Minha cabeça parece que vai explodir. De novo. Nunca pensei que pudesse me sentir
ainda pior, mais confusa do que estava antes. Não sei mais o que fazer: até ficar
parada me dá angústia. A imobilidade é igual à morte.
Em casa, deitada na cama sob os lençóis, os olhos pregados no teto, tento
reconstruir os acontecimentos, procurando algo de positivo que, na verdade,
encontro. Não descobri nada sobre os homicídios, sobre o que está acontecendo
comigo, sobre o desconhecido que está me perseguindo, sobre o desaparecimento de
Morgan, sobre a minha gêmea na fotografia de Markos. Mas tenho a certeza de que
ainda estou viva e em condições de reagir. E sei que, a partir de agora, só posso
contar comigo mesma.
As horas passam e continuo acordada olhando as luzes que se movem no teto do
quarto.
Depois de um bom tempo, não sei dizer quanto, ouço barulhos. Acendo a luz e
olho a hora: sete da manhã. Deve ser Jenna. Levanto e o frio do quarto me faz
estremecer. Pego um moletom e enfio correndo. Vou até a porta. A maçaneta
também está gelada. Não encontro calor em lugar nenhum.
Saio para o corredor, ainda silencioso e mergulhado na sombra.
No fundo, bem na minha frente, vejo uma luz vinda do quarto de Jenna. Vou
até lá, os olhos fixos na luz, como se fosse um guia.
— Oi — digo, parada na porta.
Jenna está sentada na cama, ainda com o uniforme branco do hospital. Está
massageando os pés e os tornozelos. Quando ouve minha voz, levanta a cabeça de
cabelos castanhos, presos num rabo de cavalo meio caído, que parece pedir para ser
desfeito. Mesmo assim, apesar do cansaço, seus olhos são alegres e vivos.
— Oi, querida, já levantou?
— Não consegui dormir direito, na verdade.
Jenna larga os tornozelos e, com um gesto da mão, me convida para sentar a seu
lado.
Assim que sento, percebo que alguma coisa está diferente. Talvez seja um
perfume novo ou simplesmente o fato de não sentir nenhum sinal do cheiro de
fritura.
Ela me examina com um olhar envolvente.
— O que houve com você?
Talvez nunca na vida eu tenha sentido uma vontade tão grande de me livrar do
peso dos meus segredos, mas primeiro preciso saber a verdade.
— Tem alguma coisa que não me contou... sobre mim?
— Do que está falando?
— Sou sua filha.., natural?
Jenna olha para mim espantada.
— Claro! Que ideia é essa?
Hesito um segundo. Não sei se conto a história da tal Larissa, mas resolvo em
seguida que é mais prudente ficar calada.
— Jura?
— Alma! Pode me dizer o que tem na cabeça?
— Discutimos sobre adoção na escola e eu...
— E você pensou que eu e seu pai adotamos você? — pergunta Jenna, rindo.
— Não estou vendo nada de engraçado! — reajo contrariada.
— Não fique chateada. Tem que admitir que assim, a seco, é uma pergunta
bem estranha, não?
— É só uma pergunta, Jenna, nada mais. Se você garante que sou sua filha, eu
acredito.
— Pois eu garanto e, por favor, vamos deixar de fantasias desse tipo!
— Preciso me arrumar, senão vou chegar tarde na escola — corto, antes que ela
comece um interrogatório.
♦♦♦
À tarde, vou ao tribunal com Naomi. É um edificio grande e cheio de gente
correndo para cima e para baixo, cada um em seu próprio trilho. As vozes ecoam
contra as paredes branco-leite, misturam-se umas às outras e se espalham num rumor
uniforme que ocupa todo o espaço disponível.
A meu lado, Naomi está tão tensa que sua boca virou uma tranca
hermeticamente fechada. Portanto, quem tem que ir ao balcão de informações para
perguntar qual é a sala da nossa audiência sou eu.
Do outro lado do vidro vejo um homem com uma densa cabeleira negra e
ondulada. Sua cara de tédio que não muda nem quando ergue os olhos para me
encarar e tira a caneta da revista de palavras cruzadas. Peço a informação de que
preciso e ele responde como se eu tivesse colocado uma ficha em sua língua:
— Sala trinta e três, primeiro andar, à esquerda.
É para lá que vamos. A escada é bonita, de pedra branca, larga como uma
autoestrada. Na subida, esbarro sem querer na mão de Naomi: está mais gelada do
que a minha. Olho para ela, que nem percebe. Na realidade, parece que não está
vendo nada do que acontece a seu redor.
