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Quando acabo de ler o conto, entro em pânico. Mais uma vez, percebo como o que

acabei de escrever é monstruoso, me dou conta das atrocidades que somos capazes de

cometer sob o comando do Leviatã. Tremo que nem vara verde, mas não quero cair,

não antes de ter feito alguma coisa para impedir que mais um assassinato seja

cometido.

Estamos no Refúgio. Todos, menos o Professor K. Não consigo pensar em nada

que não seja a pequena Elsa. Poderia ser Lina em seu lugar. Não sei o que faria se

alguma coisa acontecesse com ela. Temos nos visto muito pouco nos últimos tempos.

Quando tiver que abandonar minha vida, vou perder minha irmã também, nunca

mais verei aqueles olhos grandes e compreensivos, não terei chance de ouvi-la falar...

O grupo me ouviu com atenção, como se estivesse lendo as previsões de um profeta.

— Querem matar uma menininha! Entenderam? Não podemos deixar de jeito

nenhum — quase grito.

— Como vai conseguir deter o assassino se nem sabe quem é? Não há nenhum

detalhe útil no seu conto — observa Anel.

— Ela sabe quem é o assassino, mesmo que não tenha escrito na história — se

antecipa Morgan. Adivinhou perfeitamente em quem eu estava pensando, sem que

eu precisasse dizer nada.

— O que você quer dizer com isso? — pergunta Raul.

— Ouça, o Não Nascido que vai cometer esse assassinato me abordou alguns

dias atrás. Estávamos na estação ferroviária, ele estava fumando um cigarro e...

Resumo para eles tudo o que aconteceu naquele dia.

— Acha que esse indicio será suficiente?

— Temos outras informações, cuja procedência não tenho tempo de explicar

agora. De qualquer jeito, tenho absoluta certeza de que o assassino será ele —

responde Morgan.

— E como podemos reconhecê-lo? — insiste Raul, cético. — Alma o viu, mas

nós não.

O assassino é esse aqui — digo, estendendo a foto que Agatha me deu.

Todos parecem muito impressionados com a minha eficiência, sobretudo Anel.

Embora continue a lançar olhares cheios de desconfiança, respondo com a mais

completa indiferença. Mais cedo ou mais tarde, ficarei sabendo o que ela pensa

realmente.

— E quando esse homicídio vai acontecer? — pergunta ela, justo ela.

— Em geral, meus contos têm uma antecedência de uma noite. No início, era

de alguns dias, mas ultimamente o intervalo de tempo ficou bem menor.

— Então... se você escreveu ontem à noite, poderia ser essa noite?

— Isso mesmo, Christian.

— Não temos tempo a perder — explode Raul.

— Claro, mas como vamos fazer para descobrir de que subúrbio ou cidadezinha

estamos falando? Existem vários no norte da cidade — observa Anel.

Da última vez que o encontrei, o assassino estava na estação. Eu o segui e vi

quando entrou num trem, na plataforma 19, às dez da manhã. Poderíamos verificar a

tabela de horários e ver quais os trens que saem nessa hora para os subúrbios do norte

da cidade. Talvez tenha ido fazer um reconhecimento do local.

— Acho que não. Não agimos assim, vamos direto ao alvo. É o Leviatã quem

nos guia — retruca Anel.

Mas esse cara não é como a gente — intervém Morgan. — Entregou um bilhete

a Alma, um aviso para que ficasse longe da água; portanto, sabe quem ela é, conhece

sua natureza.

— Consciente — murmura Christian.

— Mas não rebelde — acrescenta Morgan, sombrio.

— Então acha que é um inimigo? Alguém que escolheu deliberadamente ficar

com o Leviatã?

— É possível. Na dúvida, precisamos ficar atentos. Minha intuição me diz que

é um sujeito perigoso. Vamos verificar os horários e, se necessário, teremos que nos

dividir. Casa amarela e magnólia. Preparem-se, ânimo!

Quando nos separamos, concluo que é uma boa ocasião para me aproximar de

Anel.

— Tem uma coisa que gostaria de perguntar — digo.

Ela me olha surpresa e um pouco na defensiva.

— Conhece um sujeito chamado Roth?

A pergunta atinge Anel com uma precisão cortante. Sua reação é evidente.

— Acho que não é assunto seu. Por que quer saber?

— Pura curiosidade.

— Então, também o conhece?

— Digamos que sim.

Olha para mim cheia de suspeita.

— Então digamos que eu também.

— Não quero me meter na sua vida particular, mas se vocês ficam...

Anel explode numa gargalhada, com um forte componente nervoso que me

deixa meio sem graça.

— Não seja ridícula.

— Ridícula por quê?

— Roth é meu irmão!

Como pode? Roth tem uma irmã? E é justamente Anel? O que vi naquela

tarde, fora da redação, era apenas uma conversa de família? Será que Anel sabe

alguma coisa a meu respeito?

Naquele exato instante, Morgan me convoca.

— Coragem, precisamos ir!

Ele percebe que interrompeu alguma coisa e nos observa cheio de curiosidade,

mas sem dizer nada.

— É, é melhor irmos andando. Só estamos perdendo tempo por aqui —

comenta Anel, se afastando irritada.

— Vai amolecer, você vai ver — me consola Morgan, sem que ninguém tenha

lhe pedido nada.

Observo o vaivém dos trens chegando e partindo, examino as pessoas subindo e

descendo. Imagino que todos tenham um objetivo e um destino. Se alguém um dia

resolvesse representar a complexidade das situações humanas, encontraria um grande

material aqui na estação.

