Ninguém pode me ver assim. Vou ter que me vestir até para ir ao banheiro. Em
seguida, vejo a maçaneta da porta se mover inutilmente.
— Por que está trancada aí dentro, Alma? — pergunta Jenna do outro lado.
E agora? Não posso abrir. Não estou pronta.
Finjo irritação.
— Será que não dá para ter um pouco de privacidade nessa casa?
— Não, mocinha, enquanto morar aqui tem que fazer as coisas do meu jeito.
Não ficou de voltar cedo ontem à noite? Agradeça aos céus que eu estava com
tampões no ouvido e não sei a hora exata, mas com certeza era mais de meia-noite...
— Podemos conversar mais tarde?
— Estou esperando na cozinha. Ande rápido que estou saindo.
Aproveito a trégua para enfiar um suéter de gola rulê. A lã queima a pele como
sal numa ferida.
Tiro o suéter e coloco uma camiseta, sempre de gola rulê. A situação melhora,
mas não muito. Visto o suéter por cima.
Escolho uma calça qualquer, meias e sapatos. Uma última olhadela. Estou com
uma cara horrível: olheiras escuras e profundas marcam meus olhos como uma
máscara trágica com a pintura borrada.
Em seguida, uma dúvida me assalta. Será que escrevi alguma coisa ontem à
noite? Pego a mochila e verifico o caderno. Está em seu lugar como se nada tivesse
acontecido, como se não carregasse dentro de si o peso da minha vergonha, dos meus
crimes.
Não tem nada além do que já tinha escrito sobre o assassinato do escritor. E,
felizmente, posso dizer que ele está salvo.
Mas ela poderia tentar de novo. É a primeira vez que consigo romper o
mecanismo. Antes, não tive bastante coragem e agora tenho medo de que seja pior
ainda. A vítima anunciada não está morta como deveria: quais serão as
consequências? Examino a mão com que arranhei a mão da assassina. Não há dúvida,
tudo aconteceu realmente. Os pesadelos são realidade.
♦♦♦
Jenna me espera na cozinha feito um guarda de fronteira. Depois de me
examinar da cabeça aos pés, fica surpresa com a minha roupa.
— Não acha que vai sentir calor com esse suéter de alpinista?
— Acordei com frio hoje.
— Não duvido, com a cara de cansaço que tem. Combinamos que voltaria cedo.
Assim não dá.
Inclino a cabeça, aliviada porque ela não teve a ideia de ligar para a casa de
Naomi ontem à noite.
— Ouviu o que disse, Alma? Estou muito preocupada. Sei que esta história
com Naomi perturbou você. Além do mais, Agatha foi presa logo em seguida...
Ainda bem que ela não sabe de nada sobre Seline!
— Mas as coisas estão se ajeitando. Naomi está melhor, Agatha está segura atrás
das grades. Você precisa pensar nos estudos e retomar sua vida. Ou seja: não quero
que fique na rua até tarde, sobretudo durante a semana.
— Hoje é o aniversário de Seline. Não posso deixar de ir.
Então acontece uma coisa que não esperava.
— Não ouviu nada do que eu disse! — Jenna está à beira de um ataque de
nervos. — Passo a maior parte do dia fora de casa. Trabalho num lugar onde só tem
gente doente, gente que está sofrendo, e preciso me mostrar alegre e positiva mesmo
quando sinto o mundo desabar na minha cabeça. Fui abandonada pelos únicos
homens que amei na vida. Por causa de um deles, carrego até hoje um peso na
consciência, dia após dia, quando vejo a minha menina e rezo para que diga pelo
menos uma palavra, que não chega nunca. Crio três filhos sozinha e os dois mais
velhos não conseguem nem se esbarrar no corredor. Evan me trata como se eu fosse
uma doença crônica de nascença da qual ele não pode se livrar por enquanto. Você,
que deveria me apoiar porque já é uma mulher, me trata como se eu fosse um pouco
mais que uma colega de apartamento chata e intrometida. Só queria um pouco de
compreensão, Alma. Será que é pedir demais? — Em seguida, cai em prantos,
chorando convulsivamente.
