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Quem sofre de sonambulismo sabe disso muito bem. Não há como reprimir o

impulso de acender a luz da mesinha de cabeceira, sair das cobertas e abandonar a

cama quentinha, de vestir as roupas com cuidado, arrumar a mochila com tudo o que

é necessário, passar rapidamente pela cozinha para pegar um último e fundamental

objeto, abrir a porta de casa e sair para a noite escura e funda, guiada por um

objetivo enfiado como um prego em sua cabeça.

É nesse estado que me encontro caminhando pelas ruas da cidade, que me

parecem mais desertas e desoladas do que nunca, como uma perfeita projeção do

vazio que carrego dentro de mim.

Não tenho medo, não me sinto nem cansada. Sinto, no entanto, uma estranha

energia que não parece minha e que percorre todo o meu corpo. Minha cabeça está

leve e o olhar rápido.

Nomes das ruas, carros, pessoas.

O resto é como um cenário de papelão.

Olho a rua diante de mim, executo passos que engolem o chão movidos pela

determinação de cumprir minha missão, uma missão que deixará marcas, que abrirá

a milésima rachadura na casca arrebentada dessa cidade.

Um velho mendigo me vê passar e se aproxima, estendendo a mão suja e

murcha. Examino seus olhos negros, afundados nas órbitas inchadas e cobertas por

uma máscara de rugas escurecidas pela fumaça das ruas. Seus lábios finos como os de

um réptil se abrem num sorriso podre e corrupto, que fede a álcool barato. As

roupas, duras de sujeira, emanam um cheiro acre que o velho usa, satisfeito, como

uma velha armadura.

Avança para mim com a extrema lentidão de uma criatura habituada a se

movimentar nas trevas. Continuo andando sem parar de encará-lo Não tenho medo

dele, nem pena daquele pedido nojento de esmo la Mas sinto uma coisa estranha,

algo como um bolo de metal que se agita contra as paredes do meu estômago e

começa a subir até a garganta, gélida e perfeita. O bolo quer sair e atacar a cara do

velho, bem no meio dos olhos, quer apagar aquele olhar mesquinho para sempre.

Quando entro na luz de um lampião, o mendigo consegue me ver bem, talvez

pela primeira vez. Arregala os olhinhos pretos, tão aterrorizados que parecem que

vão sair voando de dentro das crateras onde estão.

Começa a recuar com a mesma lentidão, agora mais incerta, trêmula.

Por que tem medo de mim?

Em seguida desaparece, engolido pela sombra que o gerou, deixando no ar o

rastro nauseabundo de sua existência.

♦♦♦

Estou na Ponte de Ferro. Embaixo de mim, o rio flui implacável como o sangue

nas veias. A água é escura e carregada de força. Arrasta consigo tudo o que encontra

no caminho, sem distinções. Corrói as paredes do próprio leito, com sua passagem

suave, mortal e harmoniosa como os dedos da mão nas cordas de um instrumento.

Não seria difícil pular o parapeito, descer e chegar à água. Juntar-me ao seu

fluxo, ser parte dela, como ela é parte de mim.

Encosto no parapeito e aperto as mãos na barra de ferro da grade.

Olho o rio, a água que vira água e mais água, hipnotizada.

Em seguida, uma pontada na cabeça, lancinante, racha minha visão como um

raio caindo no céu noturno. Fecho os olhos, mas continua vê-lo. A luz do raio me

deixa cega e produz um calor que envolve meu rosto como a carícia de uma chama. É

suave e insuportável. Tenho vontade de gritar, mas alguma coisa, talvez o bolo de

metal que sinto na garganta, me impede.

Depois um toque, a mão que aperta a minha que está agarrada ao parapeito.

Viro num salto e por um momento penso que estou em meu quarto, em minha

cama, vítima de mais um pesadelo.

Mas não é nada disso.

Diante de mim, Adam parece muito real apertando meu pulso, quente,

humano.

— Está me ouvindo, Alma?

Ele me sacode como um velho vestido empoeirado.

— Sou eu! Adam!

Balança a mão diante de meus olhos, que eu acompanho como se fosse um

pêndulo hipnótico.

Então, com delicadeza, segura minha outra mão.

— Pode soltar — me diz.

O que devo soltar?

— Devagar, vamos... solte.

Naquele instante, sinto alguma coisa apertada em meu punho fechado, que

Adam está tentando retirar.

Não quero.

Aperto mais. Depois levanto a mão.

Seja o que for, Adam recua. Seus olhos são percorridos por um brilho de terror,

como na noite no rio. E aquela imagem é uma chicotada em meus sentidos, que

despertam bruscamente, me lançando para fora do sonho, fora da minha cama e para

dentro de uma cena real na qual não me reconheço.

