A tensão às vezes nos prega peças terríveis.
Só quando ouço o barulho da bomba de água é que percebo que adormeci.
Anel e Christian estão de pé ao lado da piscina. A água está se retirando
novamente.
Tenho a impressão de que dormi dias, mas olhando o relógio vejo que não foi
mais do que meia hora.
— Já estão voltando?
— Já — responde Christian.
— Foi uma viagem rápida.
— O tempo não passa da mesma maneira nas duas dimensões. Na Terra um
minuto é um minuto, mas em My Land pode equivaler até a uma hora. Tudo
depende.
— Depende de quê?
— Do Leviatã. Quanto mais fraca for a alma que viajou para My Land, mais a
sensação de tempo vai se ampliar. Em alguns casos, pode até se tornar eterna.
— Mas nesse caso seria impossível voltar para cá, não é?
— Nota dez com louvor! — comenta Anel, debochada.
Viro para ela num salto. É demais! Encaro diretamente seus olhos escuros e
ferozes.
— Ouça bem, não sei qual é o seu problema comigo ou talvez até saiba, mas
acho que não me importa nem um pouco. Fui jogada numa situação que, para dizer
pouco, é alucinante, e não tenho nenhuma intenção de ficar ouvindo suas piadinhas
azedas ou suas alfinetadas venenosas. Pelo que pude entender, estamos todos no
mesmo barco; portanto, tente fazer a sua parte e me deixe em paz. Certo?
Anel fica imóvel, calada. Mas seu olhar, cortante como uma lâmina, já é
suficiente.
— Alma tem razão — apóia Christian, mais uma vez. Mas isso só serve para
deixar Anel ainda mais despeitada. Ela se afasta e vai para o outro lado da piscina,
sem dizer uma palavra.
Enquanto isso, a câmara reapareceu completamente. Vejo a porta se abrir e
Morgan sair primeiro, seguido por Raul. Caminham com passo incerto e vacilante,
como se estivessem bêbados.
Quando afinal chegam mais perto, examino seus rostos exaustos e pálidos, os
olhos sem brilho dentro das órbitas marcadas por olheiras profundas. A impressão é
de que estou diante de duas pessoas esgotadas.
— Como foi? — se apressa a perguntar Christian.
A voz de Morgan brota com dificuldade da garganta:
— Havia muitas almas... Vocês não fazem ideia. Estão perdidas, assustadas...
Quanto desespero! — exclama levando as mãos aos olhos.
— E conseguiram libertar algumas? — pergunta o Professor K, saindo da
cabine.
— Conseguimos.
— Quantas?
Por um instante, Morgan dá a impressão de que vai desmaiar, sua cabeça
balança, mas em seguida ele ergue os olhos para nós novamente e, sem falar, mostra
os cinco dedos da mão direita.
Estou confusa e pergunto:
— Como se faz para libertar uma alma?
Ele me olha de lado, cansado.
— Acho que esse não é o momento...
Mas Raul toma a palavra:
— Tivemos que agir com rapidez. O Leviatã estava muito forte. Foi duro. Teve
um momento em que pensei que não ia conseguir. Ele se concentrou em mim.
Queria me pegar de volta para Ele, e teria conseguido se não fosse a ajuda de
Morgan.
— Também foi difícil para mim... — recomeça Morgan. — Havia uma força
incrível criando obstáculos de todo tipo. Quando chegamos ao Átrio estávamos
exaustos.
— O que é o Átrio? — pergunto.
É Morgan quem responde:
— É onde se reúnem as novas almas. Estavam todas lá, em fila, e nós queríamos
avisar, libertá-las, mas... Ele logo nos descobriu. Tivemos pouco tempo,
infelizmente.
— Precisam descansar agora — diz o professor, estendendo dois copos d’água
para eles.
Mais água, penso comigo, enquanto tento imaginar como será My Land, qual
será a sensação de estar lá. E naquele exato momento, uma pontada fortíssima
transpassa minha cabeça.
— Ah...! — grito me agachando.
— Alma? O que houve? Está se sentindo mal? — acode em seguida o professor.
— Minha cabeça! Ele está tentando entrar em minha cabeça! — berro,
completamente em pânico.
— Feche os olhos.
O professor aperta minhas têmporas entre as mãos, depois apóia a palma em
minha testa. Só o que vejo é uma grande flor negra que se abre lentamente ocupando
toda a minha visão. É como um abismo que engole todas as cores em sua escuridão.
Mas engole também a dor.
— Está melhor?
— Estou.., sim... Bem melhor, mas... o que fez?
— Nada, foi apenas o contato. Ele nos mantém separados, nos educa para a
solidão, para rejeitar as emoções. Os sentimentos são uma arma que precisamos
aprender a usar sozinhos, como se faz com uma língua estrangeira. Senti pena e
compaixão por você e transmiti isso através da minha mão. E Ele teve que partir.
— É simples assim?
O professor sacode a cabeça negativamente.
— Não, na verdade não é nada simples, sobretudo para um Não Nascido. E
você vai aprender isso às suas próprias custas, infelizmente.
Mas agora fique calma, está tudo certo.
Levanto.
— Vou levar você em casa — diz Morgan, exausto.
— Não precisa, descanse.
— Um pouco de ar vai ser muito bom para me sentir melhor.
Um minuto depois estamos do lado de fora. Morgan ergue os olhos para o céu,
abre os braços e fecha os olhos. Ainda não escureceu de todo. É o momento da
passagem, quando o sol e a lua trocam de papel e de hemisfério. São apenas alguns
segundos de movimento e transformação, nos quais se percebe no ar a grandiosidade
daquilo que nos cerca, a sua desarmante perfeição.
