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Saio do portão. O carro de Morgan está parado bem em frente.

Não sei muito bem o que sinto: nesse exato momento, o medo vence o resto e

deixa tudo meio embaçado. Mas é só um instante. Logo depois, é como se meu

estômago estivesse se revirando todo.

Morgan está ali, no carro, a poucos passos de mim. Quanto tempo esperei,

quantas vezes imaginei esse momento. E mais uma vez, uma pontada, uma fisgada, o

medo de que possa desaparecer diante dos meus olhos. Ele é mais rápido do que eu:

abre a porta do carro, desce e olha para mim. Seus olhos violeta são ainda mais

bonitos do que lembrava. Seus cabelos têm um brilho dourado sob a luz do lampião.

Caminha para mim e sorri.

Não diz nada, nem eu a ele. Só me abraça como se não quisesse mais me deixar

partir. Morgan não tem perfume, não tem calor. É um espírito profundo que me

envolve e me faz sua.

Quando nos afastamos, olhos nos olhos, vivemos um instante de entendimento

puro, sem palavras.

Com uma das mãos, ele afasta meus cabelos do rosto. As pontas de seus dedos

frios me provocam arrepios e uma onda de sensações que se espalha por todo o meu

corpo.

Vejo seu nariz, sua boca se aproximarem mais e mais. Mas nesse momento uma

coisa que eu não esperava dispara dentro de mim. Seus lábios tentam atrair os meus,

mas eles resistem. Dou um passo para trás. Ele não reage. Tudo o que passei no

período em que ele não estava lá volta à superfície, tim-tim por tim-tim. Uma voz

me diz que fique esperta, relembra cada noite sem dormir, cada fuga, cada terror sem

explicação.

— Quero que me explique essa história toda — limito-me a dizer.

Ele concorda.

— Vamos para o carro.

Morgan dirige rápido, está em silêncio, mergulhado em seus pensamentos.

Também olho a rua na minha frente. Atravessamos a Ponte Nova do aeroporto,

cruzando apenas com os poucos carros que trafegam na direção oposta.

Estamos indo para a Cidade Velha. Entramos pelas ruas estreitas e sem conexão

aparente do bairro. Parece que toda a minha vida gira em torno dessas ruas. Morgan

estaciona o carro numa pracinha, perto da igreja onde socorri Naomi na noite da

festa de Tito.

O cemitério fica a cerca de 10 metros, com suas cruzes, lápides e suas vidas que

não existem mais. É um mundo paralelo ao dos vivos, e a única ligação entre os dois

são os corpos devolvidos à terra.

— Gosto dos cemitérios — diz Morgan, de repente. — São uma espécie de

porta entre as duas dimensões.

Fico em silêncio.

— Sempre acreditei que os corpos se transformassem em invólucros vazios —

continua ele —, que a alma voasse para longe depois da morte.

— E agora não acredita mais?

— Acredito muito mais do que antes.

Sacudo a cabeça.

— Chega de frases enigmáticas, Morgan!

Sei muito bem como se sente, Alma. Sei porque também passei por isso.

— Não brinque comigo!

— Jamais faria isso. Venha comigo — diz, seguindo na frente. Noto que está

com uma mochila azul no ombro.

Fico parada.

— Não vem?

— Tive que me virar sozinha e foi o que tratei de fazer: passei por momentos

inacreditáveis, mas agora estou aqui. Quero saber de tudo. Não vou seguir você de

olhos fechados.

Ele se aproxima e segura meu braço, com um jeito decidido, mas gentil.

— Por favor, confie em mim uma última vez. Prometo que não vou decepcioná-

la.

— Faz pouco tempo, numa noite dessas, um deles... um Master… entrou em

minha casa e virou meu quarto de cabeça para baixo. Acho que o mesmo Master me

seguiu outro dia até a porta de casa. Se não fosse o tenente Sarl, talvez estivesse

morta. Onde estava você nessa hora.

— Existem coisas, Alma, que são mais importantes do que a minha vida ou a

sua, coisas maiores do que nós, que não podemos fechar numa gaveta e simplesmente

ignorar. Sinto muito não ter ficado a seu lado o tempo todo, mas às vezes não dá para

fazer diferente. De qualquer jeito, agora estamos aqui e juntos. Para mim, é

suficiente. Espero que para você também.

Suas palavras me acalmam, apesar da noite que se fecha ao nosso redor, do

cemitério, do silêncio rompido apenas pelo grito de algum passos e do nevoeiro que

envolve as coisas e deixa seus contornos enfumaçados.

