32

Quando a campainha toca, Jenna se precipita para o interfone com a impaciência de

uma adolescente em seu primeiro encontro. Duvido que tudo isso seja para Gad, que

cada vez aparece menos nessa casa, mas a ideia de que poderia ser o tenente Sarl nem

me passa pela cabeça. Justamente nessa noite em que sinto o mundo desabar em

cima de mim, Jenna resolve convidar um tenente da polícia para jantar, um sujeito

que ia me dar prisão perpétua se ficasse sabendo da metade das coisas em que estou

envolvida.Sarl parece contentíssimo com o convite. Cumprimenta sorridente, cheira

o ar perfumado de carne assada com cogumelos, cumprimentando devidamente a

cozinheira e oferecendo uma ajuda segundo a etiqueta do bom convidado, mesmo

sabendo que já está tudo pronto.

— Oi, Alma.

— Boa noite, tenente Sarl, que surpresa! — é só o que consigo dizer, com uma

expressão de falsa cordialidade estampada na cara.

Ele analisa todos os tons da minha voz, como bom detetive que é, para

adivinhar o que penso sobre ele e sobre o fato de ter sido convidado.

Na verdade, o que pode acontecer entre ele e Jenna não é da minha conta, nem

quero que seja.

Mas não tenho energia suficiente para pensar nisso.

Depois dos cumprimentos de sempre, vou para o meu quarto para garantir que

‚as provas incriminatórias contra a minha pessoa' estejam bem escondidas onde

ninguém possa encontrá-las. Releio novamente aquele estranho bilhete. O que quer

dizer ‚Fique longe da água'? Logo eu, que jamais gostei muito da água? E

sobretudo, como é que ele me conhece? A história que Agatha me contou é absurda.

Lembro bem a manhã em que fui ao Parque Norte. Estava apavorada e, quando ouvi

aquele grito... ainda me dá arrepios, fugi correndo. Estava com uma dor de cabeça

insuportável, que não me deixava pensar. Pensar... nem mesmo no que estava

fazendo! Não, não é possível. Deve haver outra explicação. Mas, então, como esse

cara afirma que me conhece? Como sabe tanta coisa sobre mim? Será que temos

amigos em comum? É, deve ser isso. Do contrário, significa que sou uma assassina.

Lembro de Evan, no ginásio. Daquela vez, consegui parar a tempo. E se não tivesse

conseguido com Halle? E se tivesse sido eu mesma?

— Alma? Está na mesa! — A voz de Jenna me assusta, mas afasta de mim o

peso das perguntas que giram na minha cabeça como meteoros.

Estamos todos sentados ao redor da mesa. Até Evan. Se alguém nos visse

naquele momento, talvez de certa distância para não perceber as expressões

contrariadas, diria que somos ‚uma tradicional família feliz': mãe, pai e três filhos.

Não importa se Sarl é um policial que entrou na nossa vida para investigar o suicídio

do pai de Lina, que por acaso não é o meu e de Evan, que, pobrezinho, nos

abandonou sem pensar duas vezes: numa certa altura dos acontecimentos,

simplesmente desapareceu. Evan não fala porque não quer, Lina porque não pode, e,

portanto, tenho que preencher o silêncio para dar vazão às expectativas de mãe

frustrada de Jenna.

E lá vou eu, tentando sorrir e fingir que gosto de cogumelos, que aprecio tanto

quanto apreciaria um prato de cocô de rato.

A conversa em torno da mesa transcorre calma como um rio na planície,

alternando pedaços de carne com informações superficiais sobre o ano escolar, sobre a

saúde de minha amiga Naomi, sobre os compromissos de Jenna no hospital e sobre a

vida difícil de um tenente da polícia ainda solteiro.

Mas depois o assunto se volta para mim.

— E os seus artigos sobre os assassinatos, como estão? — pergunta Sarl.

Noto que Evan me lança um olhar estranho. Prendo a respiração, esperando que

não diga nada de irremediável.

— Bem, muito bem.

— Recebemos os resultados da autópsia do dono da papelaria. Mas acho que é

melhor falar disso numa outra hora — diz Sarl, olhando para Lina.