É estranho como participar dos problemas dos outros sempre ajuda a relativizar
os nossos. Naquele momento, sou simplesmente Alma, a amiga de Naomi.
As paredes do primeiro andar são verde-claras, lembram um pouco as de um
hospital. O resto é exatamente tudo o que se espera de um tribunal. Superlotado e
barulhento. Portas que abrem e fecham, telefones que tocam. Um cartaz à nossa
frente indica que devemos virar à esquerda para chegar às salas de 30 a 40.
Sigo andando, mas vejo que Naomi ficou para trás.
— Estamos quase chegando.
Eu sei.
— Vai conseguir?
Ela faz que sim.
Quando chegamos na sala, duas surpresas esperam por nós, ambas
desagradáveis.
A primeira é um barulhento grupo de jornalistas, munidos de gravadores,
microfones e máquinas fotográficas. Assim que descobrem Naomi, partem para o
ataque e correm para cima de nós, como se fôssemos duas celebridades.
Roth não está entre eles.
— O que vamos fazer? — pergunta ela assustada, agarrando meu braço.
— Vamos ignorá-los. Levante a cabeça e não diga nada.
Ela olha para mim, como se buscasse forças. Se soubesse como estou carente de
forças nesse momento...
Enquanto os flashes ofuscam nossas retinas e os microfones nos rodeiam como
gigantescos insetos negros, a segunda surpresa nos espera na porta da sala. Usa o
uniforme da polícia e uma pasta azul. E barra nosso caminho, perguntando quem
somos. Naomi não responde, de modo que falo por ela.
— Ela é... a parte lesada do processo. Espero não ter errado as palavras.
Pode me dizer o nome, por favor?
— Naomi — murmura ela.
O homem, grande e largo como um armário e totalmente inexpressivo, confere
numa folha que tira da pasta e abaixa o braço, deixando Naomi entrar. Tento segui-
la, mas ele me barra.
— E a senhorita?
— Sou Alma, uma amiga.
Nesse meio-tempo, tento passar os olhos pela sala. Vejo um monte de homens
de costas, mas não tenho tempo de ver se Sarl está entre eles.
O policial levanta os olhos da pasta e sentencia:
— Não pode entrar.
— Espere aqui, vou falar com o advogado — diz Naomi, antes de desaparecer lá
dentro.
Fico do lado de fora, em silêncio.
Naomi volta em poucos minutos, com ar abatido.
Infelizmente, ele não conseguiu convencer o juiz, sinto muito.
Sorrio.
— Vai conseguir se sair muito bem mesmo sem mim. Estarei esperando aqui,
fique tranquila.
— Promete?
— Prometo.
Vejo Naomi entrar na sala como numa selva escura, lentamente, com um jeito
desconfiado.
Quando a porta se fecha, procuro um lugar para sentar e esperar. Descubro um
banco de madeira não muito distante, encostado na parede do corredor.
O oficial se despede com um olhar vagamente solidário. Talvez também tenha
uma filha e talvez esteja agradecendo ao céu que não seja como Naomi e eu.
Mal tenho tempo de sentar quando a manada de jornalistas volta a partir em
disparada. Quem estará chegando? Não preciso esperar muito para saber: é Tito,
acompanhado por dois policiais. Outros três rapazes estão com ele. Não me lembro
de tê-los visto, acho que devem fazer parte da seita. Observo seus rostos. O de Tito
está mais tenso que da última vez. Não acredito que seja uma pessoa capaz de sentir
remorso, mas talvez tenha finalmente compreendido a terrível situação em que se
meteu. Os outros três, ao contrário, estão pálidos, seus olhos vazios parecem poças
negras. Seguiram o exemplo de um criminoso e se transformaram em criminosos
também. Vai se passar um bom tempo antes que sua marca desapareça. Se é que vai
desaparecer algum dia.
Quando Tito me reconhece, estou pronta para enfrentá-lo. O pequeno grupo é
cercado por uma selva de microfones, mas não perco o contato visual. Afio o olhar:
basta que me lembre o modo como encontrei Naomi na Igreja Velha naquela noite.
Ele me encara, sério. É como se agora fôssemos só nós dois. Todo o resto é um pano
de fundo sem vida. Em seguida, seus lábios se entreabrem numa careta diabólica.
Engulo o medo e não abaixo os olhos. Um pouco antes de entrar na sala, ele
pronuncia uma palavra em voz baixa, mas estou longe demais para ouvir. Leio seus
lábios e estremeço. A palavra é:
—Amém.