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Não sei quanto tempo fiquei com a foto daquela caneta suja de sangue na mão. Não

tanto que alguém pudesse me pegar, mas o bastante para que me desse conta de que

estou afundando num mar de problemas.

Pego a mochila, enfio a jaqueta e saio, sem pensar, sem me preocupar em saber

se alguém me ouviu. Só sei que, se não sair daqui o mais do possível, corro o risco de

explodir, carregada do jeito que estou de duvidas, medos e perguntas que nunca

terão respostas. A primeira de todas: porque eu e o assassino do parque de diversões,

supondo que ele fosse mesmo o assassino, temos uma caneta igual? Comprei numa

papelaria cujo dono foi morto por um Master que, no entanto, estava me seguindo.

Um Master que provavelmente é o mesmo que entrou no meu quarto em busca do

caderno roxo. Um Master que parece ter desaparecido no ar.

Lá fora, o ar da noite é frio e úmido. Cheira a coisas escondidas, esquecidas, que

ninguém mais quer ver nem o sol quer iluminar. Tem gosto de morte, maldição e

azar. O gosto do mal.

Caminho sem rumo, enquanto tento organizar as imagens na cabeça, como num

livro, uma primeiro, a outra em seguida. Só que não há legendas nem explicações.

Resolvo sentar num banco na calçada. Não tem ninguém por ali. Está escuro.

Não sair no escuro, recomendou Morgan.

Estou cada vez mais convencida de que alguma coisa horrível me aos

assassinatos que descrevo. E os indícios só fazem aumentar: o rapaz dos cigarros, a

caneta, o caderno roxo...

Minha cabeça. Sinto uma pontada, o sangue pulsa nas têmporas, como uma

chama, a pele se estica, quase como se fosse se rasgar, olhos ardem.

Alguém encosta em mim.

— Não! — E salto de pé.

Sou eu, Alma, Adam.

Olho para ele. É Adam mesmo.

— A próxima vez que fizer isso juro que mato você! — digo furiosa. E a

primeira pessoa contra quem posso desabafar e jogo toda minha raiva em cima dele.

Depois penso no que acabei de dizer e tremo diante do pensamento de que poderia

ser capaz de fazer isso.

— Desculpe, não queria assustar.

— Agora já assustou. O que está fazendo aqui?

— Poderia fazer a mesma pergunta. E muito tarde. Estou voltando da casa de

um amigo.

Cheira à mentira, mas na realidade não estou nem aí para o que o Adam faz ou

deixa de fazer.

— E você? É muito tarde para uma moça sozinha.

— Precisava de um pouco de ar. Acho que não preciso pedir autorização a

ninguém para fazer isso.

Olha para mim espantado.

— Posso lhe fazer companhia até sua casa, se quiser.

— Não, não quero.

— Não se faça de difícil. Só estou pensando na sua segurança — diz ele,

tocando meus cabelos com a mão.

Trato de me afastar antes que consiga me tocar. O que deu nele?

— E por que estaria segura com você por perto? Não me faça rir.

— Qual é o seu problema comigo? Eu mudei.

Tenho que reconhecer, mas continuo a não confiar nele.

— Não entendo por que é tão gentil... O que deseja de verdade?

— Já disse: só quero ser seu amigo.

— Não tenho amigos.

— Não é verdade. Seline, Naomi e Agatha são suas amigas.

— Está bem: não tenho amigos homens. Fica melhor assim?

— E Morgan?

— Morgan? Nunca mais o vi. Não sei se percebeu, mas tem um tempão que ele

não aparece na escola.

— Claro que percebi. Mas não é que fôssemos grandes amigos. Já lhe disse tudo

o que sabia sobre ele, ou seja, seu endereço. Quanto ao resto, não faço a menor ideia

de que fim teve.

Espero que fim nenhum.

— Já vou — digo com uma voz imperceptivelmente trêmula.

— Tem mesmo certeza de que não quer que vá com você?

—Tenho.

— Então, tchau. Boa noite.

— Tchau.

Quando viro as costas, a sensação de que Adam não estava ali por acaso é quase

uma certeza. Não seria a primeira vez que me segue. O que pode querer comigo? Por

que toda vez que olho ao redor tenho que dar de cara com ele?

