12

Mais um dia inútil. Nada acontece, tudo parece estagnado num estado pré-

estabelecido insuportável. Só há uma coisa que parece se movimentar e seguir

adiante: a relação de Adam e Seline, ou melhor, de Seline com Adam. Neste exato

momento, eles estão bem na minha frente descendo a escada da escola de mãos dadas.

Estão adiantados, um lance abaixo. Ela olha para ele como se fosse um ídolo sagrado,

com brilho nos olhos e fé no coração. Ele, ao contrário, parece gostar de ver a própria

luz refletida nela, sem se esforçar muito. Vira para trás e me lança um olhar intenso,

como aquele do museu. Seus olhos castanhos perfuram a selva de alunos que

marcham para a saída e caem em cima de mim como se quisessem me transpassar.

Sustento aquele olhar, mais do que ele esperava. Por um segundo, ele sorri. Aquele

jogo o diverte. E Seline? Acho que fizemos muito bem em deixá-la fora da história

do processo. Assim do jeito que está, já tem problema suficiente para resolver na sua

vida.

Mas Naomi... queria que estivesse aqui comigo. Ficou em casa hoje para

descansar. Um merecido repouso depois da vitória de ontem.

Estou tão orgulhosa dela.

Na saída, vejo que Seline está sozinha.

Vou até lá.

—E o Adam?

— Tinha um encontro com o pai.

— Ah, bem... — respondo não muito convencida. Ainda não confio nele. —

Estão namorando? — pergunto à queima-roupa.

Ela fica vermelha.

— Não, quer dizer, não exatamente. Ele está muito chateado e arrependido pelo

que me fez e tem sido muito delicado. Mas a gente só se beijou.

— Vocês se beijaram?

Ela faz que sim.

— Cuidado, Seline. Não sabemos muita coisa sobre ele e você já viu do que é

capaz.

— São águas passadas, Alma. Não consigo guardar rancor de ninguém.

Fico perguntando como é que ela consegue ser tão ingênua depois de tudo que

aconteceu.

— É verdade, são águas passadas, mas ele ainda é o mesmo. E não é nenhum

santo. Até tocou fogo no gabinete do diretor — relembro para reforçar o que estou

dizendo. Na verdade, estou cada vez mais convencida de que a culpada é Agatha.

Seline fica em silêncio.

— Ele não é mau como parece e, de qualquer jeito, resolvi lhe dar uma chance.

— Mas tome cuidado, por favor!

De repente, uma voz nos interrompe.

— Oi, Alma!

É a voz de Roth. Viro e dou de cara com ele, sorriso brilhante, olhar malicioso.

Parece que cortou o cabelo. Está mais jovem e animado.

— Oi, que surpresa...

— Preciso ir — se despede Seline. Desde que Agatha foi presa, a escola foi

tomada de assalto pelos jornalistas, que ela evita como se fossem a peste.

— Não se esqueça do que eu disse.

Ela sorri, mais para me acalmar do que por qualquer outra coisa. E só posso

esperar que ela não se meta em outra confusão.

— Vim receber — informa Roth.

Olho para ele, espantada.

— O meu prêmio, lembra? A entrevista sobre Agatha.

Tinha esquecido completamente. E como poderia lembrar no meio de tudo o

que aconteceu nos últimos dias?

Mas não tenho como escapar e, pensando bem, uma conversa com ele poderia se

revelar bastante interessante. Poderia descobrir, por exempio, se ele conhece Markos

e talvez até conseguir seu endereço.

— Claro — respondo decidida. — Que tal um café no Zebra Bar? — É aqui

pertinho.

— Conheço. Costumava frequentar quando era mais jovem.

De fato, o bar é frequentado só por secundaristas e universitários, mas hoje Roth

bem que poderia se passar por um deles.

Vamos para lá. O trânsito é um inevitável pano de fundo. Roth fala de uma

investigação que está fazendo e que poderia me interessar para o jornalzinho da

escola. É sobre os jovens que fogem de casa.

— É o que pretendo fazer em breve!

— Está brincando!

Na verdade, não.

— Adivinhe!

— Se resolver fugir, me ligue. Quero um depoimento ao vivo. Prometo que

arranjo um ótimo espaço.

— Como pode ser tão cínico?

— Sou jornalista!