Soluça quando chego perto, cada vez mais forte, incapaz de frear o mar de
frustrações que reprimia no peito havia tanto tempo.
— Vai dar tudo certo — digo. Não sou muito boa para consolar as pessoas. Na
verdade, sempre fui ótima na hora de feri-las, mas não faço muito bem o papel de
consoladora.
De repente, Jenna para de chorar e enxuga as lágrimas esfregando o rosto com a
palma da mão.
— Preciso ir, senão Lina vai chegar tarde na escola.
— Posso levar, se quiser.
— Não precisa. Só quero que me prometa que não vai me causar mais
problemas. Acho que não vou conseguir aguentar.
Como posso prometer uma coisa dessas? Mentindo.
— Tudo bem. Mas, por favor, preciso ir ao aniversário de Seline hoje à noite.
Ela olha para mim, com os olhos ainda vermelhos e amassados de choro.
— Só hoje. Sei que já disse isso ontem, mas agora estou falando sério. A partir
de amanhã, a música vai mudar.
Consigo sorrir.
— Ah, estava esquecendo. Ontem à noite, logo depois que você saiu, aquele seu
amigo Roth ligou.
— Deixou algum recado?
— Não, nenhum. Só pediu que avisasse que tinha ligado. O café ainda está
quente — diz saindo, com um tom tão afetuoso que nunca esquecerei.
♦♦♦
Se o meu suéter de gola alta levantou as suspeitas de Jenna, também não posso
dizer que passou em branco na escola, onde a roupa não é uma coisa secundária, mas
um valor importantíssimo.
Passo por cima de algumas piadinhas na entrada e sigo para a minha sala.
Naomi está de ótimo humor. É seu último dia de aula antes das suas férias e vamos
sair juntas hoje à noite para comemorar o aniversário de Seline. O que se pode
desejar mais do que isso?
Mas justamente a aniversariante, Seline, não parece tão contente quanto deveria.
Está sentada atrás da carteira, folheando distraidamente uma revista que parece uma
lista telefônica.
— O que houve com ela? — pergunto a Naomi.
— Não entendi direito. Acho que ia se encontrar com Adam ontem, mas ele
não apareceu.
— Bem que eu disse para não confiar nesse sujeito.
— Não foi você mesma quem disse que ele não é tão mau assim?
— Só falei porque fiquei sabendo de uma coisa.
— Que coisa?
— Que não foi ele quem incendiou a diretoria.
— Ah, não? E por que assumiu a culpa, então? Não pensei que fosse
masoquista.
— E não é mesmo. Só que tinha um pouco de medo do culpado.
— E quem poderia.., não! Não acredito. Foi Agatha?
— Diz ele que foi.
— Mas o anel encontrado no gabinete de Scrooge era dele.
— Agatha foi vista rondando seu armário no vestiário dos meninos. Poderia ter
pegado o anel e colocado lá para incriminá-lo.
Naomi parece surpresa, mas não muito.
— É bem capaz, sobretudo depois do que fez com a tia... Então Adam está
pagando uma pena injusta no lugar de Agatha?
— Isso mesmo.
— Desde quando sabe disso?
— Tem pouco tempo — minto. Não quero que volte a pensar que estou
escondendo as coisas dela. Mas, nessa altura dos acontecimentos, seria impossível
explicar meus motivos. E seria difícil de entender para ela também.
— Talvez a gente devesse contar a Seline.
— Melhor não, deixe ela pensar que Adam é um vândalo. Vai ajudá-la se as
coisas não derem muito certo entre os dois, o que acho que vai acabar acontecendo.
Em seguida, vejo que está olhando para o suéter.
— Gola rulê, é? Para mim, o ar da primavera já chegou.
— Acho que estou ficando resfriada.
— Tome uma aspirina. Não vá faltar hoje à noite, por favor.
— BabyBlue?
— Claro, onde mais poderia ser?