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Chegar em casa foi pior do que tinha imaginado. Nem tanto pela carga que trouxe

do mundo exterior, mas sim pelo peso que cai em cima de mim dentro daquelas

quatro paredes imperturbáveis.

A primeira coisa que encontro é o olhar de desprezo do meu irmão, Evan. Desde

aquela noite do incidente no ginásio, quando... bem, quando tentei matá-lo... não

nos falamos muito. Na verdade, simplesmente não nos falamos. Mais do que

qualquer outra coisa, a gente se esbarra nos ambientes comuns da casa e se esconde

em seguida, cada um em sua própria toca. Acho que ele me odeia mais ainda do que

antes e mais do que qualquer outra pessoa no mundo. Bi, sua namorada, sempre

despenteada e malvestida, está com ele. Ela resolveu manter o mundo separado de

sua vida de um jeito claro e preciso, como duas cores diferentes numa bandeira.

Dou um ‚oi' vacilante demais para conseguir penetrar na armadura de meu

irmão, que, de fato, não se dá nem ao trabalho de responder.

— Oi — responde Bi, fazendo um esforço para entreabrir a gaiola de seus

dentes amarelados de cigarro.

— Deixa ela pra lá! Já não falei que é doida? — reclama Evan.

Doida, doida, doida. Talvez tenha razão. De que outro jeito poderia definir uma

irmã que aparece na frente do irmão com uma barra de ferro na mão e o faiscante

olhar de louca?

Duas palavras se formam em minha garganta e saem quase sem perceber:

— Sinto muito.

Mas os dois já desapareceram dentro do caos pré-histórico do quarto de Evan e

noto que acabei de falar com uma porta fechada.

Não sou do gênero que pede desculpas ou que sente muito. Mas a verdade é que

a minha vida está mudando, e eu, mesmo contra a vontade, acabo mudando junto

com ela.

— Oi, querida, tudo bem na escola?

Minha mãe está na sala, sentada no sofá. Está costurando um botão numa

camisa. A seu lado, Lina tenta fazer a mesma coisa com um vestido velho, as

mãozinhas atentas para não deixar a linha escapar da agulha, os olhos grandes

concentrados no local em que a agulha entra num dos buraquinhos do botão.

—Tudo bem.

Lina levanta a cabeça de cabelos castanhos presos por um arquinho rosa de

bolinhas brancas. Sorri para mim.

— É mesmo? Parece chateada — diz Jenna, dirigindo seu olhar indagador para

o meu rosto.

‚Chateada': acho que não é a palavra certa para definir o jeito como me sinto.

— Coisa de escola, as de sempre — respondo, esperando que seja suficiente.

Mas ela está muito ocupada com outras coisas para tentar se aprofundar nos

meus dramas.

Estou indo para o meu quarto quando chega mais uma pergunta.

— Sabe o que aconteceu com seu irmão, por acaso?

Minha respiração fica bloqueada por um segundo, mas faço um esforço para não

deixar transparecer nada.

— E por que devia saber? Não fala comigo. Nem comigo, nem com mais

ninguém...

— Não foi assistir ao ensaio dele no ginásio?

Pois é, fui e tentei matá-lo com uma barra de ferro. Satisfeita, mãezinha

querida?

— Não, me perdi no caminho e, depois de um tempo, resolvi voltar. Bem,

preciso estudar agora. Com licença. — E desapareço antes de explodir.

Entro no quarto e fecho a porta atrás de mim. Estou salva, por enquanto. Mas

será que esse é mesmo o único lugar seguro para mim?

Continuo a pensar em Morgan, que me deixou sozinha sem uma palavra de

explicação. Com quem posso me abrir? O homem-anjo está morto, o Master que me

seguia continua me seguindo e nem sei o motivo. Sou um perigo para mim mesma e

para os outros. O que devo fazer?

