Olho para a piscina sem vê-la realmente, perdendo-me nas imagens refletidas na
superfície.
O professor está na cabine. Posso vê-lo mexendo com alguma coisa abaixo dele,
provavelmente um painel de controle.
Reina na sala o mais absoluto silêncio. Estamos todos à espera. A única
diferença é que os outros sabem o que vai acontecer, enquanto eu não tenho a
mínima ideia.
De repente, explode no ar um forte ruído mecânico, como uma engrenagem que
entra em ação. As paredes da cisterna começam a vibrar e, por um instante, tenho a
sensação de estar a bordo de um submarino prestes a submergir. Um rangido surdo
de peças mecânicas que roçam umas nas outras é seguido por uma sucção poderosa,
como se tivessem aberto um ralo no fundo da piscina. E é isso mesmo: o nível da
água está descendo, primeiro lentamente, depois cada vez mais rápido.
À medida que a piscina esvazia, um cheiro forte de podre se espalha no ar, de
algas apodrecidas, grudadas há muito tempo nos ladrilhos das bordas. Tampo o nariz
com dois dedos e continuo a olhar, com medo que, de uma hora para outra, apareça
alguma nova monstruosidade.
No entanto, quando a piscina já está pela metade, surge uma coisa que parece a
tampa de uma grande caixa apoiada no fundo. Só quando a piscina fica totalmente
vazia é que posso vê-la por inteiro: trata-se de um cubo de metal da altura de um
homem, com quatro pequenas escotilhas em cada uma das faces laterais. Uma
camada de musgo reveste toda a superfície do cubo, dando-lhe a aparência misteriosa
de um cofre de um navio naufragado.
— Que droga é essa?
Morgan, que nesse meio-tempo tinha se aproximado, silencioso como um
predador noturno, coloca a mão no meu ombro.
— É a câmara de transição. O único jeito de ir a My Land. — Com um gesto de
cabeça, indica o professor, que sai da cabine de manobra e vem até onde estamos. —
Levou oito anos para projetá-la e construí-la.
— E como funciona?
O professor explica pessoalmente:
— isso que está vendo lá no fundo é uma câmara estanque, ou seja,
hermeticamente fechada. Normalmente fica escondida e protegida pela água da
piscina. É feita inteiramente de aço inoxidável, para não ser devorada pela ferrugem.
Seu funcionamento é simples, mas bastante eficaz. Tem uma bomba, acionada por
uma manivela na cabine onde eu estava, que precisa de três minutos e 20 segundos
para esvaziar a piscina. Depois disso, é possível descer até lá embaixo, usando a
escada. Na porta da câmara, criei outro sistema de segurança para que só os Não
Nascidos pudessem ter acesso a ela. Venha comigo.
Seguimos pela borda da piscina e paramos num ponto de onde se vê a porta de
acesso à câmara. Só então noto que há uma espécie de maçaneta aplicada na parede de
metal: uma manivela semelhante à dos cofres-fortes.
— É uma manivela térmica. O mecanismo só entra em ação se a mão que o toca
tiver uma temperatura de exatamente trinta graus centígrados, ou seja, a
temperatura corporal dos Não Nascidos.
O nosso toque frio.
— E... uma vez lá dentro?
— Siga-me...
O professor vai até a escada de aço, vira de costas e começa a descer. Tenho
dificuldades para descer atrás dele: a escada é fria e escorregadia. Morgan também
desce.
À medida que penetro na piscina, o cheiro de mofo fica cada vez mais forte e
nojento.
— Cuidado para não escorregar — diz o Professor K.
Anel, Raul e Christian ficaram na beira da piscina, observando do alto,
aparentemente tranquilos.
Quando nós três colocamos os pés no fundo, o professor pousa a mão na
manivela da câmara de transição.
Fico olhando para ele, imóvel. Levo um tempo para descobrir que não estou
nem respirando.
Mas não acontece absolutamente nada.
O mecanismo da fechadura não dispara e a porta continua fechada.
— Tente você — diz ele.
Chego mais perto e ele pega minha mão na sua. Sinto um efeito estranho, como
se fosse uma mão de cera.
Guiada pelo professor, aperto os dedos em torno da manivela. Cli- que, claque,
responde a fechadura.
E a porta se abre na mesma hora, exatamente como a de um cofre.
— Não entendi...
— Só os Não Nascidos conseguem abrir a porta.
— Mas o senhor.., disse que é um Não Nascido.
— Fui. Depois que me rebelei contra Ele, me afastei da minha natureza e
ganhei outra... que não é a dos Não Nascidos, mas também não é propriamente
humana. Mas a minha temperatura subiu. E não ouço mais a voz do Leviatã em
minha cabeça.
— Isso acontece com todos os rebeldes?
Morgan e o Professor K se entreolham.
— Na verdade, não conhecemos nenhum outro. A maior parte de nós não
consegue chegar até onde ele chegou... — explica Morgan. — Para ser exato,
nenhum outro... antes de você.
— Eu? — murmuro assustada.
O Professor K dá um passo à frente.
— Ainda não é o momento de abordar esse assunto. Entre comigo.
♦♦♦
O interior da câmara me deixa sem palavras. Parece uma sala de execução da
pena de morte, só que bem menor. De pé, o professor quase toca o teto com a cabeça
e calculo que quatro pessoas já ficariam apertadas lá dentro. A decoração é despojada
e essencial: uma maca com um monte de correias; uma mesa com uma série de
garrafinhas iguais, cheias de um líquido transparente; e uma caixa retangular de aço.
Ao lado da maca, uma cadeira, igual às que se usam nas escolas, com o assento e o
encosto de fórmica azul e a estrutura de ferro.
