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Não sei se estou satisfeita com o encontro com o fotógrafo. Sinto um gosto amargo

na boca, como se tivesse perdido alguma coisa que tinha acabado de ganhar. Uma

peça que poderia ser importante para entender o que está acontecendo comigo e que,

ao contrário, mostrou que não tem nada a ver com o meu quebra-cabeça.

A viagem de volta dura pouco. Não sei por que a volta sempre parece mais

rápida do que a ida. Talvez a expectativa do que vamos encontrar ao chegar estique o

tempo. Mas depois, quando finalmente chegamos, tudo se desmancha no ar num

instante. Por isso, acho que a espera por um momento bom vale muito mais do que o

momento em si.

Depois de descer na estação, dou uma olhada para o relógio da entrada: pouco

mais de quatro horas. Passo em revista as alternativas. É cedo demais para voltar para

casa. Além do mais, não é um dia como os outros, embora a normalidade tenha se

transformado numa coisa que quase nem lembro mais. Vale a pena fazer mais uma

tentativa de descobrir novas pistas.

Sarl estava esperando os resultados da autópsia do homem-anjo. Talvez já

tenham chegado. De qualquer jeito, posso pedir notícias de Agatha. Apesar de tudo,

não consigo me livrar da sensação de culpa por ter mandado Agatha para a prisão.

Resolvido: irei à delegacia.

No caminho para lá, as palavras de Markos sobre a filha, sobre as maldições e

sobre o demônio viram uma ladainha que ressoa na minha cabeça. De vez em quando

olho para trás. A terrível sensação de estar sendo seguida não me abandona mais.

O largo que fica na frente da estação ainda está cheio de gente que corre em

todas as direções e tenho que atravessá-lo para chegar ao ponto de ônibus. Tem gente

esperando, alguns em pé, outros sentados num banco que fica embaixo do quadro

dos horários.

Alguns segundos depois, um rapaz se aproxima. Um pouquinho mais alto que

eu, tem os cabelos pretos e curtos. Usa uma jaqueta clara que termina logo abaixo da

cintura. Está fumando um cigarro que segura entre o polegar e o indicador da mão

direita. Traga profundamente, apertando os olhos, e olha para o chão com jeito

indiferente. Imagino que essa atitude faz com que se sinta mais adulto.

Percebe que estou olhando e vira de frente para mim. Quando encontro seus

olhos verdes, de uma tonalidade mais clara que os meus, tenho a sensação de que não

é totalmente desconhecido, mas não consigo me lembrar de onde posso conhecê-lo.

Tem um rosto meio irregular, com o queixo levemente pontudo e um nariz

importante. Dá mais uma tragada no cigarro e abre os lábios carnudos para soltar a

fumaça. Nenhum dos dois abaixa os olhos, mas não é embaraçoso. Parece mais um

desafio para ver quem resiste mais tempo. Quando o cigarro chega ao fim, ele joga a

guimba no chão e esmaga com a sola do sapato.

— Quer um? — pergunta, tirando um maço do bolso da jaqueta.

Sua voz rouca, ainda mais áspera por causa do fumo, tem algo de familiar.

— Não, obrigada. Não fumo.

— Que pena.

— Fumar faz mal — digo sem pensar, mas me arrependo em seguida. Estou

falando como uma mãe.

— Só faz coisas que fazem bem?

— Tento.

— Não acredito.

— Você nem me conhece.

Ele lança um olhar de superioridade consciente.

— É melhor se aceitar pelo que você é, no bem e no mal.

Só me faltava mesmo encontrar um completo estranho para desfiar sugestões

filosóficas sobre a minha vida.

— Quem você pensa que é para me dar conselhos?

— Quando nos encontrarmos de novo, vai me dar razão.

— E por que acha que vamos nos encontrar? Se está pensando em me convidar

para sair, a resposta é...

— Não. Eu sei, nunca teve namorado.

Fico sem palavras. Como é que ele sabe? Está escrito na minha testa?

— Fique com ele, pode me devolver da próxima vez. Coloca o maço de cigarro

na minha mão e não consigo reagir. Sua pele é fria, como a minha.

Naquele momento, o ônibus aparece. Olho a porta que se abre à minha frente e,

em seguida, viro para ele de novo: não está mais lá. Subo e vou me sentar na fileira

do fundo. Em poucos segundos, o ônibus parte. Enquanto se afasta, vejo o cara dos

cigarros no meio da fumaça do cano de descarga. Está sentado no banco embaixo do

quadro de horários olhando para mim.

Tem alguma coisa esquisita nele, na segurança que ostenta em relação a mim.