De repente, me sinto sozinha e indefesa. Tenho 17 anos, só 17! Estão me

ouvindo, vocês que me arrastaram para esse desastre? Não aguento mais me sentir

encurralada num beco sem saída.

Socorro, alguém me ajude!

Caminho mais um pouco até decidir que é hora de voltar para casa. Espero que

Sarl já tenha ido embora. Com a sua habilidade para farejar encrenca, ia ler na minha

cara como se fosse um mapa e tenho certeza de que acabaria chegando direitinho à

minha casa de horrores pessoal.

De repente, ouço um rumor de passos atrás de mim, e uma rajada de vento me

envolve em suas garras. Viro, quase esperando que ver Adam. Mas não é. Tem

alguém, mas é maior, mais ameaçador.

E usa um chapéu.

Começo a correr, com a respiração parecendo um gás tóxico na minha garganta.

Não posso acreditar. O maldito Master ainda está nos meus calcanhares. Reapareceu!

O simples pensamento de acabar como homem-anjo me dá asas.

Olhos transparentes.

Terror.

Por sorte, não falta muito, mas o Master corre rápido, mais rápido do que eu.

Faço um último esforço e rezo para que a porta de entrada esteja aberta. Mas não

está, noto antes mesmo de chegar lá.

E agora, o que faço? Não vai dar tempo de tirar as chaves. Quase posso vê-lo

pulando em cima de mim, sua enorme mão enluvada apertando minha garganta mais

e mais, até espremer a última gota de vida.

Naquele exato momento vejo alguém saindo do edifício. Reconheço a jaqueta

de couro: é Sarl.

Graças a Deus.

Não paro e caio em cima dele, entre seus braços. Ele me pega quando já estou,

quase caindo.

— Tenente, me ajude, por favor! — imploro sem fôlego.

— O que houve? — pergunta ele, alarmado.

— Aquele homem... está me seguindo, me ajude!

— Que homem?

Eu me viro e fico paralisada: não tem ninguém.

— Tinha um homem. Estava me seguindo, corria muito rápido.

— Não estou vendo ninguém, Alma. Pode fazer uma descrição?

— Estava escuro, não dava para ver bem. Mas usava chapéu, tenho certeza disso.

— Chapéu? Não é um grande indício. Espere aqui, vou verificar.

Sarl extrai a pistola do coldre pendurado no cinto e se afasta uns 20 metros. Faz

um giro de inspeção e retorna sacudindo a cabeça.

— Parece tudo tranquilo. Tem certeza de que o tal homem estava mesmo

seguindo você?

— Tenho. Ia me pegar se não fosse você.

— Talvez só quisesse roubar. De todo modo, agora está bem, não? À parte o

susto, claro.

Concordo, e começo a respirar com mais regularidade.

De repente, Sarl estranha alguma coisa. Parece concentrado. Estou cansada

demais para me preocupar.

— Disse que o sujeito usava um chapéu... — murmura. — O que um homem

de chapéu me faz lembrar? Claro! Um homem de chapéu foi visto saindo da

papelaria onde aquele pobre infeliz foi morto.

Sinto o chão se abrir sob meus pés. Talvez fosse melhor ter sido pega pelo

Master.

— E alguém disse que viu também uma moça de jaqueta escura. — afirma

examinando a minha, verde. Ainda bem que não uso a escura há alguns dias.

Um suor gelado escorre pela minha espinha como nitrogênio líquido…

— Estranha coincidência — comenta ele.

Tenho a impressão de que começa a alimentar algumas suspeitas, embora nem

ele saiba onde colocá-las em seu tabuleiro cheio de peças que não têm nenhuma

ligação entre si.

— Agora vá dormir. Sua mãe deve estar preocupada. Sei que não é minha filha,

por isso não é uma ordem, mas se eu fosse você não sairia sozinha a essa hora. A

cidade é muito perigosa e ninguém sabe se teria tanta sorte de próxima vez.

— Vou seguir o seu conselho. Obrigada pela ajuda.

Dá um tapinha afetuoso no meu ombro e espera que eu entre no elevador antes

de se afastar. Quando entro em casa, ouço o portão bater lá embaixo.

Estou salva.