O ambiente me provoca arrepios e os instrumentos médicos me dão vontade de
fugir para bem longe.
Vou explicar como funciona. A pessoa que chamamos de ‚viajante' se acomoda
nessa maca. Não fique impressionada com as correias. É só para impedir que o corpo
caia durante a viagem.
— A viagem?
— A viagem da alma a My Land. Levei anos para encontrar a substância certa
para separá-la do corpo... — Pega uma das garrafinhas transparentes colocadas sobre
a mesa.
Não posso deixar de pensar na cozinha de Agatha, sua melhor aluna, com todos
aqueles tubos cheios de pós mirabolantes e líquidos mortais. É estranho que o
professor não tenha falado nela.
— Estou vendo que está confusa, mas já vai entender tudo. Como dizia, tive
dificuldade para encontrar a substância adequada. Não é simples criar o estado de
transe perfeito e reproduzir quimicamente as condições ideias nas quais a alma se
separa do corpo.
Olho para a garrafinha com suspeita.
— É uma solução à base de Tetradotoxina.
— Tetrado... — tento repetir.
— Tetradotoxina. É uma substância muito rara, extraída dos tetraodontídeos,
comumente conhecidos como baiacus. Em poucas palavras, é o veneno desses peixes.
— Está querendo dizer que injeta veneno no corpo dos Não Nascidos?
— O mais difícil é dosar. Um erro de um único miligrama pode criar um
estado de coma irreversível. — Mas procura me tranquilizar em seguida: Seja como
for, esse problema já foi superado. No entanto, é importante que a solução seja
preparada só por mim. Depois de pronta, a tetradotoxina é injetada nas veias do
viajante, que mergulha num sono aparente. Enquanto isso, a sala é cercada e
recoberta pela água. Essa mistura de transe induzido, ambiente fechado e água
permite que o sujeito consiga, com plena consciência, fazer a própria alma viajar para
My Land. É. uma viagem muito difícil e cansativa. À medida que a alma se
aproxima de seu destino, o poder do Leviatã vai aumentando. Por isso, a viagem não
pode durar mais do que certo tempo, que varia com base no grau de consciência do
Não Nascido. Só os mais maduros conseguem se transferir por mais tempo.
— Talvez seja uma pergunta cretina — interrompo —, mas qual o objetivo
dessa viagem?
— O objetivo é libertar o maior número possível das almas capturadas pelo
Leviatã. Quando chegam à sua corte, as almas são ingênuas, e desorientadas, como os
recém-nascidos humanos: nesse momento...ainda é possível salvá-las. O Leviatã
utiliza seu desejo de ter um corpo e vir ao mundo para obrigá-las a seguir suas
ordens quando chegarem à Terra. Passam por um processo de educação e
treinamento e formam o seu exército pessoal. Depois, Ele comanda os corpos que as
hospedam a seu bel-prazer, como marionetes cujos fios estão em Suas mãos.
Começo a chorar sem perceber. Mas não é um choro de verdade, é apenas a água
primitiva na qual minha alma estava mergulhada. Não dá para aguentar mais.
— Parece uma coisa muito perigosa — digo no final.
— E é. Por isso, até agora, apenas Morgan e Raul fizeram a viagem.
Viro para Morgan, que ficou do lado de fora. Tem um olhar orgulhoso de quem
sabe que é importante.
— E também é perigoso para o corpo que fica aqui — continua o professor. —
É um momento em que poderia ser presa fácil para os Masters, por isso a câmara tem
que estar inteiramente cercada de água. Se caísse nas mãos de um deles... bem, a
alma que o ocupava não poderia retornar, nunca mais. Já viu os olhos de um Master?
Faço que sim.
— E como eram, Alma?
— Luminosos — respondo, e de repente entendo o porquê.
O Professor K aprova lentamente.
— Eles se iluminam quando começam a sugar a alma dos Não Nascidos.
Possuem, embora em quantidades mínimas, o poder de separar nossa alma do corpo e
exercem esse poder através do olhar. A luz que você viu era da sua alma que, pouco a
pouco, fluía para o Master.
Depois de uma breve pausa, o professor recomeça a falar.
— Como estava dizendo antes, quando o viajante entra na câmara, a porta é
hermeticamente fechada e a piscina se enche de água de novo.
Tem sempre alguém lá fora para acionar a alavanca na beira da piscina.
Enquanto a alma estiver viajando, ninguém entra e ninguém sai do Refúgio.
E como vocês sabem quando a alma retorna da viagem?
— Simples. Quando a alma reentra no corpo e recomeça a respirar, aparecem
bolhas na superfície da água. É o sinal para esvaziar novamente a piscina.
— Tem mais uma coisa que gostaria de saber. Os Masters usam um anel com
um dragão, não usam?
Morgan faz que sim. E o professor também.
— O que significa?
— O dragão é o símbolo do Leviatã. Quem usa o anel é um emissário, um fiel
servidor Dele. Também servem para os Masters se reconhecerem entre si.
Relembro num turbilhão o que houve há algumas semanas.
Pensei que Adam fosse um deles.
E estava enganada quando pensei que o dragão de origami que encontrei na
minha carteira na escola fosse para mim. Era simplesmente a forma que Adam
encontrou para mandar uma mensagem a Agatha: sabia que tinha roubado o anel do
seu armário e colocado na mesa de Scrooge para que todos acreditassem que ele era o
responsável pelo incêndio no gabinete do diretor. E o tal anel nem era dele: foi
encontrado por acaso perto do lago do Parque Norte.
Um acaso, um simples acaso.
Nada mais que isso.