A risada de Agatha faz o sangue gelar em minhas veias. É um som desesperado, que
nasce das profundezas do seu coração partido; a voz de seu espírito prisioneiro num
corpo prisioneiro.
Mas ela para de repente e ergue os olhos.
— O que veio fazer aqui?
O tom é neutro, como se estivesse perguntando o que comi hoje.
— Queria saber como você estava.
Ela não responde.
— Estávamos preocupadas com você: Naomi, Seline e eu... Se quiser vê-las,
acho que gostariam de vir. Naomi está melhor, sabia, testemunhou contra Tito e ele
acabou atrás das grades...
Atrás das grades? Que droga estou dizendo! Ela não está na mesma situação?
— Quero dizer que Naomi está mais tranquila, agora... ele não vai mais lhe
fazer mal. E Seline, bem, também está se recuperando. Fez as pazes com Adam...
Nenhuma reação.
Tento contar mais alguma coisa.
— A escola continua do mesmo jeito, um tédio sem fim. A única coisa
interessante é que o diretor organizou uma visita a uma exposição de fotografias
muito legal...
Não adianta. É como se falasse com a parede atrás de Agatha. Tenho a
impressão de que ela não está ali, de que, para sobreviver naquele inferno, sua alma
voou para longe, livre, deixando o corpo por sua própria conta. Ou talvez não esteja
ouvindo porque não estou sendo verdadeira. Estou contando um monte de besteiras,
nas quais nem eu acredito. E ela está aqui, sozinha, mais sozinha do que jamais
esteve. Precisa que eu lhe mostre alguma coisa. Talvez que também errei, que não
sou melhor do que ela, que fui capaz de denunciá-la. Mas tenho medo da reação. Só
Deus sabe o que ela poderia fazer comigo se eu contasse. Mas já que vim até aqui,
tenho que falar.
— Na verdade, vim visitá-la por um motivo preciso. Queria lhe contar uma
coisa.
Noto que ela estremece. Agora está ouvindo, tenho certeza.
— Sei por que foi presa. E sei porque fui eu quem mandou você para cá, e quem
fez a denúncia fui eu. Entrei em sua casa. Não devia ter feito isso, mas você estava
tão esquisita. Precisava ver o que estava acontecendo lá dentro com meus próprios
olhos. Foi assim que enontrei sua tia. No começo, pensei que estivesse dormindo.
Seu rosto estava tão relaxado. Depois você apareceu de repente e tive que fugir. Mas
não estava satisfeita com o que já tinha descoberto, havia alguma coisa estranha
naquela casa, um cheiro forte e desagradável que não conseguia identificar. Um dia,
encontrei com uma vizinha que não via sua tia fazia muito tempo. As duas eram
amigas... Achei esquisito, tinha .ilguma coisa que não batia bem. Então entrei outra
vez pela janelinha do porão e subi até o quarto de sua tia. Toquei seu corpo: estava
gelado e duro como uma estátua de mármore. Não entendi direito o que estava
ontecendo. Estava muito pálida. Estava morta, disso eu tinha certeza. Depois, vi você
com aquela seringa, ouvi o que dizia, esperei o momento certo e fugi de novo. E
resolvi fazer a denúncia. A delegacia não ficava muito longe. Vieram pegá-la alguns
minutos depois. Sinto muito mesmo, acredite. Sei que tínhamos feito um pacto. Não
deveria ter traído mas não tive escolha. Entende? Você me entende, Agatha?
De repente, ela levanta a cabeça e me olha de cima a baixo com seus olhos
fantasmagóricos, percorridos por um relâmpago de pura maldade. Um relâmpago
que conheço muito bem: a velha Agatha estava de volta.
Rápida como um animal, ela agarra meu pulso e aperta. O guarda nem tem tem
tempo de perceber nada. Fico na dúvida se devo pedir socorro, mas finalmente
resolvo esperar. Enquanto isso, minha mão vai ficando branca.
— Estou com uma gilete na outra mão — sussurra ela. — Para o caso de não
aguentar mais esse buraco de merda ou a gente de merda que vive aqui, sabe? Seria
fácil cortar todas as veias de seu pulso. Aposto que não teria nem tempo de pedir
socorro, Alma.
Concordo, sem desviar os olhos. Ela não pode pensar nem por um segundo que
estou com medo. Apesar de tudo, ela me respeita. E tenho certeza de que quer provar
alguma coisa. Se quisesse me ferir, como ela mesma disse, meu pulso já estaria
gotejando sangue ou minha cabeça arrebentada contra a quina da mesa.
Provavelmente não, mas o que você ganharia com isso? Sei muito bem por que
não queria que sua tia morresse.
— Não se pode mudar o curso dos acontecimentos. O máximo que se consegue
é desviá-lo para um destino ainda pior. Não queria ir para o orfanato e acabei numa
prisão.
— O que fez foi errado, doentio. Mais cedo ou mais tarde as coisas viriam à
tona. A verdade sempre aparece.
— E isso vale para você também.
— O que quer dizer com isso?
— Só o que disse. Todo mundo carrega um segredo, não é mesmo?
Não sei por quê, mas tenho a impressão de que suas palavras escondem muito
mais do que ela disse. De todo jeito, resolvo não insistir.
Conheço Agatha: não vai dizer mais nada.
— Vim lhe pedir desculpas, Agatha.
Seus dedos ainda apertam meu pulso. Será que o guarda não percebeu nada?
— Não precisa me pedir coisa alguma. Alguém tinha que me deter — diz ela,
soltando meu pulso.
Fico com uma marca na pele, como uma pulseira vermelha. Ela também tem
uma marca parecida, feita pelas algemas.
— Então não está com raiva de mim?
— As meninas sabem que foi você?
Nego, sacudindo a cabeça.
— Foi o que pensei. Nunca foi uma verdadeira líder. Fica se fazendo de durona,
mas não passa de uma covarde.
— Fiz o que tinha que fazer.
— Fez o que podia servir para acalmar sua consciência por um tempo. Quem
age na sombra acaba como eu. Quem carrega o mal dentro de si não consegue se
livrar com facilidade. Não importa o que faça, ele continua lá.
— Não carrego nenhum mal dentro de mim!
— Tem certeza?
— Por que está me dizendo isso? Fale!
— Meninas, o tempo acabou. — Quem falou foi a guarda às minhas costas, que
passa por nós e bate na outra porta. O segundo guarda abre, entra e vem pegar
Agatha.
— Não, por favor, só mais um segundo — peço.
Agatha olha para mim com um meio sorriso. Está se vingando, mas não parece
satisfeita. A vingança é assim: você planeja tudo, chega a sentir o gostinho, mas na
hora H só o que resta na boca é um sabor amargo. E então, toda a sua raiva, todo o
ódio que alimentou se vira contra você, envolve você e penetra lá por dentro, se
transformando numa pequena semente maligna pronta para germinar a qualquer
momento.
— Agatha! Responda: o que quer dizer com isso?
Mas é tarde demais. Ela levanta e sai. Volta a ficar prisioneira de seu mundo
atrás das grades, enquanto sou conduzida pelo corredor que vai me levar para a saída.
Ouço gritos a distância e eles roçam em minha pele como pequenos choques
elétricos. Quem sabe o que acontece por trás daquelas portas, do outro lado daquelas
paredes? Quanto desespero está reunido aqui dentro? Mas será mesmo tão diferente
do que existe lá fora?
Deixo o centro de detenção com os olhos e os ouvidos endurecidos por aquele
lugar. Enquanto isso, outra dávida fica escavando dentro de mim. O que Agatha sabe
a meu respeito?