Sempre pensei que todos os quartos fossem mais ou menos iguais. Isso, antes de ver
o de Agatha.
Não sei se é porque entrei aqui feito uma ladra, no escuro, com na lanterna que
ilumina apenas o que está a meu redor ou porque o fato de conhecer Agatha e os seus
hobbies já é suficiente para influenciar meus pensamentos, mas na verdade aquilo
pode ser qualquer coisa menos um quarto. Sobretudo porque, num primeiro olhar,
não há hum sinal de uma cama.
— Ai, meu Deus! — exclamo, quando levanto o feixe de luz para o teto.
Aponto para o canto oposto ao local onde estou. E lá está a cama. São três velhos
colchões, empilhados um sobre o outro, cobertos com um lençol e uma coberta
xadrez branco e vermelho colocados numa espécie de plataforma de tábuas a uma
altura de pelo menos 3 metros do chão. Para chegar àquela coisa que parece um
túmulo primitivo, tem uma escada, daquelas usadas pelos pintores de parede. É de
ferro, devorada cá e lá pela lepra da ferrugem.
Por que dormir lá em cima? Sinto a tentação de subir para ver de perto aquele
arranjo absurdo, mas resolvo iluminar melhor o espaço que fica embaixo da cama.
Arregalo os olhos e tento focalizar melhor, mas não consigo acreditar no que vejo. É
um verdadeiro altar. Apoiada em duas pilhas de livros, uma prateleira de madeira
sustenta uma fila de velas, todas brancas e na maior parte já consumidas, e uma
tigela com uma mistura de ervas secas. Chego mais perto para sentir o cheiro e me
afasto correndo, antes de vomitar: é um cheiro horrível, matéria orgânica queimada,
que lembra uma mecha de cabelos que queimei de brincadeira um tempo atrás. Só a
ideia do que poderia conter seria capaz de fechar meu estômago para sempre.
Ilumino a parede de fundo, completamente recoberta de folhas de papel escritas à
mão. Em cada folha há uma palavra que se repete como um mantra: Ó-DIO.
É obra de uma louca, penso comigo, enquanto um arrepio tremendo me sacode
por dentro.
Ódio. Ó-dio. Lembrando que a segunda sílaba, Dio, quer dizer Deus, penso
numa oração e, ao mesmo tempo, numa maldição.
No chão, ao lado do altar, há um espécie de cofre. Vejo minha mão trêmula se
aproximar da tampa do cofre e, por um segundo, penso que não devo, que é melhor
deixá-lo onde está. Mas a curiosidade é uma droga que me faz passar por cima de
qualquer prudência. Coloco a lanterna no altar e pego o cofre. Ajoelho para
aproximá-lo do foco de luz. É de metal, com a tampa abaulada e decorada com
estranhas figuras, meio homens, meio animais. Estou pronta para abrir, o coração
quase parado de tensão, os nervos em estado de alerta, o sangue concentrado na
cabeça num turbilhão quente e vermelho, quando sinto alguma coisa tocar minha
perna. Salto como se tivesse recebido um choque, o cofre cai para trás e a tampa abre
sem que eu possa fazer nada. Uma nuvem de poeira densa e pesada como fuligem me
envolve e se enfia no meu nariz. Tento respirar, mas é como se aspirasse minúsculos
fragmentos de vidro. Meus olhos começam a queimar como se tivesse usado gasolina
em vez de colírio.
Que droga é essa? Levanto e me afasto, deixando tudo como está, inclusive a
lanterna.
Enquanto tento tirar aquela poeira de cima de mim com a manga da jaqueta, a
ideia do que poderia ser aquilo toma forma na minha mente como um tumor,
silencioso e implacável. Não, os pais de Agatha morreram num acidente aéreo, é
difícil que seus corpos tenham sido encontrados. Mas e se...
Corro para o banheiro, como se estivesse coberta por milhares de formigas
vermelhas que não consigo afastar. Agarrada à pia, abro a torneira. Um riacho fino e
lento começa a escorrer. Com as mãos em copa junto um pouco d’água e jogo no
rosto, nos cabelos, no pescoço, por todo lado onde ainda sinto um vestígio de morte.
Droga... que nojo!
Chega, para mim chega. Não quero ficar nessa casa nem mais um segundo.
Tiro a jaqueta e enfio na cabeça, como um capuz, para retornar à câmara dos
horrores. Pego a lanterna e saio, esperando que o gato me siga pelo corredor. Por
sorte, é o que ele faz. Pego o animal no colo e desço a escada o mais rápido possível.
A sensação de que a casa quer me segurar e a qualquer momento pode agarrar uma
ponta da minha jaqueta me acompanha até a porta do porão. Estico a mão para a
maçaneta, mas não alcanço. Por um segundo, o pensamento maluco de que a porta
não quer me deixar sair cruza minha mente. Esfrego os olhos irritados com a mão
livre e tento de novo. A porta abre e com ela o meu caminho para a liberdade. Lá
embaixo, levanto o gato e o empurro pela portinha. Saio atrás dele, e o contato com o
ar livre, depois daquele cheiro horrível que parece definitivamente grudado em meus
ossos, me dá a impressão de que acabei de desembarcar na Lua, sem oxigênio e sem
gravidade.
Minha cabeça roda. Gato olha para mim com impaciência.
Sentada na grama úmida como um velho pano de chão, recupero o fôlego. Às
minhas costas, a casa é um grande animal moribundo, que exala seu último suspiro
tirado diretamente das entranhas da terra.
Levanto e pego o gato no colo de novo. O jardim parece menos inquietante
agora que sei, pelo menos em parte, o que se esconde entre aquelas paredes cobertas
de conchas. Não há nenhuma pérola lá dentro, apenas desespero, o mesmo desespero
que enlouquece as pessoas e faz com que cometam crimes horrendos. Deixando
aquela casa, percebo claramente a existência de uma fronteira entre sanidade mental
e loucura, que para mim é representada pela pesada porta de entrada que a fita
amarela da polícia enfeita como uma celebração macabra.