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Perambulo pelos corredores da escola como uma figurinha que ficou fora do álbum.

Estou me sentindo completamente distante dessa realidade que um dia foi minha.

Meus colegas são os mesmos de sempre e fazem as mesmas coisas de sempre, quem

mudou fui eu, e mudei demais para voltar a falar a língua deles.

Encontro o Professor K no intervalo e nos cumprimentamos como se nada

tivesse acontecido, embora minha mente continue retornando ao Refúgio, à câmara

de transição.

— Oi, Alma, se quiser podemos comer alguma coisa juntas depois da escola —

diz Seline, extraordinariamente alegre. Está com um vestido de florzinha, que não

me lembro de ter visto antes. Agora só restou ela. Naomi voou para longe, Agatha

está na gaiola. Seline é a única ligação que tenho com um passado que não tenho

vontade de abandonar.

— Obrigada, mas estou ocupada. Está de vestido novo? Lindo! — acrescento

para deixá-la feliz.

— Foi minha mãe quem me deu. Ontem fomos ao shopping no novo City Mali.

Devia ir. É uma ótima terapia.

— Quem sabe no fim de semana...

— Não tem nada de novo para me contar?

— Não, nada de novo, Seline. E você e Adam, ainda estão se vendo?

— Não muito. Só aqui na escola mesmo.

— E não está chateada?

— Bem, não muito, na verdade.., conheci uma pessoa.

— Ah, então é por isso!

— Por isso o quê?

— Por isso que não está arrancando os cabelos por causa do Adam.

— Ora, não ia arrancar mesmo, o que acha que sou? — diz, meio ofendida.

— E quem é essa nova paixão?

— Você não conhece. Frequenta outra escola.

A campainha nos interrompe antes que ela possa me afogar com todos os

detalhes de seu mais recente troféu, que durante algum tempo reinará no olimpo dos

meninos perfeitos, no país dos maiores amores da sua vida, para depois cair no

inferno dos esquecidos, como todos os que vieram antes dele.

Seline é assim mesmo: quando um vestido sai da moda, compra outro. Mas não

queria de jeito nenhum que ela fosse diferente, porque é justamente nessas bobagens

que ainda encontro um pouco da vida de todo dia que me faz tanta falta.

♦♦♦

Do lado de fora da escola, vejo Sarl. Está de pé perto de um carro que poderia

ser o seu: um velho Spider vermelho com capota preta, mais rodado do que bonito, o

clássico carro que o dono adora como se fosse uma linda namorada.

— Lindo, é seu? — pergunto, certa de que vou acertar o alvo.

— Sim, é a menina dos meus olhos. Foi meu presente quando passei no exame

de fim do ensino médio.

— Nossa, pais generosos, os seus!

— Meu pai era apaixonado por carros e esse aqui era o máximo, na época —

explica ele, todo orgulhoso.

O interior também não decepciona: bancos de couro preto, gastos e

impregnados de cheiro de cigarro. Um gravador, blocos de anotações e uma pilha de

jornais entopem o banco traseiro. Uma pequena gnoma com seu pontiagudo chapéu

vermelho vigia, presa ao painel pelo pedestal adesivo.

— E essa aí, quem é?

— É a Emma. É meu amuleto.

— Parece um objeto especial...

— E é, por causa da pessoa que me deu.

Entendo que se trata de uma mulher que, no entanto, não faz mais parte de sua

vida.

— Fala dela com saudade. Morreu?

— Não, o que morreu foi o sonho que ela representava para mim. Emma é a

lembrança positiva, o resto não interessa mais. Muitas vezes as pessoas são diferentes

daquilo que você pensa que são. E isso acontece porque a gente tem tendência a

interpretá-las segundo o nosso próprio jeito de pensar, nossa própria sensibilidade.

Devíamos ficar observando, como se faz numa peça de teatro, e deixar para fazer os

comentários no final, quando o espetáculo chega ao fim.

— É o que está fazendo com Jenna?

Ele me olha meio sem graça.

— Interpretações geram expectativas, que por sua vez geram desilusão. Você

ainda é muito jovem para entender, mas vai acabar aprendendo na própria pele. As

relações entre homens e mulheres são a coisa mais difícil do mundo.

— Se você acha... — observo.

— Investigar um crime não é nada perto de tentar entender uma mulher! — o

tenente ri, ligando o motor.

O motor ronca com uma energia inesperada e, com as mãos no volante, Sarl

parece um rei. Pelo menos pode escolher a direção, pode governar alguma coisa, nem

que seja o seu velho carro adorado.

Entrar na casa de detenção sozinha é uma coisa, mas com Sarl a música é outra.

Entre um ‚bom dia, tenente' e um ‚que prazer em vê-lo!', somos recebidos com

todas as honras. As cartas deixaram de ser necessárias, só vejo sorrisos e muita

cortesia.

— Deve ser um peixe grande a julgar pelos tapetes vermelhos que estão

desenrolando para o senhor hoje! - comento sem conseguir evitar a ironia.

— Na verdade, não sou nenhum peixe grande — ele ri, divertido.

— De vez em quando, aqueço as gargantas deles com uma boa garrafa. Eles

bebem juntos quando acaba o turno e são sempre muito gentis quando venho aqui.

— Isso quer dizer que, se pedisse um favor, eles fariam de bom grado?

— O que está tramando?

Acabei de ter uma ideia, e conto para ele sem me preocupar com a reação.

— Queria levar Agatha para fora daqui. Por pouco tempo, só para respirar um

pouco de ar livre.

Sarl olha para mim como se, de repente, não me reconhecesse mais.

— Ela só pode sair daqui com uma permissão do juiz. Impossível.

— Foi o que pensei, mas achei que talvez desse para fazer uma pequena exceção,

sem muita publicidade.