Procuramos os quadros com os horários. Eu e Morgan abrimos caminho na

multidão, analisamos as chegadas e partidas e, depois de obter as informações

necessárias, fazemos nossos planos.

Temos dois trens diferentes indo para o norte da cidade, por volta desse horário.

Morgan e eu iremos no trem das 10h20, os outros no trem que parte logo em

seguida.

Anel me olha com ar de desafio. Cada grupo segue seu caminho.

Nossa despedida é só um olhar. Estamos concentrados em nossa missão e,

embora ninguém tenha coragem de admitir, sentimos medo de fracassar. No vagão,

Morgan e eu ficamos batendo papo, falando de coisas superficiais, sem importância,

como acontece quando as pessoas têm pensamentos bem mais profundos, mas

inconfessáveis. Depois de um tempo, paramos completamente de falar, entregues ao

movimento regular do trem e à paisagem que desfila fora da janela.

Descemos numa pequena estação de província, daquelas que ficam cheias

quando um trem chega e logo em seguida, quando ele parte, voltam a ficar vazias e

silenciosas.

Caminhamos lado a lado. Mais adiante, sinto sua mão pegar a minha, como se

quisesse me guiar. Aperto sua mão sem dizer nada. Apesar de tudo, meu coração está

feliz.

Do lado de fora da estação há várias bicicletas estacionadas, daquelas que se

pode alugar com uma moeda.

Pegamos duas. As bicicletas são todas iguais, vermelhas e azuis, com o quadro

de mulher, mas sem cestinha ou porta-bagagens. Quando monto no selim, lembro

imediatamente da minha: coitada, hoje em dia não passa de um amontoado de

ferrugem. Se um dia conseguir sair dessa história, vou deixar minha velha bicicleta

novinha em folha. Uma nova Alma, com uma nova bicicleta. E talvez uma nova vida

também.

Pedalamos por ruas desconhecidas e tranquilas. Alguns carros, algumas outras

bicicletas, alguns pedestres. Vejo pessoas que se cumprimentam. Como deve ser

estranho morar numa cidade onde todo mundo se conhece. Tranquilizador e ao

mesmo tempo angustiante. Em comparação com a cidadezinha onde Markos vive,

essa parece mais alegre e sorridente.

— Em que está pensando? — pergunta Morgan chegando mais perto.

— Em nada...

— Ah, é? Porque dá para ouvir o motor roncando aí dentro de sua cabeça...

— Está fazendo tanto barulho assim?

— E como!

Caímos na risada. É verdade que a tranquilidade do ambiente em que estamos

condiciona a nossa, mas é perigoso confiar nisso. Se essa calmaria sumir de repente, o

que vai ser de você?

— Estava pensando em Markos.

— Foi o que imaginei.

— Deu para ler meus pensamentos agora?

— Não, é que somos muito próximos. Não somente eu e você. Vai acabar

percebendo que pode... sentir os outros também. Estamos sempre em comunicação,

querendo ou não. Mas estava falando do fotógrafo...

— Mora numa cidadezinha parecida com essa, mas só no tamanho. Quando fui

falar com ele, vivi uma coisa parecida com o que estou vivendo agora: peguei um

trem e desci numa estação pequena, quase deserta. Só que a atmosfera de lá era

pesada, como se a cidade tivesse sido embrulhada a vácuo. Não havia ninguém na

rua, ninguém a quem pedir uma informação. Finalmente, encontrei uma loja

daquelas que vendem de tudo porque é a unica num raio de muitos quilômetros. Lá

dentro tinha uma mulher... Pensando bem, parecia uma bruxa. Perguntei onde

ficava a casa do fotógrafo, mas ela começou a me olhar de um jeito muito esquisito.

Em seguida, sem mais nem menos, teve um ataque, começou a me xingar e me

expulsou, me chamando de maldita. Fiquei apavorada. Mas não era uma reação tão

absurda: o suicídio daquelas meninas virou uma espécie de maldição para o lugar. E

envenenou a cidade para sempre. Não quero que isso aconteça aqui também.

Olhamos ao redor.

— E então, acha que esse poderia ser o bairro do conto?

Sem que me desse conta, tínhamos chegado a uma zona residencial feita de

casinhas, cada uma com seu próprio jardim, algumas com carros estacionados ao

lado: pareciam saídas de uma propaganda de margarina, daquelas em que a família

inteira toma café da manhã junto, ao redor de uma mesa cheia, com bolos, pães e

leite, e se despede com um carinho que é puro sentimentalismo.

Elas me dão enjoo.

— Vou pela direita, você pela esquerda, certo? — propõe Morgan.

— Certo.

Examino as casas em busca das paredes amarelas e da magnólia. Não sei com

certeza como é feita uma magnólia, mas isso parece um mal menor, pois não

encontro nada que corresponda ao meu conto.

Morgan também está parado do seu lado da rua e me olha desapontado.

— Talvez o lugar não seja esse — diz.

— Vamos dar outra volta, para ter certeza.

Pedalamos e pedalamos, percorrendo cada rua e cada viela, mas, nada, a casa de

paredes amarelas com uma magnólia no jardim não está aqui.

— Só podemos esperar que os outros tenham tido mais sorte que nós —

comenta Morgan, deixando a bicicleta.

Não quero nem pensar no contrário.

Voltamos à cidade e em seguida ao Refúgio com uma estranha sensação. Uma

sensação que se parece com uma esperança.