Nunca fui de perder um dia de escola, nem mesmo uma aula, para ser sincera. Não
porque seja uma aluna-modelo ou acredite na escola como instituição. Simplesmente
porque cada aula perdida significa tempo gasto nos livros para recuperar a matéria. E
tenho cada vez menos tempo. Às vezes, me pergunto se vale mesmo a pena estar
sempre em dia com os estudos, quando não sei nem se vou continuar viva.
Arrumei a mochila: o caderno roxo, que nunca mais tirei de lá, outro caderno,
um pequeno gravador que ganhei de presente alguns aniversários atrás, um livro para
ler no caminho e um chapéu. Quando chegar lá, resolvo se devo usá-lo ou não, para
tornar minha aparência menos chocante. Isto é: se encontrar alguém para me ver.
Pode não ter ninguém em casa. Só posso torcer para não fazer 100 quilômetros à toa.
Confiro mais uma vez no mapa as indicações que Roth me deu. Muito bem, está
tudo pronto.
Passo na cozinha para pegar alguma coisa para comer. Esbarro com Evan.
—Oi.
— Oi — murmura ele, ainda meio dormindo, com uma xícara de café na mão.
Não usa mais o alfinete de segurança enfiado na bochecha, mas a pele do rosto é
toda pontilhada de pequenas casquinhas vermelhas. Que nojo!
— O que está olhando? — pergunta ele de mau jeito. Faço um esforço para não
responder e tento falar do que aconteceu no ginásio.
— Sobre aquela noite, queria explicar...
— Não estou nem aí para o que quer me dizer. Me deixe em paz! — grita e vira
as
costas.
Fui até lá para protegê-lo, Evan. Precisa acreditar em mim.
— Me proteger? Com uma barra de ferro na mão?
— É. Sonhei que alguém atacava você quando estava no ginásio ensaiando com
sua banda. Vi o agressor entrar pela porta de trás. Só queria ajudar.
— Viu alguém no ginásio? Não tinha mais ninguém além de nós dois lá
dentro!
— Não, no meu sonho, juro.
— Você está completamente maluca. Fique longe de mim ou vai se arrepender
— ameaça. Depois larga a xícara vazia na pia e vai embora sem olhar para mim.
Ouço a porta da entrada bater e com ela a possibilidade de reatar o diálogo com meu
irmão.
Acho que trocamos mais frases nessa manhã do que todas as que acumulamos
nos últimos anos. Já é alguma coisa.
Mas preciso me apressar ou perco o trem.
♦♦♦
A estação ferroviária é um prédio velho, grande e cansado, que ex- pele fumaça
branca pelo telhado e vomita rios de gente que deságua nas calçadas da cidade pelos
portões enferrujados. Quem, como eu, navega na direção oposta avança com
dificuldade, abrindo caminho na multidão para seguir adiante.
Observo as pessoas, ocupadas demais para perceberem qualquer coisa. Quase
todos levam alguma coisa: um jornal embaixo do braço, um guarda-chuva, uma
maleta, uma bolsa. No interior, o ar é mais quente e metálico, carregado de poeira
em suspensão na nuvem de vapor que flutua sob o teto. O quadro de chegadas e
partidas surge da nuvem como uma miragem no meio de um deserto. A luz fraca,
que vem das grandes janelas retangulares colocadas no alto das paredes, cobre cada
coisa com um véu meio surrealista: parece que basta chegar perto para que tudo se
desfaça no ar.
As linhas dos trilhos correm paralelas na minha frente. Alguns estão vazios,
outros hospedam um trem à espera de sua carga cotidiana de vida e mercadorias.
Dou uma olhada ao redor, em busca da bilheteria. Uma placa branca e azul avisa que
fica à direita. Ando no piso de velhas lajotas amareladas e gastas pelos milhões de
solas de sapato que já marcharam sobre elas. Confiro de novo o horário e o percurso
do trem num quadro de avisos. Cinco paradas.
