Se durante o dia o bairro está cheio de gente que passeia pelas calçadas, de crianças
que brincam e de cães que correm, à noite ele está completamente deserto. Mas não é
como a zona onde Agatha morava, que dá arrepios quando a escuridão desce sobre as
ruas. Aqui é diferente. Enquanto caminho, tenho a impressão de que ficar em casa
não é uma necessidade para as pessoas que moram aqui, é uma escolha ditada pelo
desejo de compartilhar um belo jantar em família antes de se entregar a um sono
merecido.
A simples ideia de uma assassina que ronda protegida pelas sombras é capaz de
perturbar a paz que circula misturada com o ar.
No meu conto, uma moça batia na porta do escritor. Preciso, portanto,
encontrar um lugar seguro para vigiar a entrada. Olho ao redor rapidamente: atrás
das árvores talvez dê para ela me ver. Não há caçambas de lixo, mas descubro uma
van, bem grande e com a carroceria escura, estacionada do outro lado da rua. Ë um
esconderijo perfeito.
Vou até lá e me escondo atrás dela.
Espero e espero mais ainda. Ninguém aparece. A luz da torrezinha continua
acesa. Que horas serão?
O tempo passa e, com a cumplicidade da noite e do silêncio, entro numa
dimensão paralela à realidade, que não tem coordenadas, mas fica suspensa entre o
que é e o que poderia ser. O limite é sutil, mas existe, e é só isso que serve de base
para as minhas poucas forças e as minhas frágeis esperanças.
De repente, sinto uma rajada de vento que levanta redemoinhos de poeira e
arrasta consigo um folheto publicitário rasgado. Levo um susto, despertando do meu
estado de vigília aparente.
Nesse exato momento, eu a vejo chegar. É uma figura que caminha com passo
regular e cadenciado pela calçada do outro lado da rua. Assim que entra no feixe de
luz de um poste, eu a reconheço: os cabelos de cachos ‚deliciosamente infantis' que
lhe dão um ar de boneca de porcelana, o corpo delicado e aparentemente inofensivo.
Imediatamente, reparo na mochila que carrega nas costas. ‚Pesada', como descrevi
no conto. Estremeço só de pensar no que pode conter.
A moça continua em direção à casa sem olhar ao redor. Observando-a melhor,
parece hipnotizada. Lembro das sessões de Naomi com o dr. Mahl, do modo como se
abandonava à sua voz, como se não houvesse mais nada a seu redor. É assim que
aquela menina olha para a frente, diretamente para o seu objetivo: a porta da casa de
David.
A agitação sobe por meu corpo como um monstro dotado de vida própria e
aperta o peito sem me dar trégua. Quando devo intervir?
Como saber qual é a hora certa?
Ela chega ao portão.
Estranho, no conto ela batia diretamente na porta da casa.
De fato, a mão da moça empurra o portão com facilidade: está aberto.
Preciso fazer alguma coisa, agora!
Sem hesitar mais, saio de trás da van e corro na direção da assassina, que, de
costas, não tem como me ver.
Ajo com rapidez e decisão, como se o perigo e o medo me deixassem
inconscientemente pronta.
Nunca ataquei ninguém na minha vida. Agarro a primeira coisa ao meu
alcance: os cabelos. Aperto e puxo a cabeça violentamente para trás. Os cachos
emitem reflexos cor de âmbar sob a luz da pequena lâmpada ao lado da porta. Nem
penso na eventualidade de que tenha uma arma para usar contra mim, talvez um
punhal para enfiar na minha barriga, confio na ideia de que seus ‚instrumentos'
estão dentro da mochila. Estão mesmo: ela luta com as mãos nuas, mas é muito mais
forte do que poderia esperar.
Agarra meu pulso com uma mão e torce, enquanto a outra aperta meu pescoço.
É dois palmos mais baixa que eu, mas luta como um leão. Instintivamente, levo as
duas mãos ao pescoço e tento puxar a dela, bem menor, mas grudada na minha
garganta com firmeza. O único resultado que obtenho é arranhá-la. Ela me encara
com olhos claros, luminosos. São olhos monstruosos, que nada têm de humano.
Desvio os olhos com medo de acabar como o homem-anjo. Estamos de frente
uma para a outra e seus dedos no meu pescoço bloqueiam a respiração. Nenhuma das
duas grita. Se esperar mais, ela vai acabar me matando. Reúno todas as minhas forças
e, enquanto minhas mãos tentam diminuir a pressão na garganta, acerto um pontapé
em sua canela. Ela fica imóvel, mas tenho a impressão de que não é por causa do
pontapé, porque ela nem olha para a perna. Como se tivesse percebido 1guma coisa
que eu não notei, ela me solta, libertando meu pescoço dolorido do aperto.
Depois foge e sua mochila pesada esbarra no portão. O barulho de ferragens
acorda o vira-lata do escritor, que começa a latir feito um doido. Preciso fugir, mas é
como se toda a minha energia tivesse desaparecido junto com a assassina. Caio de
joelhos e agradeço por ainda ser capaz de respirar.
Alguns segundos depois, David abre a porta. O cão salta em cima de mim
rosnando, mas ele o detém com um seco ‚não!'.
Para minha sorte, o animal obedece, sem precisar de outras chamadas, e se deita
perto da porta, sempre em estado de alerta, com o rabo esticado e as orelhas
levantadas.
David se aproxima e me observa. Acho que não ficaria mais espantado se
encontrasse um zumbi em seu jardim. Não demora a perceber as marcas em meu
pescoço.
— O que aconteceu aqui? — Tem uma voz de menino, um tom delicado, de
alguém que se preocupa em não magoar ninguém.
Não sei o que dizer, de modo que não respondo.
— Alguém atacou você, não foi?
Concordo.
— Entre. Vou lhe dar um copo d’água para você se recuperar e depois
chamamos a polícia juntos.
A polícia? Não posso falar com a polícia.
Tenho que ir embora daqui.
Levanto com dificuldade, com o cão sempre atento aos meus movimentos.
Viro e me dirijo para o portão.
— Ei, pare aí! Aonde vai?
Não dou ouvidos e já estou na rua de novo.
— Diga pelo menos como é o seu nome, caso alguém...
Começo a correr, embora esteja exausta. Rezo para que o cachorro não me siga e
para que o escritor esqueça o meu rosto. Só Deus sabe o que aconteceria se a polícia
viesse lhe fazer perguntas e ele desse uma descrição minha, que eles poderiam
comparar com a descrição da moça que foi vista saindo da papelaria. Seria uma
catástrofe e, sem dúvida, ia me jogar atrás das grades.
Enquanto me dirijo para casa, penso na luta com a assassina e concluo que tive
muita sorte. Ela não foi vencida pela minha força, mas por alguma outra coisa que a
deteve e impediu que me matasse. O alvo não era eu, pelo menos não o de hoje. Se
não fosse isso, já estaria morta.