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Imóvel na frente do BabyBlue, não consigo acreditar em meus próprios olhos. Três

moças e dois rapazes estão parados a uns dez passos demim. Conheço bem demais

uma daquelas moças. São aqueles cabelos cacheados e aqueles olhos claros que

poderia reconhecer entre um milhão. É a menina de ontem à noite, a assassina do

escritor!

Eu me perguntei várias vezes o que faria se ela tivesse me seguido ou como

reagiria se a encontrasse perto de casa ou na frente da escola, mas não estava pronta

para topar com ela assim, completamente por acaso, na noite de hoje, do lado de fora

de uma discoteca.

Está rindo com os amigos. Ainda não percebeu minha presença e continuo a

observar.

Não sei o que fazer, como me comportar. Tenho que falar com ela, é óbvio, mas

como? E sobretudo, o que vou dizer?

Sinto a boca rígida como se tivesse mastigado cola e o estômago embrulhado.

Fico parada, sem conseguir me decidir. Ela caminha na minha direção e faz isso

como se não estivesse nem aí. Minha espinha dorsal é atingida por uma rajada de

alfinetes que se enfiam na pele e traçam a geografia do meu medo. Está cada vez mais

perto. Olho para ela, cautelosa, como se fosse um animal de rua, cujas reações não se

pode rever. Não vejo mais nada ao redor, só nós duas. E então... ela passa a meu lado

e vai cumprimentar um sujeito que está atrás de mim. Solto a respiração como um

balão de gás furado.

Ouço a voz da menina atrás de mim, pela primeira vez. É doce e delicada.

Nem olhou para mim. Por quê? É impossível que não tenha me conhecido.

Impensável que tenha se esquecido.

Ouço quando se despede do amigo. Agora está sozinha. Tomo coragem e viro.

Estamos cara a cara, olhos nos olhos. Parece um pouco mais alta... vejo que está de

salto, mas mesmo assim mal supera m ombro. E... nada. Sua expressão é neutra,

velada por um leve espanto.

— Oi — digo então.

Ela me olha com cara de ponto de interrogação. — A gente se conhece?

Tem uma expressão meiga, nada a ver com a cara que tinha ontem à noite.

Instintivamente, procuro ver suas mãos, mas estão enfiadas nos bolsos da

jaqueta.

Ela percebe.

— O que quer comigo? Não sei quem é você.

— Sabe sim. A gente se encontrou ontem à noite.

Parece surpresa:

— Ontem à noite? Está enganada.

— Não estou, não, infelizmente.

— Garanto que está! — Começa a ficar impaciente. — Olhe realmente não

conheço você. Talvez esteja me confundindo com outra pessoa. Onde acha que me

viu?

— No Bairro Oeste. Na casa de David, o escritor. David? Não conheço nenhum

David.

Por que está fingindo? Para que mentir dessa maneira?

— Você estava na frente da casa dele.

Fiquei em casa a noite inteira, ontem, e de qualquer jeito, não tenho que lhe dar

satisfações. Se é uma brincadeira, não estou achando graça nenhuma. Aposto que não

sabe nem o meu nome.

— É verdade, não sei mesmo, mas sei de outra coisa. Suas mãos estão

arranhadas, não estão? Deixe ver.

— Não deixo ver coisa alguma! — responde irritada, mas um pouco menos

segura.

— É inútil negar. Suas mãos são a prova de que estou certa. De repente, ela me

encara. A raiva sumiu, lavada pelo rio de angústia que cai sobre ela. Lentamente, tira

as mãos dos bolsos: uma delas está coberta de arranhões vermelhos. Exatamente os

que fiz quando tentei me livrar de seu aperto.

Ela olha para a mão arranhada como se não fosse sua, depois se apressa a dar

uma explicação, mas seu tom é muito incerto. Não mente bem.

— Foi o meu gato, é tudo. — Depois, pensa um instante. — Mas como é que

sabia que estou com a mão arranhada?

— Porque fui eu quem arranhei.

Arregala os olhos como quem acabou de ver um fantasma. E começa a tremer,

mas acho que nem ela sabe por quê.

— Estava na frente da casa de David ontem à noite. Sei disso porque estava lá

também. Para deter você.

— Deter? Não estou entendendo.

— Eu ataquei primeiro e você agarrou meu pescoço e tentou me estrangular —

digo afastando a echarpe. — Foi por isso que arranhei você.

Ela examina minhas escoriações, franzindo a testa.

— Garanto que não conheço você.

— Não posso explicar como eu soube disso, mas você foi com um objetivo

preciso: matar David. E eu consegui impedir.

Ela não acredita no que está ouvindo.

— Deve ser doida. Nunca ouvi falar de nenhum escritor chamado David, não

sei onde mora e jamais me passou pela cabeça matar alguém.

Parece sinceramente perturbada com as minhas palavras, com os arranhões e

com as marcas no meu pescoço. Como é que não se lembra? A imagem de Larissa me

vem à memória e penso que essa menina também pode ter uma sósia. Uma espécie

de duplo. Seria uma coincidência absurda. Possível? Também podia ser ela mesma,

mas num estado de semiconsciência.

Tenta se afastar. Vou atrás dela.

— Não sei quem você é, mas me deixe em paz — grita se virando, convencida

de que, eliminando a minha presença, vai eliminar também a angústia que tomou

conta dela.

— Pegue isso. — Escrevo meu telefone num pedaço de papel.

Percebo que está olhando horrorizada para a minha caneta de aço. Engole em

seco sem conseguir disfarçar, mas não diz nada.

— É meu número de telefone. Meu nome é Alma. Por favor, me avise se

acontecer alguma coisa estranha, algo que não consiga explicar... mas pode ligar

também só para conversar. É importante.

— Posso saber quem você é realmente?

— Só uma pessoa que quer ajudar.

— Ajudar a fazer o quê?

— Ainda não sei, mas guarde esse número e ligue se precisar.

— Nina! Estamos indo! — chama alguém no grupo de seus amigos.

Paro e olho para ela.

— Seu nome é Nina?

Ela me lança um olhar gelado.

— É, mas é melhor que esqueça isso.

E pela segunda vez vai embora, engolida pela noite.

♦♦♦

O resto da noite passa em surdina. Naomi e Seline me obrigam a dançar. Meu

corpo se move, mas o pensamento continua fixo em Nina.

— Que pena que não se divertiu — diz Seline quando saímos da discoteca. —

Você anda muito estranha ultimamente.

— Ela é sempre muito estranha! — corrige Naomi.