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Quando chego ao conjunto de arranha-céus, olho para eles de baixo e não consigo

evitar me sentir minúscula e insignificante. Leio os números das placas de cada um,

mas só no último encontro o que procuro: o nove.

Aproveito a saída de um senhor distinto de casacão e chapéu para me enfiar pelo

portão e a ausência do porteiro para atravessar o hall sem ser perturbada. As portas

dos elevadores são bocas metálicas escancaradas, mas não tenho escolha, o andar é

alto demais para subir de escada. Além do mais, não tenho a menor ideia de onde

ficam as escadas. Nesses edifícios de luxo, elas ficam escondidas como cofres de

banco.

Entro sem pensar muito, levando comigo o cheiro de flores tropicais que flutua

na portaria, linda e cara.

No bilhete de Adam estava escrito ‚34/F'.

O elevador começa a subir rapidíssimo, com um assovio. Em poucos segundos,

chega a seu destino e para com extrema delicadeza. As portas se abrem e me vejo na

penumbra do 34º andar, vazio e silencioso, O ar aqui também cheira a flores e o chão

exibe um carpete cinza-pérola, tão limpo que parece que ninguém nunca andou em

cima dele. Estou num longo corredor que só tem portas fechadas. São todas iguais,

de madeira branca e lisa, com maçaneta redonda de aço acetinado. Ao lado de cada

uma, uma campainha e, mais acima, uma plaquinha com alguma coisa escrita: o

número do apartamento.

Vou pela esquerda, seguindo o instinto. Estou errada, porque a ultima letra no

final do corredor é a E. Retorno e pego o corredor do lado oposto. Nem preciso dizer:

a F é a primeira porta que aparece.

Encosto a orelha na madeira branca e fico ouvindo. Nenhum barulho chega do

interior, mas isso não quer dizer que não tem ninguém em casa. Estou muito tensa,

os braços e as pernas duros como pedras, o coração pulando no peito como uma

bolinha enlouquecida. Olho para o botão da campainha e aproximo o dedo,

tremendo muito. Preciso apertar e pronto. Não tenho escolha.

Aperto o botão e prendo a respiração. O som, um pouco atenuado pela porta

fechada, é um dim-dom clássico e tranquilizante, daqueles que fazem pensar numa

família serena, talvez num belo cão abanando o rabo quando você chega e num prato

fumegante de carne assada com purê de batatas sobre a mesa.

Mas parece que nenhum membro desse lindo quadro familiar está em casa hoje

para abrir a porta. Toco de novo, só para ter certeza. Nada a fazer. Os donos da casa

não estão.

Tenho duas alternativas: ir embora, fingindo que nunca vi aquele endereço e

evitando problemas futuros, ou tentar entrar e descobrir os segredos de Morgan,

desrespeitando a lei. Nesta altura dos acontecimentos, penso comigo, o que tenho a

perder? Há muito tempo, vi um filme em que um sujeito penetrava num

apartamento passando um cartão de crédito entre a moldura e a porta, próximo da

fechadura. Sempre me perguntei se isso funcionava mesmo. Tiro a carteira da

mochila e avalio minhas possibilidades: além de alguns cartões de supermercado

dados por Jenna para as raras ocasiões em que faço as compras, tenho o cartão da

biblioteca, do cinema, do ônibus e da videolocadora.

Qualquer um deles dá no mesmo. Escolho o do cinema, que me parece mais

apropriado.

Por favor, faça com que funcione, peço a não sei quem.

Tento deslizar o cartão como vi o cara fazer no filme, mas não consigo. Tudo

parece muito fácil na tela. Tento de novo, com mais decisão. A película que reveste o

cartão se rompe e descasca como pele morta. Mas a fechadura continua bem fechada.

Não posso perder a esperança, repito. Tento de novo pela terceira vez, decidindo

que será a ultima. Giro o cartão de modo que a extremidade afunde como uma

lâmina na fenda entre a porta e a moldura. E para minha grande surpresa, algo

acontece. A ponta do cartão abre uma brecha. Com um movimento rápido deslizo

para baixo e ouço um clique. Giro a maçaneta e estou dentro. Quase não posso

acreditar. Consegui! Antes que alguém possa me ver, fecho a porta sem fazer

barulho. Em seguida, olho ao redor.

