56

O Professor K.

Está no Refúgio: as lentes escuras mais impenetráveis do que nunca, uma

palidez de dar inveja na lua e a voz grave que parece brotar das profundezas de uma

selva.

— Seja bem-vinda, Alma.

Acho que percebeu meu estado de total confusão. De fato, tenta me colocar à

vontade.

— Sei que deve estar achando estranho me encontrar aqui. Faz pouco tempo

que conhece sua verdadeira natureza, esse lugar e seus novos amigos — diz, olhando

para Anel, Raul e Christian, alinhados numa fileira perfeita diante de mim, como

um pelotão de fuzilamento.

— Não é a única coisa estranha que vi nos últimos tempos — rebato, dando

uma olhadinha significativa para Morgan. — A menos que o senhor esteja aqui para

me censurar porque viu quando fugi da escola hoje de manhã...

Ninguém ri da minha piadinha.

— Claro que não. Entendo muito bem que, depois de tudo o que soube, a

escola deve parecer um lugar distante, onde não acontece nada de realmente

importante.

— Para dizer a verdade, não consigo mais distinguir o que tem a ver comigo ou

não. Encontro pessoas que nunca vi antes, mas me conhecem, e pessoas que pensava

conhecer e que descubro que não passam de estranhos.

— Algum tempo atrás, houve alguém que disse: às vezes se conhece melhor

com o coração do que com os olhos.

Repito sua frase na cabeça. Acho que resume muito bem o sentido da minha

vida nos últimos meses.

— Venha comigo, vamos até a piscina. Preciso lhe explicar o motivo de minha

presença aqui.

Da primeira vez, não prestei a atenção que devia a esse lugar. Além da piscina,

que ocupa a maior parte do espaço, noto que não há janelas, pois estamos no subsolo,

mas apenas pequenas aberturas de ventilação, colocadas no alto da parede.

Bem atrás do Professor K, vejo uma espécie de gaiola de alvenaria com um dos

lados — o que dá para a piscina — composto por uma placa de vidro.

— Gosta da minha sala?

— Está querendo dizer que é obra sua?

— Todo o Refúgio foi construído por ele — explica Morgan. O professor é uma

ajuda indispensável para os Não Nascidos.

— Obrigado, Morgan — diz o professor, agradecido.

Ao vê-los aqui, compreendo finalmente o porquê daquelas conversas secretas,

daquela relação que sempre achei meio esquisita. E entendo também por que vi o

professor conversando animadamente com Anel fora da escola. Tudo retorna e se

encaixa perfeitamente, com simplicidade, como se fosse um quebra-cabeça para

crianças.

— Lembra da minha aula a respeito da água?

Faço que sim.

— Não podia dizer na frente dos outros alunos que a água é o elemento em que

você nasceu, o elemento de que é feito o mundo de My Land, no qual as almas vivem

suspensas.

— E então por que os Não Nascidos não podem mergulhar na água? Por que a

água é tão perigosa para nós?

— Porque no momento em que esse corpo lhe foi concedido, você deixou de ser

o que era antes, ganhou vida, uma vida idêntica em tudo e por tudo à de um ser

humano.

Ganhar vida... Parecer um ser humano... mas ser uma coisa diferente. Será que

algum dia vou mesmo me acostumar com tudo isso?

— A água é ligada à sua vida anterior. Se sua alma entrar em pleno contato com

ela, como acontece quando mergulha completamente, a força de atração daquilo que

você era anteriormente, do lugar de onde vem e Daquele que lhe deu esse corpo, seria

poderosa demais para que você pudesse vencê-la. Todos os seres que vêm de My Land

estão sujeitos a esse poder da água, inclusive aqueles que vocês chamam de Masters.

Mas falaremos sobre isso mais tarde. Basta que saiba que, para nós, a água é ao

mesmo tempo vida e morte.

—O senhor também é um Não Nascido?

O Professor K fica em silêncio por alguns instantes, depois aproxima a mão do

rosto e, muito devagar, mostra o que tentei imaginar tantas vezes. Com a ponta dos

dedos segura uma das hastes dos óculos escuros e começa a descê-lo por cima do

nariz. Como um ritual que exige gestos lentos e precisos, ele tira os óculos

completamente, mas mantém os olhos fechados.