— Vou levar você para a cama — anuncia Jenna. — Está um pouco cansada

hoje, hein, meu passarinho?

Lina se despede de todo mundo com um beijo no rosto. É sempre muito

carinhosa.

Sarl recebe aquele beijinho como se fosse uma bênção e eu também. Nessa

noite, estou mesmo precisando.

Assim que Jenna e Lina se afastam, Sarl passa para os assuntos proibidos.

Quanto a Evan, olha para um ponto qualquer da toalha e não parece interessado em

ouvir nada.

— Foi visitar Agatha?

— Fui. Não está nada bem.

— Posso imaginar. O centro de detenção de menores é, para todos os efeitos,

uma prisão.

— É um lugar horrível. Duvido que ajude a regenerar as pessoa acho, aliás, que

só serve para afundá-las ainda mais em seus problemas.

Sarl concorda.

— Uma pergunta: se Agatha não fez aquilo que pensávamos, é possível que seja

solta?

— Como te disse, vão ter que apurar suas responsabilidades na história.

— Ah...

— Vejo que está preocupada. Tem alguma coisa que queira me contar?

— É que Agatha não está mesmo nada bem, tenente. Emagreceu muito, está

pálida. Além do mais, me disse que está sendo drogada.— informo.

— Drogada? Tem certeza? Seria muito grave.

— Estão lhe dando calmantes muito fortes.

— Talvez por causa de algum comportamento violento...

— Deu chutes e socos... no ar. Não fez mal a ninguém. Temo que possa

acontecer alguma coisa muito ruim lá dentro, que possa se apagar completamente.

— Não sabia que era tão ligada a ela.

— É minha amiga e não gosto de vê-la desse jeito. Se pudesse fazer alguma

coisa por ela, para ajudá-la a sair de lá...

— Acho que vai ser difícil no momento, mas prometo que vou verificar mais a

fundo e não vou permitir que aconteça nada com ela.

Agradeço. Pelo menos por enquanto, basta. Mas voltarei ao assunto, esperando

que, enquanto isso, Agatha tenha bom comportamento.

Agora o tenente está tentando estabelecer um diálogo com Evan, mas logo

percebe que seria mais fácil convencer um mosquito a se alimentar de suco de maçã.

Sobretudo porque resolveu começar pelo assunto que meu irmão mais detesta: a

escola.

— Em que ano está, Evan?

— Tenho 14 anos. Por que não descobre? É um detetive, não? — responde ele,

sarcástico.

A quantidade de palavras já me deixa espantada.

Sarl cai na risada e Evan fica sem graça. Um a zero para o tenente.

— Eu também era assim, na sua idade. Queria que me deixassem em paz. E se

tivesse que responder a perguntas chatas de um policial curioso e ainda por cima

convidado da minha mãe, com certeza ia ficar uma fera.

Evan faz uma careta, mas não responde.

— Aposto que ouve punk-rock.

Um brilho de interesse atravessa os olhos escuros de Evan.

— Que intuição!

— Bem, está todo de preto, gosta de metal e de alfinetes enfiados na bochecha.

Eu também fazia tudo isso.

Olho para ele espantada. Sarl com um alfinete de fralda enfiado no rosto?

Ficaria menos surpresa se tivesse me dito que toca sinetas tibetanas.

— É mesmo? — Olha divertido para o tenente. — Não consigo imaginá-lo

com um moicano verde na cabeça.

— Nada de moicano, mas quando tocava com minha banda me vestia de couro

dos pés à cabeça.

— E tocava o quê?

— Guitarra.

— Eu também — responde ele com pouco entusiasmo.

— Claro que meus pais não ficaram nada satisfeitos, e imagino que seja a

mesma coisa com sua mãe.

— Não estou nem aí.

— Mas não vai ser assim para sempre. Um dia, vai se importar com a opinião

dela.

Evan dá de ombros, que é o seu jeito habitual de responder sem fazer esforço.

Naquele momento, Jenna retorna.

— Estão falando de mim?

— Parece que seu filho e eu temos um interesse comum.

Ela também não acredita.