A fila de gente no guichê da bilheteria dá para ver de longe. Mas descubro
algumas bilheterias automáticas ao lado. Nunca usei nenhuma, mas tudo sempre
tem a primeira vez. Chego lá e vou seguindo as instruções, fáceis como aprender
chinês por correspondência. Mas tudo bem. Escolho o destino, o dia, erro, refaço,
digito novamente o dia, a hora, me perco na seção ‚consulte o mapa blá-blá-blá', fico
irritada, repito tudo desde o início e por fim consigo. A máquina cospe o precioso
retângulo de papel, lembrando que devo passá-lo na furadora antes de embarcar.
Estou exausta e por enquanto só o que fiz foi comprar uma passagem de trem.
Mais uma vez, aquela velha sensação de estar sendo seguida, observada. Viro de
repente, mas não vejo nada de suspeito na densa selva de corpos em movimento.
Talvez esteja ficando paranoica, imaginando um Master em cada esquina. Mas essa
calma... é absurdo, acho estranho que ninguém tenha me seguido ou tentado me
matar nos últimos dias. Espero que não seja só uma trégua antes de um ataque ainda
mais violento.
Cada vez mais tensa, procuro meu trem. Plataforma 11. Onze?
Tiro a caneta de aço do bolso. O número 11 está lá, cintilante.
Coincidência, penso comigo. Talvez um pouco demais.
♦♦♦
Uma vez a bordo, procuro o meu lugar entre os muitos que ainda estão vazios:
fica na janela, perto de um velho gordo que ronca como um porco. Penso que nunca
vou conseguir me enfiar naquele buraco e avalio a possibilidade de sentar na frente
dele, ao lado de uma moça de cabelo louro, mais falso que o de uma boneca. Parece
ser uma solução aceitável. A alternativa seria um lugar vago bem mais longe, mas se
o dono chegar vou ter que voltar e vai ser complicado. A moça acaba se revelando
pior do que o gordo. Acompanha o ritmo da música insuportável que dispara nos
ouvidos com uma batucada martelante das unhas pintadas de roxo na mesinha
dobrável que está diante dela.
Abro meu livro e tento ignorar os dois. É inútil. O ronco, a música, as unhas...
acho que vou enlouquecer e mudo rapidamente de lugar, apoiada por um vizinho
que me segue com um olhar piedoso. Quatro filas de distância representam a
diferença entre inferno e paraíso. O trem parte num solavanco, desliza silencioso
sobre os trilhos e ganha velocidade. Anuncia sua passagem com apitos enérgicos,
desfilando entre casas que nem notam a nossa passagem. À medida que nos
aproximamos da periferia, os arranha-céus dão lugar a prédios mais raros e baixos.
Até alguns jardins aparecem, pelados e malcuidados. Ë um cenário desolador, que
parece que nunca vai acabar, quando, de repente, surgem os campos: um tabuleiro de
pastos e campos arados sobre os quais repousa uma ou outra casa, iluminada por raios
de sol que precisam se esforçar para atravessar a névoa da manhã.
Meu coração acelera diante de um cenário tão surpreendente. E fica difícil
entender as pessoas que, como nós, teimam em viver de misérias urbanas.
O fluxo da paisagem acompanha a sucessão dos pensamentos. São muitos,
alguns se perseguem e se ultrapassam mutuamente. Evan, o dono da papelaria,
Morgan e sua casa, os Masters, a filha do fotógrafo, Agatha, Adam e Seline. Qual é a
ligação?
A distância começam a aparecer as montanhas, pontudas e escuras, quase
ameaçadoras no horizonte.
O trem para e de novo parte, segundo sua tabela de marcha cotidiana. Pessoas
estranhas entram e saem. Olham para mim, me ignoram. Sabem que não vão me ver
nunca mais.
Uma senhora, seca como uma folha de outono, senta a meu lado inundando o ar
de um perfume adocicado e velho. Numa bolsinha, leva um cachorro branco cheio de
laços na cabeça que desponta de vez em quando pelo fecho aberto. O cão olha para
mim com seus olhinhos marrons, que parecem olhos de bicho de pelúcia, fareja o ar
que nos separa e se apoia no quadril ossudo de sua dona. Vida de cão.
A próxima parada, a quinta, é a minha.