— Uma pequena exceção, você disse? É um crime — rebate ele a meia-voz.

— Acho que Agatha ficaria muito agradecida. Vai passar dessa gaiola para uma

espécie de hospício, onde vai ficar trancada com um bando de gente pirada por não

sei quanto tempo.

— Se está tentando despertar minha piedade, não vai colar.

— Só por uns minutinhos...

— E se ela tentasse fugir? Tem pelo menos uma vaga ideia do que aconteceria?

— Não vai fazer isso.

— Não posso e ponto final.

— Tudo bem, talvez tenha razão e isso não passe de uma ideia idiota.

Desculpe... — digo friamente.

Quando o guarda chega para abrir a porta da sala de encontros, Agatha já está

sentada esperando. Assim que me vê, percebo um brilho em seu olhar sombrio.

Acho que ficou feliz em me ver.

— Vou esperar lá fora — diz Sarl, fechando a porta.

Afinal estamos sozinhas. Nenhum guarda nos ouve. Estranho.

— Oi — digo, sentando diante dela.

— Não pensei que fosse ver você de novo.

Agatha fala com voz tranquila. Parece calma e não noto nenhum sinal dos

efeitos de um calmante.

— Queria falar com você antes da transferência.

— Então já soube?

— Soube, o tenente me contou. Queria dar notícias do Gato.

Seu rosto se ilumina como um caça-níqueis acionado de repente.

— Como ele está?

— Bem, muito bem. Já se adaptou perfeitamente à nova casa.

— É um gato legal.

— E minha irmã, Lina, adora ele.

— Obrigada por cuidar dele.

— É um prazer, realmente.

— E... encontrou de novo aquele cara, o da foto?

— Por acaso, uma vez.., pelo menos acho que era ele. Foi lá perto do

consultório do dr. Mahl.

Agatha arregala os olhos.

— E o que você estava fazendo lá?

— Queria conversar. Fiz um tratamento com ele depois do acidente. Jenna me

obrigou, por causa de todas aquelas bobagens de ficar traumatizada porque vi minhas

amigas mortas... bem, ele é um cara legal.

— E o que você disse? Posso saber?

— Que você não é do tipo que quer se matar, que encheram você de calmantes

aqui dentro, mas que não precisa dessas coisas.

— Então foi recomendar minha alma? Muito bem, ele vai fazer o que pediu,

tenho certeza — comenta irônica.

— Só queria ajudar.

— Escute, da última vez que tentou me ajudar, acabei aqui dentro. Portanto,

por favor, pare de tentar.

— E fui pegar o Gato.

— E eu lhe dei uma informação importante sem fazer perguntas. Diria que

estamos empatadas, certo?

— Na verdade, não. Ainda lhe devo uma coisa...

De repente, a porta se abre às minhas costas. Agatha e eu olhamos para ela, mas

não aparece ninguém. Trocamos um olhar interrogativo. Levanto para ir ver. O

corredor está deserto.

No começo, não sei como explicar, a menos que... Sarl tenha resolvido ajudar!

Talvez seja um jeito de ele dizer que posso levar Agatha até lá fora, mas sem dar

nenhuma autorização formal ou demonstração que sabia da coisa. Não pode saber do

que não viu. Esperto. E generoso.

— Que coisa é essa que você me deve? — pergunta ela.

—Venha, ande.

— Mas... onde estão os guardas?

— Vamos, já falei.

— Para onde?

— Lá fora, só alguns minutos.

— Perdeu a cabeça, Alma? Se me pegam lá fora, vão me deixar apodrecer aqui

dentro.

— Confie em mim. Venha.

— Não confio em ninguém.

— Pois abra uma exceção dessa vez — digo, puxando seu braço. É como segurar

um galhinho seco que está prestes a cair da árvore. — É a coisa que estava lhe

devendo.

Arrasto Agatha pelo corredor, atravesso uma porta aberta até a entrada, também

deserta. Ela olha ao redor meio perdida, como um náufrago que acabou de dar na

praia de uma ilha deserta.

Estou cada vez mais convencida de que nada disso é casual. O que se confirma

quando descubro que até o policial da guarita externa desapareceu num passe de

mágica.

Assim que põe os pés do lado de fora, Agatha olha para o céu de um lado e de

outro como se verificando as coordenadas de uma posição. Inspira um bocado de ar,

com gosto. E pela primeira vez, a vejo sorrir.

— Aqui fora é completamente diferente.

— Não vai ficar lá dentro para sempre.

— Não me venha com o sermão da boa samaritana. Sabemos muito bem o que

vai acontecer comigo, mas aprendi a viver cada dia de uma vez, sem esperar droga

nenhuma. Foi assim que sobrevivi até agora.

— Não fuja, por favor.

— Não vou fugir. Só quero aproveitar esse pedacinho de liberdade. Quanto

tempo temos?

— Alguns minutos.

Agatha suspira.

— O que vai lhe dar em troca?

—A quem?

—A SarI.

— Nada, só pedi um favor.

— Ninguém faz nada de graça, ainda não entendeu isso?

— Pois eu fiz isso por você. Porque é minha amiga, queira ou não.

Agatha me olha de um jeito estranho, como se minhas palavras tivessem aberto

um buraquinho em seu coração fechado a vácuo.

Ela não diz nada. Chega mais perto e me abraça. Aperto seu corpo magro, sem

saber bem o que fazer, com medo de quebrar alguma coisa. Dura um segundo, o

máximo de tempo que ela se permite.

— É melhor voltar agora. Sei por experiência própria que as coisas boas não

duram para sempre.

Diz isso e se encaminha para o interior. Tem um passo mais firme, como de

uma doente que resolveu se curar.

Olho para ela e penso: está enganada, Agatha, tem gente que faz as coisas sem

pedir nada em troca.