30

Voltar a um lugar conhecido, por mais desagradável e assustador que seja, sempre dá

ao visitante uma sensação imediata de familiaridade que atenua, pelo menos em

parte, os aspectos negativos. Assim, o centro de detenção de menores não parece mais

acolhedor do que na primeira vez, mas certamente é mais acessível agora que

conheço os mecanismos. Eles estão ao meu redor, no rosto conhecido da guarda que

fica na porta, nas poltroninhas de plástico marrom, até no bigode ruivo do segundo

guarda. Às vezes, basta que alguém a reconheça para que você se sinta em casa. Mas

isso aqui nunca vai ser uma casa.

— Todos se lembram de você — observa Naomi.

— Faz pouco tempo que estive aqui - respondo, sem dizer quando foi.

Entramos. Ela não precisa de carta de apresentação, é maior de idade. Mas eu

tive que apresentar a minha, um pouco mais amassada que da primeira vez. O agente

de bigode leu, levantou os olhos para mim e me examinou por alguns segundos,

como se estivesse decidindo se meu salvo-conduto ainda era válido. Em seguida,

dobrou a carta e me devolveu. Com um gesto de cabeça deu a entender que podia

entrar. Suspiro de alívio.

Escoltadas pelo mesmo guarda impassível da outra vez, percornos o estreito

corredor até o portão. Entramos então no segundo redor e, de lá, na sala de visitas.

Naomi olha ao redor, perdida e intimidada. É um lugar que dá arrepios. Quem

chega aqui não pode evitar de se perguntar: ‚E se tivesse acontecido comigo?' Hoje

não ouço como se todos tivessem sido engolidos por esse silêncio que nos circunda

como um vapor abafado.

Guio Naomi até a sala, como um cão faria com um cego. Sentamos na mesma

mesa da outra vez. E esperamos.

Naomi fixa a porta por onde Agatha vai chegar. Respira rapidamente, mas acho

que nem percebe.

— Está agitada?

— Um pouco. É um lugar horrível, pior do que eu imaginava. Além disso, não

vejo Agatha desde antes de ela ser presa. Não sei muito bem como me comportar.

— Melhor fazer o que tiver vontade. É inútil decidir antes. Também depende

de Agatha, do humor dela.

— Então não dá para ter muita esperança. E se ela não gostar de me ver? Nem

pensei nessa possibilidade.

— Agora já está aqui. Vai ter que enfrentá-la.

Ela suspira. E naquele momento a porta se abre. Agatha, com o mesmo macacão

azul e o mesmo suéter cinza, avança como um zumbi recém-saído da sepultura.

Naomi olha para ela com os olhos cheios de compaixão, a testa franzida de

pensamentos.

Agatha senta diante de nós e nos encara. Está bem mais calma do que da outra

vez, mais apagada. Tenho a impressão de que olha através de nós, como se fôssemos

transparentes.

— Qi, Agatha — sussurra baixinho Naomi.

— Oi — responde ela com uma voz monótona.

Parece meio sonolenta.

—Tudo bem?

— O que acha?

Naomi fica um instante em silêncio para reunir novas forças. Deixo as duas

falarem enquanto observo.

— Achei você... diferente.

Nenhuma resposta.

Naomi parece desanimada.

Nessa altura dos fatos, levanto e me aproximo do guarda que, como da outra

vez, ficou na sala vigiando.

— O que houve com ela? Deram alguma coisa para ela?

— Isso não é da sua conta, mocinha — rebate ele, duro.

— É sim, e muito, porque Agatha é minha amiga.

O sujeito volta a olhar para a frente, impassível.

Tento de outro jeito. — Sou muito amiga do tenente Sarl, da Homicídios. Foi

ele que me deu a autorização para entrar aqui.

— Não entendo o que isso tem a ver com a detenta.

— Foi presa por causa de uma denúncia minha — digo a meia-voz.

— Se um dia ela sair daqui, vai ter que escolher melhor as suas amizades —

comenta ele num tom de desprezo. Depois toma outro rumo. — Tivemos que lhe

dar um sedativo. Começou a chutar o ar. Parecia enlouquecida. Agora, ao contrário,

está dócil como um bichinho.

Que merda! Olho mais uma vez para o guarda, volto para a mesa e faço sinal

para a minha amiga pedindo que saia. É inútil conversar com Agatha naquelas

condições.

Mas Naomi está com um ar visivelmente perturbado.

Coloco a mão em seu ombro.

— O que houve?

