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Envolta na mais absoluta tranquilidade, a casa do escritor parece saída de um

romance do século passado. Cercada por um jardim dominado por uma desordem

espontânea e fechado por um muro claro da altura de um homem, a casa mantém

certo rigor nas linhas puras de sua arquitetura levemente retrô: janelas em arco se

abrem como olhos na fachada clara e envelhecida pelos anos. Uma pequena varanda

que fica logo abaixo é a boca imaginária, e os dentes são as pequenas colunas brancas

e graciosas. Descendo mais um pouco, uma porta antiga de batente duplo, de

madeira inexplicavelmente escura em contraste com o resto. A seu lado, à direita, a

torrezinha: os tijolos aparentes de que é feita fazem pensar que foi acrescentada

depois que a casa já estava pronta. Parece que alguém a jogou no meio do jardim por

engano, enfiada no soio, e nunca mais retirou. De base quadrada e bastante rústica,

tem três andares separados por três faixas de friso branco, cada um com sua janela,

também quadrada. O teto, reto, dá à torrezinha um ar militar, como se lá dentro

fosse preciso se defender das batalhas que ressoam do lado de fora.

O único movimento ao redor da casa é um fio de fumaça que sai serpenteando

do alto da torre, denunciando a presença de alguém que, apesar da estação mais

amena, está com frio.

Imagino David atrás de sua escrivaninha entulhada de objetos poeirentos, talvez

no último andar daquela torrezinha bizarra, tentando domar o temperamento de

alguns personagens mais rebeldes, que se recusam a seguir a história e querem agir

por conta própria. Sempre pensei que seria esse o trabalho de um bom escritor de

aventuras.

Quando a admiração misturada ao espanto por esse estranho edificio se acaba,

como um filme que chegou aos créditos finais, entendo que preciso tomar uma

decisão sobre o que farei.

Posso bater na porta e tentar explicar a esse tal de David que eu também escrevi

um conto, do qual ele é o protagonista. E vou ter que explicar que, ao contrário dos

outros contos, e provavelmente dos dele também, os meus realmente acontecem. E

que isso não é nada bom, pois o protagonista sempre morre.

Se for suficientemente convincente, posso esperar que a ilimitada imaginação

que é, com certeza, uma característica do seu modo de entender as cojsas o leve a

acreditar em mim, nem que seja por um segundo, e a considerar a hipótese de que

sua vida esteja realmente em perigo.

Se, ao contrário, como é mais provável, ele achar que sou apenas mais uma

admiradora fanática e completamente maluca, logo estarei olhando de novo para a

porta, pois ele vai batê-la na minha cara.

A alternativa é esperar a noite do assassinato, que poderia ser hoje mesmo ou

amanhã, e voltar para tentar deter a assassina a tempo, para impedir que mate o

escritor, mas também para que ele a veja e compreenda o risco que correu. E se não

conseguisse detê-la? David morreria e, em breve, eu escreveria outro conto. Mas, se

eu conseguir parar a engrenagem, é possível que todo o mecanismo saia dos eixos,

que eu não escreva mais e ninguém mais morra.

Enquanto penso no assunto, ouço um barulho atrás da porta da casa e me afasto

para não ser vista. Resolvo sentar num banco do outro lado da rua. Para não dar na

vista, tiro um livro da mochila.

Vejo um homem, ainda jovem, sair com um cachorro bem grande.

É David.

Abre o portão e começa a caminhar na calçada deserta. O cão, sem coleira, o

segue fielmente.

Não é muito alto, nem muito magro. Usa uma calça xadrez bordô e branco bem

duvidosa e um velho suéter branco de lã grossa e pesaIa, do tipo que se usa na

montanha. Vestido daquele jeito, é como se quisesse dizer a todo mundo que não se

importa com roupas, que tem coisas muito mais importantes para pensar, misturadas

às tramas de seus romances.

Resolvo segui-lo a distância. Caminha até uma banca de jornal, compra um, que

folheia rapidamente até a última página. Esportes. Troca duas gracinhas com o

jornaleiro, que parece conhecer bem, e volta para casa pelo mesmo caminho. O cão

continua atrás dele.

Pelo jeito como faz cada gesto como se fosse um ritual, deduzo que é um sujeito

de hábitos regulares e, portanto, que faz a mesma idêntica coisa todo santo dia,

embora me pareça estranho que alguém espere as primeiras horas da tarde para

comprar o jornal.

Se pretendo falar com ele, esse poderia ser um bom momento. Mas quero

mesmo fazer isso agora?

Por que nas minhas noites de delírio não escrevo, junto com os contos, um

folheto com as instruções de uso? Com explicações detalhadas sobre o modo como

tratar a vítima, quando aparecer diante dela, o que dizer e assim por diante.

Enquanto isso não acontece, não sei o que fazer. Só sei que, se cometer algum

erro, por menor que seja, o escritor morre. O enésimo morto.

Levo tempo demais para resolver e David entra em casa.

O destino decidiu por mim.

Vou esperar a noite.

Mas como vou saber se é essa ou a próxima? Pense, Alma, pense. Escrevi no

conto que era uma noite de lua cheia. Talvez só precise consultar um calendário para

saber, contando que minha descrição seja mesmo precisa, que a lua era realmente

cheia e não quase cheia. Minúsculos detalhes capazes de fazer uma diferença enorme.

Vou consultar um calendário e confiar na sorte.

Se é que ela existe.

Pego o caminho de volta.

Minhas amigas estão me esperando no Zebra Bar.