Estou dentro da casa de Morgan.

Só então me dou conta do que fiz, e uma espécie de medo respeitoso me paralisa

na entrada do apartamento.

Diante de mim se abre um corredor com uma fina estante de livros de um lado

e quadros abstratos do outro. O espaço é íntimo e discreto, invadido por um perfume

de especiarias orientais que parece sair dos próprios objetos. Numa mesinha, vejo

uma minúscula garrafa com algumas varetas de madeira mergulhadas num líquido

cor de âmbar. Ao lado, três lápis dentro de um porta-canetas de prata lavrada com a

imagem de dois peixes. Um quarto lápis está apoiado em cima de um bloco de

recados de folhas coloridas.

O corredor acaba num amplo salão, cujo fundo é uma janela envidraçada que vai

de lado a lado e dá para a cidade, com suas avenidas cheias de tráfego. Chego mais

perto. Aqui de cima é como ver um filme mudo, em que tudo se move no mais

absoluto silêncio, o que dá a impressão de que nada daquilo é real. E talvez não seja

mesmo.

Contorno os sofás brancos, enormes e cheios de almofadas, para dar uma olhada

na cozinha, separada do salão por uma parede que não vai até o teto. Numa outra

mesinha, colocada ao lado da entrada da cozinha, há um telefone com a luz vermelha

da secretária piscando como um sinal de emergência. Fico tentada a ouvir as

mensagens, pode ter alguma coisa interessante. Mas não quero deixar impressões

digitais por todo lado ou tirar alguma coisa do lugar sem querer. Perto do telefone,

uma fotografia numa moldura transparente retrata um homem e uma mulher diante

do mar. Ela tem os mesmos olhos de Morgan, embora os cabelos sejam mais escuros.

Ele, ao contrário, é moreno com alguns fios brancos espalhados na cabeleira densa,

olhos negros e profundos e fascinantes bigodes curtos e bem aparados. Os dois

sorriem. Parecem felizes. Nenhuma imagem de Morgan. Sigo adiante. A cozinha é

duas vezes maior que a nossa, mas está vazia como a da casa de Agatha. Dá a

impressão de que ninguém a utiliza há muito tempo.

Começo a considerar uma nova hipótese: Morgan pode ter simplesmente se

mudado com a família.

Volto para a sala e vou para a área dos quartos. Paro diante de uma porta

fechada. Pego a ponta da jaqueta e uso como uma luva. A porta abre com um leve

rangido que me dá arrepios. Mas não há nada de assustador, não é como a casa de

Agatha, mas aquele vazio de calor e de coisas vividas me dá a impressão de que estou

visitando o showroom de uma loja de decoração.

Do outro lado, um novo corredor mais estreito e escuro que o primeiro leva,

acho eu, para os quartos. Abro a primeira porta, à direita, ainda usando a jaqueta

como luva, e descubro um banheiro enorme, do tamanho do meu quarto, com

banheira de hidromassagem num canto, um chuveiro gigantesco e pia dupla. É

totalmente revestido de pedra clara levemente rosada e perfumado de baunilha. Ao

lado das pias, cuidadosamente dobradas sobre um suporte de aço preso na parede,

duas toalhas bordadas.

Fecho a porta do banheiro e abro a próxima. Na minha frente, surge o que

imagino ser o quarto dos pais, com uma grande cama de casal, duas poltronas

brancas e uma cômoda antiga que parece ser a primeira a se perguntar o que está

fazendo no meio daquela decoração. Uma das mesinhas de cabeceira exibe duas fotos,

mas Morgan não está em nenhuma delas.

A coisa me parece cada vez mais esquisita.

Continuo a minha inspeção, com os ouvidos atentos a eventuais barulhos vindos

da entrada. Por trás da última porta, descubro um escritório, com duas escrivaninhas

de vidro, uma em frente da outra, nas quais reinam dois monitores ultrafinos com os

respectivos teclados. Numa delas, uma pilha de pastas cinzentas; na outra, uma caixa

verde-escura. As paredes estão completamente cobertas por livros e DVDs, do chão

ao teto. Nas pastas encontro uma folha enorme com o desenho do projeto de alguma

coisa que parece um parque, indicando até os nomes das plantas e das árvores. Anexa,

uma espécie de ficha com todas as características de cada planta, proveniência,

instruções para plantio, cuidados e exposição. O conteúdo da segunda pasta é bem

parecido. Qual será o trabalho da mãe, me pergunto, deduzindo que aquela

escrivaninha é dela por causa dos adesivos cor-de-rosa pregados na tela, nos quais

leio, numa letra bem desenhada: ‚Maran, sete, bar do museu' ou ‚Comprar

Schlumbergera para mamãe!' e assim por diante.

