Morgan acabou de me deixar diante da porta de casa, assustada como um
cachorrinho na chuva. Mas não iria procurar abrigo em nenhum outro lugar.
Nunca me senti ligada a nada ou ninguém, talvez com exceção de minha irmã,
pois mesmo com ela muitas vezes fui fria e emocional- mente inconstante. Mas, nesse
momento, me sinto tão distante do meu antigo eu que consigo analisá-lo de fora e
compreender a dificuldade que os outros têm que enfrentar para se relacionar
comigo.
Não acredito que exista um jeito de remediar isso, pelo menos não agora, com
tão pouco tempo à minha disposição. Mas talvez exista uma forma de aprender a
viver com eles, de aprender a ser como eles, um deles, sem que percebam nada.
Normalidade, repetiu Morgan antes de se despedir.
Normalidade, regras, palavras, água, alma, silêncio, aprovação, horror. Subo a
escada pensando nisso tudo. Estou enlouquecendo, essa é a verdade.
— Alma, pensei que tivesse se perdido — diz Jenna, vindo a meu encontro com
um copo cheio de vinho na mão.
Olho disfarçadamente para o cabide de roupas: lá está a jaqueta de couro preto
do tenente Sarl!
— Olá!
— Tenente, que surpresa!
Só agora me dou conta de que não perguntei nada a Morgan sobre os assassinos,
seu modo de agir, e nem mesmo se sou, ao menos potencialmente, um deles.
— Faz um bom tempo que não nos vemos. Não foi mais me pedir informações
sobre aqueles casos, para os seus artigos. Continua com eles?
— Tenho escrito menos, ultimamente — respondo, pelo menos uma vez com
sinceridade. —Tem alguma novidade sobre a investigação?
— Posso confiar em você?
— Não vou dizer a ninguém.
Ele sorri.
— Conseguimos dar mais alguns passos.
— Podem conversar sobre isso mais tarde — interrompe Jenna.
— Venha ver primeiro a bela surpresa que chegou para você, querida!
— Ela me guia até a sala.
Sobre a mesa, reina um enorme ramo de flores que ela colocou cuidadosamente
num vaso com água.
—Isso?
— Isso mesmo.
— Para mim?
SarI assovia às minhas costas.
— E quem mandou?
Nunca tinha recebido flores antes.
— Tem o seu nome no cartão. Tem alguma coisa para me contar? — pergunta
Jenna, com ar malicioso.
O buquê de flores é grande e parece uma almofada gorda e perfumada, amarelo
brilhante.
— São peônias — diz Jenna. — Flores muito delicadas e elegantes.
— E desde quando você entende de flores? — pergunto, pegando o cartão.
— Sempre gostei de flores — rebate ela, melancólica.
Noto uma troca de olhares com Sarl, que prefiro ignorar.
A entrevista sobre Agatha foi publicada. Esse é o meu agradecimento,
acompanhado de um convite para amanha à noite. Parto em dois dias e ficaria muito
feliz se pudesse me despedir. Um beijo, Roth.
Devia ter adivinhado.
Parte para onde? O cartão não diz para onde, nem por quanto tempo.
Quando me viro, os olhos de Sarl e Jenna estão apontados para mim, cheios de
expectativas. E eu trato de desiludi-los.
— E então? A investigação?
Jenna continua a olhar para mim. Talvez esteja se perguntando por que, das
duas filhas que a vida lhe deu, uma é muda por natureza e a outra por escolha. Deixo
que medite sobre seus erros como mãe envolvida no perfume das peônias, contente
porque o presente de Roth alegrou-a mais do que a mim.
— O que acham de conversar no quarto, não aqui? — sugere, apontando para a
pequena Lina, que está desenhando sentada no tapete.
É uma boa ideia.
Gato nos recebe com um miado baixinho, quase incomodado com nossa
chegada ao quarto ou talvez apenas com a presença de Sarl. Coloco a mochila com o
caderno e a caneta o mais longe possível do tenente e ofereço a cadeira em frente à
escrivaninha, depois de liberá-la das roupas que estão lá em cima há dias.
Sento na cama e tento não cair dura. Só o contato com o colchão macio já me dá
vontade de mergulhar ali para sempre.
— O que quer saber?
— Tudo o que puder me contar. — Sorrio.
— A autópsia do corpo do rapaz que prendi não mostrou nada de significativo.