E o desejo de fazer parte daquilo é irrefreável.
Imito Morgan, fecho os olhos, abro os braços e, como diz o Professor K, tento
estabelecer contato. Minha mão toca a de Morgan, meus dedos se entrelaçam aos
dele. Sinto alguma coisa circulando entre mim e ele, e vice-versa, como um fluxo, e
abraço a ilusão de que conseguimos, nem que seja por pouco tempo, deter aquele
momento de perfeição.
— Era para isso que tinha tanta pressa de sair de lá? — pergunto depois.
— Estava com falta de ar. A sensação de claustrofobia que se sente em My Land
é absoluta. É uma privação sensorial completa: não existe nenhum oxigênio, nem
cheiros, sabores, cores... Ninguém que esteve lá — diz olhando ao redor — ia querer
retornar. Mas você só vai entender quando experimentar tudo isso pessoalmente.
— Quando acha que estarei pronta?
— Ninguém pode saber com certeza. Você vai reconhecer sozinha, antes de
todo mundo, o momento em que será capaz de chegar tão perto Dele e de enfrentá-
lo.
— Por enquanto, só a ideia já me assusta mortalmente.
— O importante é não ter pressa. E depois, eu estarei com você — diz,
passando o braço em meu ombro. Assim aconchegados um no outro, caminhamos
serenos em direção ao rio.
Vai ser uma noite linda, o ar é suave e tudo parece ocupar o lugar certo na
ordem das coisas.
Chegamos ao rio e atravessamos a ponte. Dou uma olhada inquieta para a água
que escorre embaixo de nós.
Só então vejo que tem um sujeito bem na nossa frente. E que está vindo em
nossa direção.
— O que é isso? — pergunto.
Morgan não responde. Observo melhor o sujeito: seus olhos emanam uma luz
estranha. E tem alguma coisa na mão... Uma faca!
—Fuja!
Começamos a correr o mais rápido que podemos, e Morgan, mais veloz, quase
me arrasta pelo braço. Corro, corro sem nem me virar para ver se o Não Nascido —
porque não tenho dúvida de que é disso que se trata — está nos seguindo ou não. Só
consigo pensar que isso nunca tinha acontecido antes. Por que um de nós está nos
atacando? Talvez porque não seja como nós...
Continuo a correr, até ver que Morgan parou.
— Vou tentar detê-lo. Continue!
Ë o que faço, por alguns metros, mas não consigo. continuar. Não posso. Viro e
vejo que Morgan se move lentamente. Está exausto e não vou abandoná-lo.
— Vá embora! — grita, quando o sujeito já está praticamente em cima dele.
Não sei o que fazer. Preciso agir rápido. Remexo na mochila e pego a caneta de
aço. Lembro que já funcionou uma vez contra um Mas- ter, talvez também funcione
com um Não Nascido. Empunho a caneta como um punhal e me lanço contra ele.
O rio desliza ao nosso lado.
Dou uma punhalada em suas costas, bem no meios dos ombros. O moletom que
ele usa rasga e se tinge de vermelho-escuro. Ele deixa a faca cair e Morgan dá um
chute, jogando-a para longe. É então que o Não Nascido se volta contra mim e me
dá um soco no rosto. Caio no chão. Sinto uma dor horrível, como se alguma coisa
tivesse explodido no meu nariz e começado a queimar. Tento focalizar melhor o que
está acontecendo: Morgan e o sujeito estão abraçados e balançam perigosamente em
direção ao parapeito. Ataco o agressor mais uma vez e consigo atingi-lo. Ele vacila e
Morgan consegue acertar um soco que o faz voar para trás. Seus olhos não param de
brilhar. Tenho que atingir os olhos, tenho que apagá-los, como fiz com o Master no
parque. Mas quando me aproximo levo um chute que de novo me joga no chão, sem
fôlego.
Assim que levanto os olhos, vejo Morgan tentando empurrar o Não Nascido da
ponte, por cima da grade.
— Morgan!
Mas ele nem me ouve. Está usando suas últimas forças para lutar. Mais uma vez,
consigo ficar de pé. Minha cabeça gira, a visão fica enevoada. Os dois formam uma
massa indistinta diante de mim, debruçada sobre a água, cada vez mais inclinada até
desaparecer completamente num único e desesperado grito. Chego ao parapeito com
um esforço imenso e olho para baixo. NÃO! NÃO!, começo a berrar.
A correnteza carregou os dois.
Esfrego os olhos enevoados e olho de novo. Não é possível!
— Morgan!
Caio no chão, desesperada. Não entendo mais nada, nada mais me importa.
Depois, alguma coisa me faz levantar. Uma esperança. Uma esperança que me
diz que devo voltar ao Refúgio. Não pode estar morto. Vamos encontrá-lo. Vamos
procurar ao longo do rio. Ou em My Land. Sim... vamos conseguir salvá-lo.
Morgan...
Ele precisa ficar perto de mim. Ele me prometeu!
Caminho vacilando. É com muito esforço que consigo manter o equilíbrio.
Estou quase caindo de novo, mas alguma coisa me segura. São dois braços. Olho
para eles. Não pertencem a Morgan.
Levanto a cabeça e vejo um rosto.
— Meu Deus, Alma! Quem fez isso com você... Alma! É o Adam. Ouço os sons
misturados, dentro e fora. Tudo roda à minha volta numa velocidade inacreditável e
me sinto perdida no centro do nada.
— Adam... quem? — pergunto, olhando para a frente.
Não consigo ver nada. Só uma grande sombra.
A trilogia Escuridão continua em “LUZ”.
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