Certa de que não vou descobrir o que venha a ser uma ‚Schlumbergera', trato

de revistar a outra escrivaninha. Ouço o tique-taque de um relógio vindo não sei de

onde. É um pequeno despertador preto colocado ao lado do computador. É como se

minha proximidade tivesse despertado o despertador. Tique-ta que, enquanto abro a

caixa verde-escura tique-taque, enquanto verifico que reúne documentos impressos

que parecem contos ou partes de um romance. Tique-taque... leio:

‚Quando ficou sabendo de sua existência, era tarde demais: os eventos tinham

seguido um caminho imprevisível. E as histórias fantásticas que gostava tanto de

contar eram agora o seu pior inimigo.'

Atrás da escrivaninha há uma pequena estante inteiramente ocupada por

troféus. Chego mais perto para ler o que está escrito na plaquetas.

Tique-taque, continua o despertador, implacável. Ele me angustia, recordando o

tempo que corre, veloz e sem dar folga. Tique-taque...

O pai de Morgan é um ex-lutador de esgrima, hoje escritor... fascinante...

Tique-taque..

‚Campeonato do mundo de esgrima, especialidade espada... Leonard...'

Seu pai deve ter sido um campeão na sua época. Talvez Morgan também lute

esgrima: de fato, pensando nos seus gestos, na elegância do porte, vejo os

movimentos de um antigo e nobre cavaleiro.

Mas ele não tem a característica primordial de um cavaleiro: a coragem.

Continuo a procurar, tique-taque que, e finalmente saio do escritório.

Só restam duas portas. A primeira está aberta e é uma lavanderia, imaculada e

organizada como o resto da casa. A última é uma espécie de quarto de guardados.

Como é possível?, me pergunto, incrédula.

É uma peça grande e luminosa, mas cheia de coisas empilhadas: malas, móveis

de vários tamanhos, caixotes, velhas raquetes de tênis, um par de esquis, dois

abajures. Entro para olhar mais de perto. Em seguida, num canto no fundo do

quarto, vejo uma coisa que me arrepia: enrolado em celofane transparente, há um

berço. Afasto um pedaço do papel para examinar e vejo que é novo, como se nunca

tivesse sido usado. Só o contato com aquele objeto já tem o poder de me aterrorizar.

Assustada, dou alguns passos e, sem querer, esbarro em alguma coisa às minhas

costas, que cai no chão.

É demais para mim.

Viro e saio correndo.

Por que não há um quarto para Morgan? E por que aquele quarto de guardados,

com aquele berço novo? Não existe o menor sinal de um filho por aqui. É como se...

Só a ideia me apavora, mas é como se ele nunca tivesse existido!

Preciso encontrar uma prova, algo que me garanta que estou na casa certa.

Aquele cretino do Adam pode ter me dado o número do apartamento errado. O

edifício pode ter dois moradores chamados Leonard. Poderia achar mil explicações, se

pelo menos pudesse acreditar numa delas, se tivesse ânimo para acreditar. Olho ao

redor com mais atenção. Mas além de velhas fotos e objetos descartados, recordações

de vida passada e concluída, não encontro nada. Nada que inclua Morgan.

Volto para o quarto dos pais. Abro uma gaveta ao acaso. Contém roupa íntima

de mulher, arrumada em perfeita ordem.

Estou perdendo tempo.

Naquele exato momento, o telefone começa a tocar no silêncio absoluto da casa.

Sinto um medo horrível de que alguém apareça para atender. Começo a ouvir passos

no corredor do lado de fora do apartamento. Será impressão minha? Um toque,

respiro, dois toques, respiro mais rápido, três toques, a respiração fica bloqueada na

garganta quando ouço aquela voz.

É a mesma secretária eletrônica, a mesma mensagem que ouvi quando liguei

para Morgan.

É realmente a casa de Morgan.