Noto que um círculo de atenção se forma entre todos nós, algo que nos torna

próximos e compactos como se nada pudesse penetrar ou sair, como se não houvesse

mais espaços vazios entre nós.

O rosto do professor tem uma aparência diferente sem os óculos. Parece mais

jovem, mais decidido.

Quando abre os olhos, entendo por que os esconde. Suas íris se destacam,

nítidas, vermelhas e brilhantes como duas lantejoulas. Emanam uma luz que ofusca.

São olhos infernais.

— Fui, durante um tempo. Também venho de My Land, onde era um servo de

Leviatã. Quando fui enviado à Terra, cumpri suas ordens, matei e semeei o terror

como Ele tinha ensinado, durante tanto tempo que não tenho a força de lembrar, de

um modo tão feroz que alguma coisa dentro de mim, aquela única coisa que Ele não

conseguiu eliminar, finalmente reagiu e consegui me rebelar contra suas ordens: meu

coração experimentou uma emoção fortíssima. Horror. Horror de mim mesmo. E foi

com esse horror pelo que era antes que consegui me separar Dele.

— Mas disseram que os Não Nascidos não sentem emoção.

— Pois é, de fato. Mas acho que não se refere a todos, ou pelo menos não da

mesma forma. Somos almas diferentes umas das outras. E é na diversidade que se

aninham os germes da rebelião. Seus contos, por exemplo. São uma coisa sua, só sua.

Um dom.

— Se é isso mesmo que acha...

— Sei que é difícil de aceitar, mas para todos nós foi uma bênção, um dom do

Bem, que nos incentiva a não desistir. Através de você, ele nos mostra uma esperança

que podemos utilizar. Você... capta as suas ordens!

— Mas os contos estão cada vez menos frequentes. Talvez estejam acontecendo

menos assassinatos.

— É uma consequência da sua revolta. Quando transcreve seus pesadelos para o

papel, está entrando em contato com o espírito do Leviatã, com sua energia negativa.

Mas, quanto mais se rebela, mais essa ligação enfraquece. Ele está combatendo você,

está lutando contra a sua mente.

— Então essa é a razão das dores de cabeça...

— Exatamente — responde o Professor K. — Quando eu me rebelei... e meus

olhos ficaram do jeito que acabou de ver, o Leviatã mandou seus Masters contra

mim. Um deles quase conseguiu me matar... me desligar desse corpo.

— Não consigo imaginar como...

— Nos seres humanos, alma e corpo se procuram e se escolhem, nascem juntos

e se unem no amor à vida. Mas conosco não é assim. Somos almas abandonadas,

privadas da alegria de nascer, a quem um ser desprezível oferece um corpo perfeito,

que na verdade é uma arma que ele usa para seus fins. O que há em nós não é uma

beleza real, pois nossas almas são prisioneiras de uma aparência tão atraente quanto

maléfica. Fomos feitos para atrair e destruir, sem nenhum remorso. Mas não

conseguimos nos ligar a esse corpo instantaneamente. Só aprendemos a amá-lo com o

tempo. E, por isso, os Masters podem nos pegar desprevenidos e nos separar dele com

relativa simplicidade: nosso corpo é uma coisa que recebemos como empréstimo,

nada mais. Os Masters me deixaram assim, mas não me derrotaram. Não ainda.

— O professor — interrompe Morgan — quer dizer que sua pele clara e seus

olhos...

— Tentaram arrancar minha alma, mas não conseguiram. Fiquei ligado ao meu

corpo, consegui amá-lo mesmo depois que o enfraqueceram e o privaram de energia e

de vida.

— Meu Deus, é terrível!

Ouço sua voz, olho sua aparência e sinto uma pena infinita pelos sofrimentos

que teve que suportar.

O Professor K aponta de novo para a estranha construção a seu lado.

— E agora, Alma, gostaria finalmente de explicar o motivo pelo qual lhe pedi

que viesse até aqui.

Sorri, colocando novamente os óculos.

— Já é hora de saber o que essa piscina contém realmente e por que sua salvação

depende dela.

Justamente quando penso que já ouvi o suficiente, que já sei tudo o que tinha

que saber, percebo que só vi a ponta do iceberg e que sua base, mergulhada nas

profundezas, é muito, muito maior.