Naquele exato momento, tive uma sensação forte e precisa: estávamos sendo

seguidos. Virei bruscamente, mas só vi duas moças rindo às gargalhadas e um casal

de velhos caminhando lentamente, amparando-se um no outro.

— O que houve?

— Nada, achei que tinha visto um conhecido.

— Atrás de você? Será que tem olhos de mosca e eu nunca percebi?

Como faz para estar sempre com humor para brincadeiras?

— Queria dizer que... tudo bem, não importa.

Isso, não importa. E se fosse aquele Master? Aquele do parque e da papelaria?

Acelero o passo. Estamos quase chegando.

— Que pressa! Está mesmo louca por um café!

Não dou a menor atenção e entro no bar. Ele me segue. Sinto os seus olhos em

minhas costas. Com certeza, deve estar se perguntando que bicho me deu.

A sala está cheia. Na maioria jovens, como numa cena de cinema, com

gigantescos sanduíches de recheios transbordantes na boca e bebidas coloridas e

borbulhantes em copos altos pousados na mesa.

— Reformaram o balcão! Está muito mais bonito agora — comenta Roth.

Procuro com os olhos uma mesa livre. Vejo uma mais adiante, à direita, e corro

para ocupá-la. Roth senta diante de mim. Não gosto do jeito como me encara,

enquanto tiro a jaqueta e prefiro ficar com a echarpe enrolada no pescoço. Antes que

a gente tenha tempo para olhar o cardápio, o mesmo garçom da outra vez se

aproxima: aquele alto, moreno e bronzeado.

— Tudo bem? Em que posso servi-los? — pergunta ele com o tom alegre e

disponível que todo garçom que se preze tem que ter.

— Dois cafés Zebra — peço para Roth também.

Ele olha para mim com ar divertido. Mas estou pensando em Morgan, que tinha

feito a mesma coisa quando viemos aqui um tempo atrás. Quanto tempo? Demais.

— Gosta de pedir pelos outros?

— Às vezes. É que o café Zebra é a especialidade da casa. Não pode deixar de

experimentar.

— Já existia quando eu estava na universidade. Conheço muito bem.

Talvez tenha mudado agora. As coisas sempre podem mudar.

Roth fica em silêncio por alguns segundos, mas continua a me observar.

— Vamos começar a entrevista? — diz em seguida.

Concordo, sem muito entusiasmo.

—São só dez perguntas.

Mais longa do que o previsto.

— Está certo. Pode começar.

— Há quanto tempo Agatha frequentava a escola?

— Há alguns anos.

— Sei que seus pais morreram num acidente e que era por isso que vivia com a

tia. Foram alguma vez à sua casa?

— Não.

— Por quê?

— Ela não gostava. Contou que a tia sofria de uma doença grave que estava

destruindo os glóbulos brancos em seu sangue e que qualquer contato com pessoas

estranhas e potencialmente contaminadas poderia piorar seu estado e até causar sua

morte.

— E nunca achou isso estranho?

— Um pouco, mas Agatha era assim mesmo. Falava pouco, era muito

reservada.

Recordo o dia em que penetrei naquela casa assombrada, com o exterior coberto

de conchas. Nunca tinha visto um lugar como aquele, escuro, apavorante. Se me

concentro, ainda consigo sentir aquele cheiro, penetrante e forte.

O garçom reaparece com duas xfcaras de café. Pego a colher e recolho a primeira

linha de chocolate fundido de seu leito de chantili.

— Então nunca entrou na casa de Agatha?

— Claro que não! — Ninguém podia saber que quem fez a denúncia fui eu.

— Não se irrite. É só uma pergunta. Agatha foi denunciada por um telefonema

anônimo... talvez tenha sido alguém que a conhecia, que achou seu comportamento

estranho e resolveu verificar pessoalmente. Entendeu?

— Pode ter sido um vizinho.

— Fiz algumas perguntas a uma senhora que conhece muito bem a tia de

Agatha.

Sinto o sangue gelar nas veias. Espero com todas as minhas forças que não seja a

mesma mulher com quem falei. Ela poderia me reconhecer facilmente.

— Ela me contou que foi impedida de visitar a amiga por Agatha, que a

expulsou de uma maneira muito grosseira. Disse que era muito agressiva,

potencialmente violenta. E os fatos mostraram que tinha razão. De qualquer jeito, a

tal senhora me disse que conheceu uma amiga de Agatha, uma moça muito bonita...

Fofoqueira!