— Vou sair um pouco — limita-se a dizer, sem nem me olhar. Pede então para

que o guarda abra a porta para ela.

— Posso saber o que disse a ela? — pergunto a Agatha, sem saber se ela é capaz

de me ouvir.

Mas está ouvindo, e muito bem.

Vira para mim aqueles olhos que, como duas flechas, penetram nos meus. Será

que o efeito do tranquilizante está passando?

— A verdade.

— Que verdade?

— Que você me denunciou.

— E por que fez isso?

— Por dois motivos. O primeiro é para que ela saiba quem você é na verdade.

Um movimento de puro ódio retorce meu estômago. Minha vontade era meter a

mão na cara dela. Mais uma vez, Agatha me surpreende.

— Sei muito bem o que é viver na mentira. Fiz isso por tempo demais,

tentando encobrir uma realidade que não conseguia enfrentar. A nte se sente mal, se

sente sozinha, cada dia mais. E então quis libertar você do peso do que me fez.

— Não lhe pedi isso.

— Eu também não pedi para você me denunciar, mas você denunciou assim

mesmo.

Olho para ela. Parece mais digna, mais humana.

— E o segundo motivo? Da outra vez em que vim visitá-la, estava me dizendo

uma coisa na hora em que o guarda interrompeu.

— Pois é. Queria falar com você a sós. Dei um jeito para que Naomi nos

deixasse.

— Estamos só nos duas agora. Fale.

— Primeiro quero que me prometa que vai fazer uma coisa por mim.

— Diga um único motivo para eu fazer isso, depois do que fez, depois de dizer

a Naomi que fui eu quem a denunciou. Era uma coisa que não competia a você.

— Você nunca teria coragem. E sabe disso.

— Em qualquer caso, já usou a sua arma. Agora, pode contar a quem quiser,

não me importa mais.

— Pensa mesmo que ia fazer chantagem com uma besteira dessas? Seu tom é

muito baixo. Não quer que a ouçam. Por um segundo, parece preocupada.

— Então quer me chantagear?

— Na verdade, é uma troca. Você faz uma coisa para mim, eu faço uma para

você.

— Diga o que quer.

Espero pelo pior.

— Meu gato. Ficou sozinho naquela casa enorme. Quero que vá até lá, pegue o

bicho e cuide dele.

Arregalo os olhos de surpresa. Agatha quer que eu cuide do seu gato? Isso é

tudo? Embora a ideia de entrar naquela casa me anime tanto quanto a de passar uma

noite no cemitério, fico comovida ao ver que, mesmo trancada nesse hospício, ela

pensou no gato. É uma coisa que pressupõe a existência de um coração. E sempre

duvidei de que Agatha tivesse um.

— E então? Aceita?

— Poderia, mas ainda não sei o que vai me dar em troca.

— A sua liberdade.

Mais uma vez, suas palavras me deixam paralisada. A sensação de que ela sabe

de alguma coisa que é fundamental para mim cresce de novo como uma onda escura.

— Estou ouvindo.

— Tem uma moça presa aqui comigo. Não fala com ninguém, não confia em

ninguém. Mas de alguma maneira nós duas entramos em contato.

— Não me surpreende nem um pouco. Por que está aqui?

— Tentou matar os pais. Fez isso junto com o irmão gêmeo.

— Que familiazinha encantadora!

— Não estou num convento de freiras, Alma. Só que o irmão conseguiu fugir.

Ninguém sabe onde ele está, mas ela me disse uma coisa que você deveria saber.

— O quê?

— Disse que foi ele quem assassinou a redatora. Como ela se chamava mesmo?

A mulher que foi encontrada pendurada numa árvore do Parque Norte?

— Meu Deus! — exclamo cobrindo o rosto com as mãos. — Halle! Tem

certeza?

— Tenho, e isso não é tudo. Ela disse que o irmão não estava sozinho na manhã

em que cometeu o crime. Havia uma garota com ele, chamada Alma.

— Como é que ela sabe de tudo isso? É absurdo!

— Na verdade, são apenas lembranças que de vez em quando surgem em sua

mente. Não sabe o que significam, mas diz que, em geral, correspondem à mais pura

verdade.

— E você acha que essa Alma de quem ela fala pode ser eu? Devem existir

outras meninas com o meu nome na cidade. Eu não matei ninguém!

— Ela não disse que você participou do assassinato, mas que estava lá com ele.

Só você pode saber onde estava naquela manhã...