— E qual seria?

— A música. Eu também tocava numa banda.

— Olhe só... não tinha a menor ideia.

— Faz muito tempo que não toco. Talvez um dia recomece, quem sabe?

— Quem sabe com Evan. — Olha para o meu irmão. — O que me diz?

Evan dá de ombros novamente.

— Seria ótimo — se anima Jenna. — Tocar com Evan e ajudar Alma em seus

artigos sobre os assassinatos.

De repente, meu irmão levanta os olhos para mim. Queimam de ódio e desejo

de vingança.

Rezo para ele não fazer aquilo, não contar, mas não consigo detê-lo.

— Antes de ajudar, devia prendê-la.

— E por quê? — pergunta Sarl, convencido de que se trata de mais uma piada.

— Tentou me matar.

O mundo inteiro se cala e parece que a única coisa que dá para ouvir é o som do

meu coração batendo enlouquecido contra as paredes do peito.

Ninguém sabe o que dizer, nem como reagir àquela afirmação.

Cabe a Sarl desfazer a tensão, cortando secamente como se fosse um elástico

esticado.

— E qual a irmã que não faria isso? — Em seguida, cai na gargalhada e Jenna

fica felicíssima de poder imitá-lo, mas sem deixar de perfurar Evan com os olhos.

Ele levanta e vai embora. As tentativas de Jenna de detê-lo são inúteis.

— Desculpe — diz ela a Sarl. — Desde que o pai foi embora tudo com ele é

muito difícil.

Talvez esteja esquecendo que o pai que foi embora era meu também, o que não

quer dizer que ande por aí com alfinetes enfiados na cara.

— Não se preocupe. Os jovens são assim mesmo. Não é, Alma? — Sarl olha

para mim com uma expressão séria, quase preocupada.

Não queria que a piadinha cretina do meu irmão botasse ideias estranhas na

cabeça do tenente, pequenas larvas que em breve poderiam se transformar em

grandes mariposas peludas, aquelas que servem de alimento para os grandes répteis

que se arrastam pelos subterrâneos escuros do nosso inconsciente.

— Desculpem, mas preciso ir para o meu quarto. Tenho que acabar os deveres

para amanhã.

— Boa noite.

— Boa noite.

Jenna nem tenta me beijar. Limita-se a acariciar meus movimentos com os

olhos.

No corredor, caminhando para o meu quarto, vejo a maleta de Sarl encostada na

mesinha do telefone.

O que devo fazer? A tentação de dar uma olhada é muito forte, forte demais

para que consiga resistir. Olho para trás. Jenna e Sarl não estão mais na mesa. Dou

alguns passos atrás e vejo que estão conversando animadamente no sofá. Jenna emite

risadinhas divertidas, e ele fala e se exibe como um pavão no cio. Sacudo a cabeça e

vou até a maleta.

Não posso fazer barulho.

Abro devagar.

Enfio a mão lá dentro e pego um bolo de pastas. Folheio. Cada uma tem uma

etiqueta com o nome do caso a que se refere. Nenhuma parece interessante, até a

última: ‚Homicídios suspensos 1.' Suspensos? Deve ser por causa dos corpos. Abro

para dar uma olhada, mas fecho rapidamente assim que vejo as fotos dos corpos.

Horrível crueldade. Faço um esforço, sei que tenho pouco tempo e uma ótima

ocasião para descobrir alguma coisa.

Enquanto isso, continuo a ouvir as vozes de Jenna e Sarl, bem próximas, que me

recordam como bastaria pouco para me pegarem com a boca na botija. E então as

dúvidas de Sarl ficariam bem mais consistentes.

Pulo as fotos em bloco. Pego uma folha de papel: a autópsia da primeira vítima,

o publicitário. Termos médicos incompreensíveis, nenhuma informação útil.

Homicídio parque de diversões: foto do cadáver. Passo. Outra foto: morro. É uma

caneta de aço idêntica à minha! Sobre a imagem, um código: B2. Olho a folha anexa,

B2: arma do suicídio do único suspeito.

E por um momento penso que o suicídio também seria a única solução para

mim.