Ou será que estou me deixando influenciar novamente?

É impressionante mas, depois de ter escrito aqueles contos horríveis, alguns

detalhes aos quais não dava a menor importância começaram a ganhar vida, como

objetos metálicos perto de um ímã muito poderoso. Quando a dúvida se insinua na

mente, tem o poder de um filtro que altera a percepção, destacando umas coisas e

escondendo outras. Olho para o maço de cigarros na minha mão. É a prova de que

não estou sonhando, de que todas essas coisas estranhas que estão acontecendo

comigo são absolutamente reais. Minha cabeça explode de novo. Sem pensar, enfio o

maço na mochila.

♦♦♦

Entro na delegacia com a familiaridade com que costumava entrar no

supermercado. A diferença é que aqui as mercadorias não ficam expostas nas

prateleiras e o preço a pagar é sempre muito alto. A enxaqueca desapareceu na

viagem de ônibus e me sinto outra pessoa.

A delegacia também parece mais calma que o normal, como se alguém tivesse

decretado uma trégua, um cessar-fogo com o mundo lá fora. A entrada, em geral

superlotada, está quase deserta. Não vejo nem a policial com o nome de flor escrito

no peito. Um rapaz jovem e sorridente ocupa seu lugar. Estou pensando que essa é a

primeira coisa positiva do dia, quando vejo alguém que nunca esperaria encontrar

por aqui: Jenna, minha mãe. Vem do corredor à direita da portaria, onde fica o

gabinete de Sarl. Está com um casaquinho preto e botas: ‚aquelas bonitas', como ela

mesma diz. Já comprou há algum tempo, mas só usa em ocasiões especiais, porque

custaram mais do que estava disposta a gastar. No dia da compra voltou para casa

cheia de remorso, mas tratei de acalmá-la dizendo que ela merecia. Era o que pensava

realmente.

Quando me vê, também fica espantada. Imagino que também esteja se

perguntando o que estou fazendo por aqui. Só espero que não se trate do

desconhecido que invadiu minha casa. Seria muito arriscado se a polícia continuasse

a investigar.

— Alma! — ela cumprimenta primeiro.

—Oi.

Um instante de silêncio se mete dissimuladamente entre nós.

— Estive com San. Na verdade, trouxe uns biscoitos. Sabe como é, para

retribuir a gentileza que teve com você, a ajuda nos seus artigos... e também no

assalto lá em casa...

Jenna fazendo biscoitinhos como aquelas mães de família de trinta anos atrás é

tão natural quanto a paz no mundo. Não me lembro de ter comido biscoitos feitos

por ela alguma vez na vida, O que está acontecendo?

Ela percebe minha surpresa, nota que estou olhando para as botas, mas, como se

eu tivesse que me habituar com essa nova Jenna, não diz mais nada.

— Que ótimo! — limito-me a comentar. — Sarl descobriu mais alguma coisa?

Sabe quem pode ter entrado lá em casa?

— Não, não encontraram impressões digitais. Ele acha que é uma provocação,

talvez uma brincadeira de mau gosto de algum colega da escola.

— Não sei o que dizer, no momento não tenho nenhum inimigo jurado.

Jenna lança um olhar interrogativo.

— Não tem que me dizer nada, mas não esconda as coisas de Sarl. Entendeu

bem?

— Claro, entendi. Biscoitos de quê? — pergunto para mudar de assunto.

— Chocolate e amêndoas. Deixei um pouco em casa, para você e seus irmãos.

— Obrigada. — Só esqueceu que não gosto de biscoitos.

— E você, o que faz aqui?

— É para minhas pesquisas. Parece que os artigos que escrevi fizeram sucesso e

me encomendaram outros.

— Fico contente, Alma, mas também espero que comece a tratar de coisas mais

alegres no futuro.

— É o que espero também - respondo com mais ênfase do que deveria.

— O que quer dizer? Tem algum problema?

— Não, não... — me apresso a dizer.

— Pode falar comigo sobre qualquer coisa, sabe disso, não?

— Obrigada, mas está tudo bem, de verdade.

Percebo a angústia subindo da boca do estômago para a garganta, como um

longo verme faminto.

— Tome cuidado. Sarl diz que essa cidade está cada dia mais perigosa. E tenho

que concordar com ele.

— Não se preocupe.

— Bem, já vou indo. Lina sai da escola daqui a pouco. Não chegue muito tarde,

por favor. — Em seguida se afasta, meio sem graça.

— Ficam bem em você.

Ela vira. Parece uma menina.

— As botas — explico. — Ficam bem em você.

Jenna sorri. A ansiedade diminui, pelo menos por enquanto.