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Quando saio do consultório do dr. Mahl, ando sem rumo certo. Para a escola? Para o

Velho Aqueduto? Não, melhor não, acho que Morgan não ia gostar. O melhor é

voltar para casa de ônibus e tentar descansar um pouco. Quando chego ao ponto,

ouço alguém chamar meu nome:

— Alma?

É um sujeito numa moto, com um capacete preto na cabeça parecendo um

enorme inseto. Não é possível que seja mais um desconhecido que me conhece. De

fato, quando tira o capacete, vejo o rosto de Adam.

—Ah, é você...

— Que animação!

— Desculpe, mas hoje não é um bom dia. Estou muito cansada.

— Estou vendo. Não foi à escola.

Fico em silêncio e ele resolve não perguntar o motivo.

— Quer uma carona?

— Você nem sabe para onde estou indo...

— Não, mas se você disser posso levá-la até lá.

— E por quê?

— Por que o quê?

— Por que tanta gentileza comigo?

— Nossa, é só uma carona. Tem sempre que achar que estou com segundas

intenções?

— Não acho nada — respondo, seca.

— E então, quer ou não essa carona?

Penso um segundo. Dois. Três.

— Está bem.

Adam desce da moto, abre o bauzinho na traseira, tira outro capacete e me

entrega.

— Ponha isso e diga para onde devo ir.

Dou o endereço da minha casa, pensando que, de todo modo, ele já deve saber.

Subo na garupa.

— Passe os braços na minha cintura.

Claro, pode esperar?

Mas, quando ele dá a partida, tenho que abraçar sua cintura se não quiser acabar

no chão. Nunca tinha andado de moto antes. A sensação não é de todo ruim:

disparamos pelas ruas cheias de carros, evitando os obstáculos numa corrida

desenfreada contra o vento.

Aperto a cintura magra de Adam, sinto os músculos retesados na barriga lisa.

De vez em quando, sinto um leve cheiro que imagino seja o dele. Sinto o efeito.

Nem eu nem Morgan temos cheiro.

Dura dez minutos. No máximo, 15. E Adam para diante da porta e me deixa

descer.

— É aqui?

— É. Obrigada... — digo, devolvendo o capacete.

— Foi um prazer. A gente se vê na escola.

Fico olhando ele abrir e fechar o baú, subir na moto e partir de novo, depois de

acelerar ruidosamente.

Como se não fosse nada de mais. Como se fosse normal. Normalidade.

Foi gentil, penso comigo. Não sei por quê, mas ele foi gentil. Assim que cruzo

o portão e coloco os pés no hall, alguém me segura pelo ombro.

— Morgan! O que está fazendo aqui?

— Procurando você. Não foi à escola hoje? Fiquei escondido do lado de fora do

portão esperando você.

— Estava ocupada.

— E aonde foi?

— Ao consultório do dr. Mahl. Descobri que está tratando de Agatha e queria

dizer que, apesar do que fez, ela merece uma oportunidade.

— Assim como o Adam?

— Viu quando ele foi embora? Bem, só me ofereceu uma carona.

— E você aceitou.

— Você disse que os Não Nascidos não têm emoções. Mas estou achando que

está com ciúmes.

— Deixe de bobagem. Só estou preocupado. Já disse que não confio nele. Aliás,

não confio nos seres humanos em geral. E por isso mesmo acho que devia ficar bem

longe dele.

— Mas também disse que devia agir normalmente. E foi o que fiz. E você, o

que veio fazer aqui?

— Vim buscar você. Temos que voltar ao Refúgio.

— Agora?

— Por quê, tem alguma coisa a fazer?

— Não, mas... é que estou exausta e queria descansar um pouco.

Morgan olha para mim com um ar vagamente piedoso.

— Vamos fazer o seguinte: vamos até o Refúgio e você descansa lá mesmo, mais

tarde.

Imagino que mais cedo ou mais tarde terei que me acostumar com a ideia de

passar mais tempo lá dentro, portanto, não crio problemas.

O Velho Aqueduto espera por nós.

— Como está Nina? — pergunto quando entramos no carro.

Ele me olha com severidade.

— Estamos cuidando dela.

— O que significa cuidando?

— Não é mais de sua conta — corta ele secamente.

É uma resposta que não deixa margem para interpretações. Não quer que

pergunte mais nada. Insuportável. Quando quer, ele sabe ser realmente insuportável.

Chegamos ao edifício abandonado e tenho uma sensação de déjavu que não tem

a ver com ontem à noite, mas com uma lembrança mais antiga, como se uma coisa

enterrada no fundo da mente começasse a voltar à superfície, lenta e

implacavelmente.

Entramos na primeira sala, onde me distraio observando o balé da poeira

suspensa no ar. De repente, vejo a poeira formar um rosto que me encara com olhos

ferozes, a boca escancarada, cheia de dentes pontiagudos e nojentos.

Dou um passo atrás.

Morgan olha para mim.

— O que houve?

— Nada... não foi nada.

A poeira voltou a ser apenas poeira: o mal está dentro da minha cabeça. Passo a

mão na testa, afastando os pensamentos.

Vou andando atrás de Morgan pela segunda sala. Não tenho mais medo. Ando

mais depressa do que ontem.

— O que está me esperando hoje? — pergunto na esperança de obter uma

resposta compreensível. Deve haver algum motivo para ele vir me pegar tão cedo.

— Precisa encontrar com uma pessoa.

— Uma pessoa ou um Não Nascido?

— As duas coisas.

Não sei o que pensar. Como é possível que alguém seja as duas coisas? Cada vez

que penso que entendi tudo, algum detalhe novo aparece para colocar tudo em jogo

novamente. E as minhas constantes voltam a ser variáveis. Acho que vou

enlouquecer.

Percorremos o labirinto dos corredores daquele subsolo num silêncio carregado

de expectativas.

No final, chegamos à porta de ferro hermeticamente fechada.

— Use a sua — diz ele.

Pego minha caneta e enfio na fechadura. Clique. Giro 180 graus, a porta se abre

e tenho a horrível sensação de que acabei de destampar uma coisa que estava fechada

havia muito tempo.