Caminhamos lado a lado pelas ruas estreitas e desertas. Um vira-lata de pelo

tigrado com uma orelha meio caída nos faz companhia, mas depois fareja um monte

de lixo e vai embora. Morgan tem razão tudo na vida é uma questão de prioridade.

— Sabia que agora tenho um gato? — digo, só para quebrar o silêncio que caiu

entre nós, carregado pela espera de alguma coisa que não sei bem o que é.

— Ganhou de presente ou resolveu arranjar um gato?

— Na verdade, é o gato de Agatha. Ela está...

— Na casa de detenção, já sei.

Sabe. E talvez estivesse até me espionando na saída da escola ou quando voltava

para casa ou mesmo quando fui jantar com Roth. Talvez o vulto encapuzado que nos

seguiu no estacionamento fosse ele...

— Sei que estava na cidade durante esse período. Vi o carimbo dos correios na

carta.

— Digamos que estava.

— E que continua fazendo mistério...

— Mas não por muito tempo. Pretendo lhe contar absolutamente tudo.

Antes que tivesse tempo de responder, ele interrompeu:

— É aqui. Chegamos.

Não tinha prestado atenção no caminho, mas estávamos na frente do edifício

abandonado onde Morgan entrou e desapareceu misteriosamente da outra vez em que

estive aqui: os tijolos escuros da fachada, as janelas com os vidros quebrados, a porta

de madeira apodrecida pelo tempo. Lembro cada segundo passado dentro daquele

edifício, o pavor que senti e a minha fuga.

— Temos que entrar aí?

Ele faz que sim e abre caminho para mim ao longo da primeira sala. A claridade

da rua projeta um cone de luz amarelada que, como um refletor de teatro, revela os

detalhes da ruína que nos cerca: velhos móveis empilhados nos cantos, entulho

espalhado pelo chão, paredes descascadas. Tudo transpira abandono e miséria, O ar

está carregado de poeira, uma poeira densa, com cheiro de mofo, que gruda na pele e

me envolve também, como tudo aqui dentro, numa capa de velhice e decadência.

— Que droga de lugar é esse?

— É o Velho Aqueduto da cidade...

Água de novo, não é possível!

— Está abandonado há muito tempo... pelo menos cinquenta anos. É um lugar

muito especial, logo vai ver por quê.

Nem sabia que existia um Velho Aqueduto.

— Muita gente não sabe. Quando alguma coisa é substituída e deixa de ser

usada, as pessoas esquecem rapidamente e, em muito pouco tempo, é como se nunca

tivesse existido.

A imagem do quarto de despejo na casa de seus pais surge na minha memória.

Em seguida, ele faz uma coisa que eu não esperava de jeito nenhum. Pega

minha mão e me puxa para ele. E eu me sinto como um fantoche em seus braços. Ele

me aperta de novo e perco a respiração. Depois, ergue meu queixo com o indicador.

Seu rosto está tão próximo que vejo suas feições meio fora de foco, mas sinto toda a

sua energia magnética. E dessa vez não oponho resistência. Deixo que seus lábios

pousem sobre os meus e afasto qualquer pensamento da cabeça. Ele está me beijando,

não importa o que isso significa. Mas é um beijo curto, parece que só quer retomar o

contato, recuperar a intimidade com alguma coisa que estava distante, como nós dois

estivemos até agora.

— Sei que em breve nada será como antes e quero me lembrar de você como

está agora, antes de saber.

— Está me assustando.

Toca meu nariz com o dedo, carinhoso.

— Já disse que estou com você. Mas é melhor a gente ir andando.

Mais tensão. Sinto que está ali, sob a pele, pronta para me dar um choque

diante de qualquer estímulo externo.

— Cuidado com os vidros no chão.

— Não dá para ver nada aqui dentro — reclamo assim que deixamos a área

iluminada. Morgan não trouxe nenhuma lanterna.

— Me dê a mão, eu guio você.

Não gosto de ser guiada, mas não tenho alternativa. Entrego minha mão, um

pouco hesitante, e tento caminhar a seu lado sem tropeçar.

Um pouco mais adiante, Morgan para de repente. Meu coração começa a bater

mais forte.

— O que houve? — pergunto assustada.

As palavras se perdem no ar escuro e parado.

— Nada, mas... Antes de continuar, queria dizer que, de agora em diante,

estarei sempre a seu lado. Muito mais do que estive até agora.

— Está bem. Mas por que está me dizendo isso agora?

— Porque saber a verdade muda tudo. Quem descobre qual é a sua verdadeira

natureza não pode mais fingir.