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A última visita a Agatha me deixou como herança uma estranha sensação, como uma

película que grudou em minha pele e não deixa que ela respire. É mais ou menos o

que sinto cada vez que me viro para olhar meu passado e comparo com o que me

espera. No fundo eu também, como Agatha, vivo dia após dia, mirando uma única

coisa diante de mim: a sobrevivência.

A decisão de voltar à redação do jornal onde Roth trabalha é imediata, assim

que deixo para trás a casa de detenção de menores. Saio de um quadro e entro em

outro, esperando que um dia eles se unam numa coisa que se pareça com uma

verdadeira vida.

A zona do Porto Velho me recebe com seu jeito tétrico e inquietante, o

abandono gritante dos vidros quebrados dos depósitos desertos, o cinza do cais que se

confunde com o cinza da água do rio, impenetrável e revolta como sempre.

Ando sem olhar para trás. A lembrança do Master que me seguiu da última vez,

da luta com Morgan e do que aconteceu em seguida são como brilhos distantes no

horizonte.

Vejo a água correr à minha esquerda e não sinto medo nem aversão. Mantenho

uma distância respeitosa e sigo adiante para a minha meta.

Quando chego perto da entrada do jornal, me escondo rapidamente atrás da

parede de tijolos daquele depósito transformado em redação. A poucos metros de

mim, semiescondidos por um tronco, vejo Roth e uma moça. Ela está de costas, mas

tem algo de familiar em seus cabelos presos num rabo de cavalo fofo e cacheado, nas

sapatilhas pretas com um laço na ponta... Claro, é Anel!

Não entendo o que pode estar fazendo com Roth. Parece uma nota desafinada e

nada tranquilizante.

Só me estico o suficiente para poder olhar. Estão conversando, um na frente do

outro. A expressão de Roth é muito concentrada, como se o assunto entre os dois

fosse importante e sério. Mas não percebo sinais de confronto ou conflito, apenas

certa familiaridade que torna a atmosfera entre eles confidencial e intima.

Resolvo ir embora, renunciando à ideia de pedir explicações de qualquer tipo.

E volto para casa.

— Onde esteve?

Morgan se aproxima pelas minhas costas, como um ladrão, me dando um susto

mortal.

— Estive na sua escola hoje, mas você não estava. Não combinamos que me

avisaria quando fosse fazer alguma coisa?

Seu tom é de censura e seu olhar é tão sério que, se eu não soubesse que só está

preocupado comigo, poderia pensar que era cruel.

— Fui visitar Agatha. Sarl veio me pegar e foi comigo até a casa de detenção.

— O tenente SarI?

— Ele mesmo. Foi jantar lá em casa ontem à noite. Falei de Agatha e ele se

ofereceu para ir comigo. Foi muito gentil. Imagine que até...

— Alma, Sarl é um policial! Será que não percebe o risco que está correndo?

— Se está se referindo ao meu caderno, ele está sempre comigo, bem guardado.

— Como bem guardado? Se acontecesse alguma coisa com você, o caderno ia

parar direto nas mãos dele! Já pensou o que seria de você? E de todos nós?

— Está exagerando.

— E você subestima a situação — afirma ele num tom que não admite resposta.

Ando atrás dele pela longa avenida atrás de casa, que leva ao estádio e que

parece uma enorme rosca vazia dominando o meio da cidade.

É Morgan quem fala primeiro.

— Fomos enviados para cá com um único objetivo: matar. Isso nos transforma

em assassinos, que os policiais como Sarl prendem e jogam na cadeia. Os caçadores

não se misturam com a caça.

— Mas não matei ninguém.., acho. E não sou um caçador! Agatha está presa

com uma menina que pode ser uma Não Nascida — explico.

— Ela e o irmão gêmeo tentaram matar os pais. A menina foi presa, mas o

irmão conseguiu fugir. E a irmã garante que ele é o assassino do Parque Norte e...