— ... que fez um monte de perguntas sobre Agatha e sua tia. Talvez tenha sido

alguma colega de vocês — conclui Roth, mas era evidente que suspeitava de mim.

— Talvez — corto secamente, o rosto imperturbável como uma máscara de

cera.

— Eo que me diz do Professor K? Dizem que ela adorava química e passava

muito tempo no laboratório da escola.

— Está querendo saber se Agatha tinha alguma coisa com ele? Já respondi isso

há tempos. Não, é impossível, O pai de Agatha era químico. E por isso que ela

conhecia bem a matéria.

— Já sabia disso.

— E o Professor K... — enquanto falo, revejo sua discussão acalorada com

Morgan e com a moça de rabo de cavalo. Tem alguma coisa estranha naquele

homem, mas com certeza Roth não é a pessoa adequada para falar das minhas

dúvidas—sempre se comportou muito bem com todo mundo.

Mais uma vez, me pego defendendo o Professor K.

— Acha que Agatha tinha um namorado?

Não penso antes de responder:

— Agatha detesta os meninos.

Roth olha para mim como se tivesse acabado de recitar uma oração ao contrário.

— Já esteve com ela depois que foi presa?

— Não. Sei apenas que está numa prisão de menores e imagino que viva cada

dia esperando que seja o último.

— Está querendo dizer que poderia tentar o suicídio?

As vezes, acho que o desespero só tem uma escapatória. Mas não acredito que

seja o caso dela, não. E essa foi a 11º pergunta.

Ele sorri, divertido.

— E agora sou eu quem quer lhe fazer uma pergunta. A respeito justamente de

suicídio. Ontem fui ver a exposição de um fotógrafo que me impressionou muito. O

nome é Markos. Conhece?

— Claro. É ótimo. Ou melhor, era. Antes da morte da filha, Larissa. Depois,

praticamente desapareceu. Sabia que ela se suicidou?

Nesse instante, começou a me encarar com um ar concentrado, como se tentasse

trazer alguma coisa à memória.

— Você é muito parecida com ela, Alma. Viu a fotografia na exposição?

Faço que sim.

— Gostaria de encontrar Markos.

— Ele vai ter um choque quando ver você. Por que quer conhecê-lo? Acha que

a semelhança entre você e a filha dele não é uma simples coincidência?

Como é intrometido esse Roth!

— Pura curiosidade. Ouvi dizer que todo mundo tem pelo menos um sósia em

algum lugar do mundo, mas encontrar a minha sósia na mesma cidade é um convite

e tanto para aprofundar a coisa. Não acha?

— Já me convenceu. Vou lhe dar o endereço, mas...

—Mas?

— Se descobrir alguma coisa interessante, quero escrever sobre o assunto.

— Parece justo — respondo, mas é bem provável que ele já saiba que não vou

lhe dizer absolutamente nada sobre o encontro.

Roth extrai uma cadernetinha preta do bolso do casaco de veludo marrom. Abre

e para mais ou menos na metade.

— Tem caneta?

Pego a mochila. Procuro com os dedos a capa lisa e perigosa do caderno roxo,

escolho outro e pego também o estojo. Ele dita o endereço.

— Onde fica isso?

— Fora da cidade. Cerca de 50 quilômetros ao norte, na direção das montanhas.

— É bem longe.

— Se quiser, posso ir com você — ele se oferece.

— Obrigada, prefiro ir sozinha. Darei um jeito.

— Não duvido nada.

— Não tem o telefone também?

— Não. Ele nunca deu o número para ninguém. Talvez nem tenha telefone. É

um sujeito bastante solitário.

Nossos cafés já acabaram e também o tempo que pensava dedicar àquele

encontro.

— Preciso ir — digo, levantando. Enfio a jaqueta e tiro a carteira. É um

pequeno envelope de tecido bordado que pertencia à minha avó.

Roth não permite que eu pague. Agradeço, talvez um pouco friamente demais.

— Eu que agradeço. Conte-me como foram as coisas com Markos... talvez num

jantar, numa noite dessas...

— Não perde uma ocasião, não é mesmo?

Roth também levanta.

— Se puder, não. Tudo de bom, Alma — cumprimenta com um beijo no rosto

que me pega de surpresa. Deixo estar; no fundo, não é tão mau assim. Mas em

seguida me afasto sem olhar para trás. Nunca olhar para trás, é o que Jenna costuma

dizer.