Começo a sentir frio e muito cansaço. A coisa que aperto na mão é pesada.

Finalmente, olho para ela.

E deixo cair no chão na mesma hora, como se queimasse. O som metálico ressoa

no pavimento de pedra da ponte e repercute em meus ouvidos.

E um enorme facão.

Sem hesitar, Adam dá um chute no facão, jogando-o longe. Depois aperta meus

braços e me sacode de novo.

— O que diabos você estava fazendo? O que queria fazer com essa faca, Alma?

Olho para ele com os olhos arregalados de terror.

— Não sei... Juro que não sei!

Ele me abraça para me acalmar quando começo a tremer espasmodicamente.

— O que tem na mochila?

A mochila? É pesada... Só agora sinto seu peso no ombro.

— Nada.

Adam tira a mochila de mim à força.

— Não! — grito em seu rosto. — Devolva!

— Primeiro quero ver o que tem dentro.

— Não se atreva! Fique longe disso.

Pulo em cima dele e tento arrancar a mochila de sua mão, mas estou muito

fraca, fraca demais para enfrentá-lo. Ele leva a melhor.

Abre e tira lá de dentro o que eu preferia nunca ter visto: pregos, martelo, uma

corda...

Assassina.

Mata.

Sem piedade.

Mata.

As palavras começam a dançar em minha mente como um refrão mortal, que

conheço bem demais. E ganham forma e corpo com uma clareza que me deixa sem

ação. Ouvi essas palavras antes, inclusive essa noite. A lembrança chega mais rápido

que um veneno.

Agarro a mochila e começo a correr, voltando para o lugar de onde saí. Mas sou

muito lenta, Adam me alcança com facilidade.

— Pare! Aonde vai?

A lugar nenhum. Eu me rendo. Caio de joelhos. Já não me sinto mal. Já não

sinto mais nada.

Ele se agacha a meu lado, como se pudesse entender melhor o que está

acontecendo ficando na mesma altura.

— Se não quer dizer por que estava andando por aí, no coração da noite, com

um facão na mão e uma mochila com instrumentos para crucificar alguém, não

importa. Mas não vá embora, por favor. Quero levá-la para casa. Está completamente

fora de si. Entende o que estou dizendo?

Na confusão dos pensamentos que passam pela minha cabeça, consigo perceber

que tem razão.

— Entendi... Tudo bem... Vamos para casa.

— Espere aqui um segundo.

Vejo que retorna ao lugar onde estávamos, recolhe as minhas coisas, inclusive o

facão, e enfia numa bolsa de ginástica.

Em seguida, ele me ajuda a levantar e me leva até a moto.

Sento no banco de trás sem dizer mais nada.

A moto desliza veloz, mas não o suficiente para deixar tudo para trás. Não

interessa quem está comigo agora, quem estará amanhã, nunca vou conseguir me

libertar do que está dentro da minha cabeça, da voz do Pai que substitui minhas

emoções, meus sentidos e que vai me matar lentamente se eu não fizer o que ele

manda.

Estou de novo diante do portão de casa. A escuridão está abandonando o céu

como uma tinta que se dissolve na água. Um novo dia está para nascer.

— Como conseguiu?

Adam não responde.

— Estava me seguindo?

— Com certeza não estava passando por acaso.

— Por que insiste em me seguir? O que quer de mim?

— Saber o que tanto tem para fazer no Velho Aqueduto.

Não. Isso não. Não podia acontecer. Quando Morgan souber, vai ficar

simplesmente furioso. Mesmo que eu lhe conte antes que fique sabendo por conta

própria.

— Adam, vou falar da maneira mais clara que puder: fique longe de mim e de

tudo o que me diz respeito. Estou falando isso como um favor e como um aviso: se

continuar, vai ser pior para você.

— Está me ameaçando, esqueceu que vim ajudar você?

— Agradeço tudo o que fez, de verdade. Mas é para o seu próprio bem. Fique

longe dessas coisas.

— Não sei de que coisas está falando.

— Precisa acreditar na minha palavra.

Tem um olhar intenso, cheio de uma ternura que me fere.

— Talvez seja melhor eu ir embora — diz finalmente.

Sobe na moto enquanto cruzo a porta de entrada. Fico olhando sua moto se

afastar. Não sei por quê, mas não gosto de vê-lo ir embora.

Chegando em casa, ainda com o coração inchado de lágrimas, abro o caderno

roxo e verifico se escrevi alguma coisa. As páginas cor de marfim estão intactas.

A última coisa impressa no caderno foi o desenho de Lina.

Dois homens. E um fio vermelho.