39

Percorro mais uma vez o caminho para a casa de detenção a bordo do mesmo ônibus

e na mais fria indiferença: como a gente se habitua rápido às coisas negativas. De

acordo com o meu conto, o assassinato do escritor deveria acontecer hoje, e não sei o

que fazer a não ser perguntar a Agatha onde mora o cara da foto. Poderia procurá-lo,

conversar com ele e, quem sabe, conseguir entender alguma coisa. É, a gente

realmente adapta a tudo! E quando esse tudo vira um hábito e começa a fazer parte

de nossa vida, é porque o mal já se transformou numa banalidade diante da qual

reagimos com indiferença e o bem foi esquecido como se fosse uma coisa fora do

nosso alcance.

♦♦♦

Primeiro obstáculo: o mesmo policial de bigode ruivo informa que não poderei

me encontrar com Agatha.

— E por quê?

— Está na solitária.

— Ah, não! O que ela fez?

— Houve uma briga com uma presa e Agatha mordeu a outra moça.

— Que droga, era só o que me faltava! — reclamo.

— Sinto muito, o regulamento é muito rígido sobre certo tipo de coisas.

— E quanto tempo ela vai ficar isolada?

—Normalmente, duas semanas. Menos, se tiver bom comportamento.

— Duas semanas?

Em duas semanas posso estar morta ou trancada aqui dentro para lhe fazer

companhia, penso comigo.

— Não tem jeito de falar com ela? Talvez com uma autorização especial, sei

lá...

— Não, não tem jeito. E já fui bastante flexível com você. Sua autorização era

para um único encontro e essa já é a terceira vez que vem aqui.

Examino a carta de Sarl e descubro que ele tem razão. Suponho, portanto, que

devo me considerar uma menina de sorte. Mas, na verdade, me sinto como um

catalisador capaz de atrair todas as desgraças do planeta.

— Está certo — digo, abatida. — Acho que volto na semana que vem, então.

— Como quiser. Meu conselho é que arrume outra autorização. Essa aí já

perdeu a validade, não dá mais — diz, olhando para a minha carta amassada.

♦♦♦

Saio da casa de detenção com o humor abaixo do nível do mar. Agora só me

restam o endereço do escritor e as coisas que escrevi no caderno roxo para tentar

reconhecer a assassina e detê-la. Por que não posso ser uma simples garota de 17 anos

e passar a noite em casa diante de um filme na TV com aquele ator maravilhoso, cujo

pôster enfeita meu quarto? Talvez porque nunca tenha entendido qual é a graça de

ter a cara de um estranho me olhando na intimidade do meu quarto. E, na verdade,

continuo sem entender até hoje: já tenho um número suficiente de olhos em cima de

mim me vigiando.

Pego o primeiro ônibus que passa, não importa para onde. Só espero que as

horas que me separam da minha missão impossível passem rápido e sem dor, pelo

menos elas.

Coloco os fones e aperto o play do MP3. Deixo que ele resolva o que vou ouvir.

Não quero ter que me preocupar com isso também.

O ônibus vai para o sul, na direção do rio. Desço depois de alguns pontos. Não

tenho vontade de dividir aquele espaço tão pequeno com outras pessoas. Preciso de

ar, muito ar e todo para mim. Chego ao rio e me aproximo da margem. A cilada que

armamos contra Adam aconteceu um pouco mais acima. Parece que já se passou uma

eternidade desde aquela noite.

Fico encantada observando a superfície da água que corre sem parar. Antes da

aula do Professor K, nunca tinha pensado nela como algo digno de algum interesse.

Mas, mesmo que não queira, ela é parte de mim e do mundo em que vivo. Uma

presença misteriosa, que não sei ainda se é amiga ou inimiga. O rio hoje está

puxando para o verde-escuro, porém mais transparente que o normal graças aos

últimos dias de sol. Sento na camada de cimento que reveste as margens. Está

quente.

A música escorre dentro de meus ouvidos assim como a água no leito do rio.

Parece que estou dando adeus a essa cidade, a essa vida, o olhar carregado de

melancolia, o coração cheio de lamentos.

De repente, noto alguma coisa sendo arrastada pela corrente. Levanto num

salto. Parece um cão, pequeno, talvez um filhote. Tem o pelo marrom-claro, e às

vezes se confunde com a água, surgindo e desaparecendo entre as ondas e os reflexos

da luz do sol sobre o rio. Ele tenta desesperadamente nadar, mantendo a cabeça fora

d’água. Olho ao redor procurando angustiada algum barco onde eu possa subir para

tentar pegá-lo, mas não vejo nada. Estou pronta para mergulhar e enfrentar o rio.

Mas como? ‚Fique longe da água', martelam as palavras do tal bilhete. Mas quero

salvar o cãozinho! E o escritor!

Quando viro para verificar onde ele está agora, vejo que o animal sumiu. Espero

para ver se ressurge um pouco mais abaixo. Nada. Então me convenço de que foi

uma alucinação, que o filhote só existiu mesmo na minha fantasia. Uma ilusão da

minha mente para me obrigar a mergulhar naquelas águas geladas que querem me

prender, me puxar para baixo, tomar posse de mim, para sempre.