Tudo dentro do esperado, a não ser a carótida direita cortada, é claro. O legista só
descobriu um coração gasto demais para um jovem daquela idade, como se já tivesse
sofrido um infarte ou coisa parecida.
— E ele teve mesmo um infarte?
— Não, o médico negou essa hipótese, mas não parecia muito convencido.
Disse que aparentemente estava tudo normal, mas que na verdade havia alguma coisa
de estranho no coração, que ele não conseguia explicar muito bem.
— Entendo. — Sei muito bem o que era. Era um corpo já morto e se Sarl
tivesse a ideia de procurar as fotos dos jovens que se suicidaram nos últimos anos,
com certeza encontraria o retrato do rapaz.
— E tem a caneta.
Vou desmaiar.
— É um modelo de esferográfica artesanal, com um número gravado no corpo
de aço. A imprensa divulgou a descrição e uma senhora ligou para dizer que a viu
sendo vendida na papelaria do centro, aquela cujo proprietário morreu faz pouco.
— Pensei que tinha sido assassinado.
— Não há provas que sustentem a teoria de que foi homicídio, nem ferimentos
no corpo, nenhuma evidência na loja, O mais estranho é que a tal senhora disse que
tentou comprar uma dessas canetas, mas o dono se recusou a vender, dizendo que
tinham sido feitas sob encomenda.
— Que incrível!
— O quê?
— Como tudo vem à tona apenas porque alguém lembra de uma coisa que na
hora parecia completamente sem interesse, mas que depois, diante dos novos
acontecimentos, ganha importância.
— Vejo que deu passos de gigante como jornalista. Se entendeu isso, entendeu
tudo da profissão.
Sorrio com amargura.
— Ouça... Vamos mudar de assunto. Sua mãe está preocupada com você. Diz
que fica pouco em casa, que sai e só volta tarde da noite e que não estuda direito. É
isso mesmo?
Naquele momento, Gato pula nos meus joelhos e começa a ronronar.
Enquanto procuro as palavras certas para responder ao tenente sem parecer
muito esquisita, aproveito para fazer carinho nele.
— Quem é que não fez isso na minha idade? Saio com minhas amigas e a escola
vai indo como sempre. Jenna exagera, como toda mãe.
— Ela sente o peso de ter que educar vocês sozinha. Por isso, às vezes fica
muito apreensiva. Você, que é a mais velha, devia ficar do lado dela.
— Vou tentar, tenente — digo, e naquele instante acredito mesmo nisso.
Ele levanta, faz um carinho em meus cabelos e sai do quarto.
Caio na cama. Finalmente, posso relaxar. Pelo menos por enquanto. Gato desce
do meu colo e fica me olhando com aqueles olhos inquietantes.
— Sua dona vai para um hospital psiquiátrico, meu bem. E a culpa é toda
minha.
Ele responde com seu miado abafado.
— É, eu sei, sou uma péssima amiga. Mas hoje fui falar com o dr. Mahl, o
médico que vai cuidar dela. Disse que não é uma candidata ao, suicídio, que não
precisa encher a coitada de calmantes. Fiz o que podia por ela e...
— Gostaria de visitá-la mais uma vez, antes que seja transferida?
A voz de Sarl me pega de surpresa.
Viro e vejo que ainda está parado na porta. Ouviu tudo. Pensei que já tinha ido
para a sala.
— Fui, mas voltei para avisar que está na mesa. E então, quer ir visitar Agatha?
— Gostaria muito, sim.
— Vou com você amanhã depois da escola, se concordar.
— Faria isso por mim?
— Claro. Só espero que eu consiga chegar na hora. Sabe, nós policiais estamos
sempre atrasados...
— Eu espero.
Só peço uma coisa.
Paro de respirar.
— O quê?
— Tem que ser um segredo entre nós. Sua mãe não aprova certas companhias,
entende? E com certeza não ia gostar de saber que levei você à casa de detenção para
falar com uma delas.
Concordo.
— Agora vamos jantar, ou levantaremos suspeitas — diz em tom de
brincadeira.
Sorrio. Sarl é realmente uma ótima pessoa. E se eu soubesse que vai ficar com
Jenna, no caso em que eu tivesse que desaparecer para sempre de suas vidas, ia me
sentir um pouco mais tranquila.
As situações são como as moedas: sempre têm dois lados, um vence, o outro
perde.
E para mim deu cara... a minha cara, e vou seguir em frente até quebrá-la.
Chega de coroas, me lembram enterro.