Na escola, só tenho um objetivo: descobrir tudo o que puder sobre aquele tal de
David, o escritor protagonista do meu pesadelo, o primeiro depois de um período de
relativa tranquilidade. Tinha esperança de não escrever mais, porém... mais uma dor
de cabeça. Cada vez que me concentro nesses contos, que tento descobrir alguma
coisa, mil lâminas perfuram meu cérebro. Será que nunca terei um instante de paz?
Das outras vezes, não consegui deter os assassinos, mas devo e posso fazer isso
agora; agora que, de alguma maneira, sei que também faço parte dessa máquina
mortal.
Se quiser procurar alguma informação, tenho que matar a primeira aula de
matemática. Tomo a decisão e empurro a porta da biblioteca.
Está vazia, é claro. Existem estudantes responsáveis nesta escola.
O computador ainda está desligado. Aperto o botão, e a tela se ilumina num
relâmpago azulado. O processador começa a mastigar e até eu sofro com seus
esforços. Lentamente, compõe o plano de fundo: uma ensolarada ilha de areia
coralina circundada por um mar azul -turquesa Alguém deve ter colocado essa
imagem há pouco tempo, da outra vez era só um fundo preto. Uma fuga para um
mundo que não existe. Ou talvez exista, mas quem tem acesso a um lugar desses?
Começo a busca. O nome David, combinado com o nome de personagem
Giona, produz mais de 20 mil resultados. Clico no primeiro, que me envia para a
home page de uma editora, onde encontro biografia do autor.
Fez um monte de coisa, penso comigo. Leio tudo com atenção
‚... Jovem de grande talento literário.., diplomado em medicina, resolve se
dedicar, contra a vontade da família, à carreira de escritor... ainda muito jovem,
recebe o ambicionado prêmio... mais de trinta romances publicados... famosa série...
supera um milhão de exemplares vendidos: As Viagens de Giona...'
É ele.
Pego o caderno roxo da mochila para verificar.
Não devia acontecer mais, já não devia causar um efeito tão forte; afinal, não é o
primeiro conto que escrevo, mas cada vez que toco naquela capa lisa sinto meu
estômago fechar, retorcido como uma esponja.
Sim, trata-se exatamente do sr. Giona.
Em seguida, falam de outros romances e séries de sucesso. Também escreve
romances policiais. Sorrio: quem sabe sua experiência não poderia me ajudar a
resolver esse mistério absurdo que é a minha vida. Tem várias informações pessoais,
mas nada sobre o local onde mora. Olho a fotografia: cabelos castanhos crespos e
despenteados, olhos esuros meio amendoados, lábios finos. Não me diz nada.
Retorno e faço nova busca.
Encontro uma entrevista:
‚... Muitas das aventuras que conto são ambientadas em lugares que conheço... a
casa dos meus pais é um deles...'
Que sorte! Tem uma foto da casa. Inconfundível, com aquela torre. Igualzinha
ao pesadelo.
Olho para ver se não chegou ninguém e ligo a impressora, que eniia em ação
com um estalo sinistro. Seleciono a foto da casa, aumento e mando imprimir.
Aquele achado pré-histórico puxa o papel feito um velho asmátio puxando o ar
e lança os jatos de tinta sobre ele em soluços breves e regulares.
Quando termina, olho para a folha impressa como se fosse um nilagre e desligo
a maldita engenhoca.
Justo em tempo, antes que um professor entre na biblioteca. Não e da minha
seção, mas sabe como são os professores, sempre prontos ando se trata de repreender
um aluno. E eu pareço um petisco ofereido numa bandeja de prata.
— Por que não está assistindo à aula, mocinha? — pergunta imediatamente.
É um homenzinho atarracado, vestido à moda antiga, com colete e gravata-
borboleta. Tem um jeito severo, mas, juntando seu rosto redondo como um globo,
seus erres enrolados e seus sapatos de duas cores, fica difícil levá-lo a sério.
— Estava terminando uma pesquisa — digo, fechando distraidamente a janela
na tela do computador.
— Certo, mas não pode ficar aqui durante o horário da aula. Serei obrigado a
relatar ao diretor...
Não, não, não, repito na minha mente.
— ... se encontrar você por aqui de novo, sem permissão.
Dou um suspiro de alívio.
— Obrigada, professor.
Enfio minhas coisas na mochila e saio correndo, antes que ele mude de ideia.
Se tivesse um computador em casa não precisaria me arriscar tanto para obter
uma simples informação. Mas por enquanto Jenna não tem condições. Tendo em
vista todos os sacrifícios que faz por nós, não tenho coragem de reclamar.
De onde tirei tamanha compreensão? Na realidade, nunca tinha tido nenhuma
com ninguém. Talvez o simples fato de ver a própria vida pendurada por um fio
amoleça até um coração de pedra como o meu.
De todo modo, agora tenho a foto da casa e sei que fica no Bairro Oeste. Vou
precisar de um pouco de sorte para encontrá-la. Se tivesse uma scooter ou um carro...
Sempre a mesma história; portanto, tiro isso da cabeça e boto um ponto final.
Um pouco depois, estou na minha sala não ouvindo a aula. Do lado de fora da
janela brilha o sol. Está chegando a primavera, mas aos poucos, aos soluços. É
estranho: depois de séculos de céu cinzento e chuvoso, estou quase desacostumada
com tanta luz, que fere meus olhos como se fosse excessiva e bela demais para que
consiga sustentá-la.
Muita gente acha a chuva melancólica, mas quando você se habitua ela se torna
parte do mundo que conhece e transmite segurança com suas cores apagadas,
enquanto a chegada do sol, explosivo e forte com suas cores vivas, causa aflição.
Penso sobre o fato de que não há nada nesta escola que me interesse depois que
Morgan foi embora. É tudo sem graça e inútil. As coisas que realmente contam
acontecem fora desses paredões cinzentos. Olho para os meus colegas, cada um
perdido em seu pequeno mundo pensando que ele é maior do que o dos outros.
E o meu? Está cada vez mais parecido com um inferno, cujos demônios agora
moram numa casa com uma torre.