Corro até o armário, abro e remexo no fundo. Por um instante, acho que não

vou encontrar o caderno roxo, imagino que minha irmã pode ter pegado para brincar

ou, pior ainda, que Evan o encontrou. Seria um desastre, mas por sorte meus dedos

tocam na capa macia e agarram o caderno.

A chave está ali. Naquele caderno.

Tem que ficar sempre comigo, repito. É muito arriscado deixá-lo longe dos

meus olhos. Enfio o caderno na mochila entre os livros da escola. Estão velhos, as

páginas rabiscadas. Não são abertos há um bom tempo. O que aconteceu com a

menina de 17 anos perfeita, com a aluna-modelo? Onde foi parar?

Como é possível que esteja pensando em homicídios, meninos que desaparecem

sem uma palavra e homens que querem me ver morta?

Deito na cama com a cabeça pesada. Como alguém já disse: ‚Amanhã será outro

dia.' Uma frase idiota, mas pela primeira vez na vida espero que seja verdade.

Já é de manhã. Acabei de acordar. Raios de luz penetram pela persiana

abaixada. Verifico imediatamente o caderno: não escrevi nada. Suspiro de puro alívio.

Um novo dia começa, igual a todos os outros.

Não encontro ninguém em casa. Trato de me arrumar rapidamente e saio

também. No espelho do elevador, me examino: não tenho a menor ideia do que

vesti. Aquilo que era tão importante antes já não é mais. Jeans e suéter, o que

importa se vou morrer mesmo?

Lá fora é pior ainda. Ar pesado entrando pelo nariz como gás. Tenho a sensação

de estar embaixo d’água, esmagada por uma pressão forte demais para que eu possa

resistir.

Vou até a banca de jornal de sempre, cheia de gente a essa hora da manhã, e

adquiro um exemplar de um jornal qualquer. Sei muito bem o que vou encontrar.

A notícia está na primeira página:

MORTE ‚INEXPLICÁVEL' NUMA PAPELARIA DO CENTRO

O corpo de um homem de cerca de 60 anos foi encontrado ontem à tarde, por

volta das cinco horas, por policiais da Delegacia de Homicídios. O homem estava

caído no chão da papelaria em que trabalhava, em pleno centro da cidade. As

primeiras informações dizem que a polícia foi avisada por um telefonema anônimo:

uma voz jovem, de mulher. O tenente Sarl, responsável pelas investigações, mantém

o mais absoluto silêncio sobre as circunstâncias da morte e declarou apenas que, por

enquanto, ela é ‚inexplicável'. De fato, não foram encontrados indícios de

arrombamento na papelaria e nada foi roubado, pois a loja estava sendo transferida

para outra área e todas as mercadorias já haviam sido retiradas. O corpo também não

apresentava sinais de violência. A polícia espera que os resultados da autópsia possam

ajudar a desvendar o crime.

Algumas testemunhas viram um homem de luvas e chapéu saindo da papelaria

e logo em seguida uma moça vestindo uma jaqueta escura. Mas nenhuma delas foi

capaz de fornecer uma descrição mais precisa.

Leio a assinatura: Roth.

Uma moça com uma jaqueta escura! É exatamente isso que está escrito. E sou

eu!

Dou uma olhada rápida na minha jaqueta. É a mesma de ontem. Volto correndo

para casa. Entro no quarto e tiro o casaco. Verifico as alternativas: vermelho, berrante

demais; cinza, muito escuro e muito parecido com a descrição; verde, pode ser. É um

pouco leve demais, mas não importa. Melhor congelar de frio do que acabar na

prisão.

E se alguém me reconhecer? Como posso ter certeza de que, neste exato

momento, outra testemunha, desconhecida pelo jornal, não está fornecendo à polícia

os elementos necessários para fazer meu retrato falado?

Prendo o cabelo. Um corte mais radical provocaria perguntas indesejáveis por

parte de Jenna.

O homem-anjo morreu.

Tudo o que posso fazer é esquecer que ele existiu.