—E...?

— Que eu estava lá com ele naquela manhã.

— É verdade?

— Não... quer dizer, sim. Fui ao parque, mas depois que cheguei lá tive um

ataque de pânico e fugi.

— A menina não disse que foi você, disse apenas que estava lá, não foi?

— Bem, acho que sim. Nunca falei com ela, só com o irmão.

— Esteve com ele?

Procuro a foto dele e o bilhete escondido no maço de cigarros dentro da

mochila.

— Olhe, é ele. E me deu isso aqui na primeira vez em que nos encontramos.

Morgan para, examina a foto com atenção, e depois lê o bilhete.

— Encontrou com ele de novo?

— Ontem, perto do consultório do dr. Mahl.

— Falou com ele?

— Não, ele fugiu. Corri atrás até a estação, mas ele subiu num trem e não

consegui alcançá-lo. Sabe quem é?

— Alguém de quem deve manter distância.

Devolve a foto e o bilhete e recomeça a caminhar.

— Não vai dizer mais nada?

— É um assassino e sabe quem você é. Isso já deveria ser suficiente. Nem todos

os Não Nascidos são ‚bons' ou ‚inconscientes'. Tem alguns que se sentem muito

bem no papel de matador. Precisa tomar muito cuidado com eles. São os lúcidos.

— O que quer dizer?

Quando o Leviatã dá suas ordens, entramos numa espécie de transe e agimos de

acordo com o que sua voz nos diz, sem vontade consciente. É por isso que não

lembramos o que fizemos. Mas nem todos são assim. Alguns de nós têm uma

sintonia tão grande com o mal que os gerou, que podem agir de acordo com ele sem

precisar de condicionamentos adicionais.

— E ele poderia ser um deles?

— É. Seja como for, fique alerta.

Caminhamos em silêncio por um bom tempo.

Queria lhe perguntar uma coisa sobre os assassinos. Por que matam desse

modo? Por que amarram o corpo das vítimas num lugar alto... E como conseguem

fazer isso?

Ele responde com outra pergunta:

— Quando as pessoas morrem, onde são sepultadas?

Debaixo da terra.

— E por quê?

— Sei lá! É uma tradição, não será porque viemos da terra e voltamos à terra?

Os corpos são pendurados no alto porque nós não temos contato com a terra

que, ao contrário, é o elemento que gerou as nossas vítimas. Nós usamos seus corpos

como uma bandeira, exposta ao olhar dos humanos.

— E como eles conseguem carregar os corpos para lugares tão absurdos? —

pergunto de novo.

— Quando agem sob as ordens do Leviatã, os Não Nascidos ganham uma força

enorme. É uma energia maligna que dá poderes extraordinários.

— Fala deles como se não fizesse parte do problema.

— O Leviatã não tem mais muito poder sobre mim.

— Então... é possível se libertar dele?

— Ninguém nunca se libertou completamente e quase todos morreram...

tentando.

— Como o homem da papelaria?

— Descobriu que também era um de nós?

— Nessa altura dos acontecimentos, basta juntar as peças para ficar evidente. O

caderno e a caneta comprados com ele; a loja esquisita, às vezes cheia de mercadorias,

às vezes vazia e, de repente, fechada; o Master que me seguiu até lá dentro e a morte

absurda do dono, O Mas- ter sugou a alma dele, não? Por isso estava com os olhos

transparentes...

— É o que eles fazem.

— Então nem o dono da papelaria conseguiu se tornar totalmente humano?

— Como disse, nenhum de nós conseguiu ainda. Ele nos ajudava a reconhecer

novos Não Nascidos e a aproximá-los do grupo.

Seguimos um ao lado do outro na calçada cinzenta.

Mais alguns minutos de silêncio se perdem no ar. Tento contar as pedrinhas de

cimento espalhadas pela superfície, mas são muitas e perco a conta no caminho.

Não tenho mais nenhuma vontade de me reencontrar.