Sinto o chão sumir debaixo dos meus pés. Minha cabeça gira tão forte que não

consigo mais nem saber onde estou. Mas sei muito bem onde estava naquela manhã:

no Parque Norte! Fui até lá para salvar Halle, para deter o assassino. Não o ajudei.

Eu me lembraria. Mas talvez não... Já perdi a memória de tantas coisas! Tantas coisas

que faço contra minha vontade. Não, não pode ser. Isso não!

— Essa menina está inventando um monte de mentiras. E só isso.

—Pois parecia sincera. É meio estranha, mas quem não é aqui dentro? Às vezes

está lúcida e tranquila, às vezes entra numa espécie de transe. E precisa ficar em

isolamento porque se torna violenta. Já tentou se matar duas vezes.

Tentou se matar? Como o sujeito que Sarl prendeu! Fique calma. Alma, repito

comigo mesma. Você não tem nada a ver com o assassinato de Halle. E essa moça

não tem nada a ver com você. É só uma série de coincidências infelizes.

Em seguida, paro para pensar nas palavras de Agatha.

— Você disse transe?

— É, uma espécie de transe.

Como os que tenho quando escrevo os contos.

A menina falou que o irmão vai matar de novo. Aqui dentro, todo mundo acha

que é doida e ninguém dá atenção ao que diz. Mas ela não é louca.

— Mesmo que fosse verdade, o que eu poderia fazer?

— Não tenho a menor ideia. Só posso lhe dar isso — diz e rapidamente me

passa algo por baixo da mesa.

—O que é? — pergunto me preparando para olhar.

— Espere, aqui dentro não. É uma foto do irmão da tal garota.

— Do assassino? Foi ela quem lhe deu?

— Foi, conseguiu esconder dos guardas. Quando me contou a história do

assassinato e me disse o seu nome, pedi que descrevesse a tal Alma. E depois, disse

que conhecia uma Alma com as mesmas características. Então ela entregou a foto

para que entregasse a você.

— Isso é um absurdo!

— Talvez possa reconhecê-lo.

— Não tenho nada a ver com essa história, Agatha.

— Não sei em que droga de confusão você está metida, mas cuide do meu gato.

— Vou cuidar, mas... como vou entrar na sua casa? Não tenho as chaves.

— Acho que conhece o jeito de entrar muito bem, não?

Na mosca...

— Preciso ir — digo levantando.

— Conto com você, Alma.

Fico imóvel por alguns instantes, com os olhos do guarda me encarando cheios

de desconfiança.

— Como é mesmo o nome do gato?

Ela olha para mim e sorri, talvez pela primeira desde que a conheço.

— Gato.

Claro, tinha que ser.

♦♦♦

Encontro Naomi do lado de fora. Olha para mim de cara feia, mas não diz nada.

Andamos até a saída, e minha mão, enfiada no bolso, toca a superfície lisa da foto

que Agatha me entregou.

— Como pôde? — diz ela com raiva assim que saímos do centro de detenção.

— Não tinha outra escolha, Naomi. Precisava ver o corpo da tia. Ela não podia

continuar...

— Acha que estou com raiva porque você fez a denúncia?

— E não é?

— Não, era o que eu faria também. Estou chateada porque você me deixou de

fora. Somos amigas, mas você resolveu fazer tudo sozinha!

— Só porque você estava muito mal. Não podia se envolver em mais essa

história. Já estava arrasada com o Tito.

— Sei como estava, mas confiava em você. Mudou muito, Alma. Antes a gente

contava tudo uma à outra, agora...

— Se é por isso, você também não me contou tudo sobre o Tito.

— E todo mundo viu como acabou! Agatha estava falando de quê?

Devo falar dos assassinatos? É isso que ela quer, como prova de imizade. Mas só

serviria para colocá-la em perigo e, além do mais, está Endo embora em poucos

dias...

Estamos no ponto do ônibus. Em cima do quadro de horários, um relógio

digital marca cinco horas. Cinco? Ai meu Deus, Lina! Tinha que pegá-la na escola às

quatro.

— O que foi? — pergunta Naomi.

— Droga!

— Quer me dizer o que houve, por favor?

Lina! Tinha prometido a Jenna que ia buscá-la na escola. Já saiu há uma hora.

Preciso correr.

— Droga, Alma. Como pode esquecer uma coisa dessas?

Pois é, como?

Pego o primeiro táxi que encontro. Por sorte tenho algum dinheiro. Enquanto a

figura de Naomi vai ficando cada vez menor e escura no retângulo do vidro posterior

do carro, só posso rezar para que nada de ruim tenha acontecido com minha irmã.