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COTT NÃO ACREDITAVA EM FANTASMAS. HOMENS MORTOS continuavam

em suas covas. Mas os túneis que cruzavam por debaixo do Parque de Diversões

Delphic, ecoando com sons farfalhantes e sussurrados, faziam com que ele

repensasse isso. Ele não gostava da sua mente voltar a Harrison Grey. Não queria

ser lembrado de seu papel no assassinato de um homem. Umidade pingava do teto

rebaixado e Scott pensou em sangue. O fogo de sua tocha lançava sombras

volúveis nas paredes, que cheiravam a terra fria e fresca. Ele pensou em covas.

Um ar gélido fez cócegas em sua nuca. Sobre seu ombro, ele lançou um olhar

longo e desconfiado à escuridão.

Ninguém sabia que ele tinha jurado a Harrison Grey proteger Nora. Já que não

podia dizer “Ei, cara, desculpa ter feito você ser morto” em pessoa, ele recorreu a

jurar proteger a filha de Harrison. Em se tratando de pedidos decentes de

desculpas, este não era um deles, não mesmo, mas foi a melhor coisa em que

conseguiu pensar. Scott não tinha certeza nem se um juramento feito a um homem

morto tinha algum peso.

Mas os sons ocos atrás de si o faziam pensar que sim.

— Você vem?

Scott só conseguia distinguir o contorno escuro dos ombros de Dante a sua frente.

— Quanto tempo mais?

— Cinco minutos. — Dante deu risada. — Com medo?

— Paralisado. — Scott correu para alcançá-lo. — O que acontece na reunião?

Nunca estive em uma antes — acrescentou, esperando não soar tão estúpido

quanto se sentia.

— Os chefões querem encontrar a Nora. Ela é a líder deles agora.

— Então os Nephilim aceitaram que Mão Negra está morto? — O próprio Scott não

acreditava plenamente nisso. Mão Negra deveria ser imortal. Todos os Nephilim

eram. Então, quem havia encontrado uma maneira de matá-lo?

Scott não gostava da resposta que sua mente lhe fornecia. Se Nora havia feito

isso... se Patch havia ajudado-a...

Não importava se eles haviam sido cuidadosos ao cobrir seus rastros. Eles teriam

deixado algo passar. Todo mundo sempre deixava. Era apenas questão de tempo.

Se Nora havia assassinado Mão Negra, ela estava em perigo.

— Eles viram o meu anel — respondeu Dante.

Scott também havia visto. Mais cedo. O anel enfeitiçado havia chamuscado como

se tivesse fogo azul preso debaixo da coroa. Mesmo agora ele brilhava um azul

entre o frio e o morto. De acordo com Dante, Mão Negra havia profetizado que

esse seria o sinal de sua morte.

— Já encontraram o corpo?

— Não.

— E eles não veem problema em Nora liderá-los? — pressionou Scott. — Ela não é

nada como Mão Negra.

— Ela fez um juramento de sangue para ele ontem à noite. Entrou em vigor no

instante em que ele morreu. Ela é a líder deles, mesmo que não gostem disso.

Podem substituí-la, mas vão testá-la primeiro e tentar descobrir por que Hank a

escolheu.

Scott não gostou nada disso.

— E se a substituírem?

Dante lançou um olhar sombrio por cima dos ombros.

— Ela morre. Esta é a condição do juramento.

— Não vamos deixar isso acontecer.

— Não.

— Então está tudo bem. — Scott precisava de confirmação de que Nora estava a

salvo.

— Contanto que ela coopere.

Scott relembrou-se da justificativa que Nora deu hoje mais cedo. Vou me encontrar

com os Nephilim. E deixarei a minha posição clara: Hank pode ter começado esta

guerra, mas eu vou terminar. E esta guerra vai acabar com um cessar-fogo. Não

ligo se isso não é o que eles querem escutar. Ele apertou a ponte do nariz; tinha

muito trabalho a fazer.

Scott continuou caminhando com dificuldade, mantendo os olhos atentos a fim de

evitar poças. Elas ondulavam como caleidoscópios oleosos, e a última em que tinha

pisado por acidente havia encharcado-o até o tornozelo.

— Eu disse a Patch que não a deixaria fora de vista.

Dante resmungou.

— Tem medo dele também?

— Não. — Mas ele tinha. Dante também teria, se conhecesse Patch direito. — Por

que ela não pôde vir com a gente para a reunião? — A decisão de ficar separado

de Nora o deixava desconfortável. Ele se amaldiçoou por não ter discordado disso

mais cedo.

— Não sei por que fazemos metade das coisas que fazemos. Somos soldados.

Recebemos ordens.

Scott se lembrou das últimas palavras que Patch disse a ele. Ela está sob sua

vigilância. Não estrague tudo. A ameaça havia penetrado em sua pele. Patch achava

que era o único que se importava com Nora, mas não era. Nora era a coisa mais

próxima de uma irmã que Scott tinha. Ela o tinha defendido quando ninguém mais

o fez, e o havia afastado de um precipício. Literalmente.

Eles tinham uma ligação, mas não aquele tipo de ligação. Ele se importava mais

com Nora do que com qualquer outra garota que já havia conhecido. Ela era

responsabilidade sua. Era algo tão importante que ele havia jurado isso ao pai

morto dela.

Ele e Dante se enfiaram ainda mais nos túneis, com as paredes apertando-se em

volta de seus ombros. Scott se virou de lado para passar, com dificuldade, até a

próxima travessia. Pedaços de terra se soltavam das paredes, e ele segurou a

respiração, meio que esperando o teto desmoronar em uma onda grande que os

enterrasse.

Por fim, Dante puxou uma aldrava, e uma porta se materializou na parede.

Scott inspecionou o cômodo cavernoso. Mesmas paredes de terra, mesmo chão de

pedra. Vazio.

— Olhe embaixo. Alçapão — disse Dante.

Scott saiu de cima da porta da escotilha e puxou a maçaneta com força. Vozes

acaloradas foram carregadas até a abertura. Contornando a escada, ele desceu pelo

buraco, caindo três metros abaixo.

Avaliou o cômodo lotado e cavernoso em um instante. Homens e mulheres

Nephilim usando mantos pretos com capuz formavam um círculo fixo ao redor de

duas pessoas que ele não conseguia ver direito. Uma fogueira crepitava na lateral.

Um ferrete mergulhado em carvão incandescia laranja com o calor.

— Responda — uma voz antiga e forte no centro do círculo repreendeu. — Qual a

razão do seu relacionamento com o anjo caído a quem chamam Patch? Está

preparada para liderar os Nephilim? Precisamos saber que temos sua lealdade

completa.

— Não tenho que responder — Nora, a outra pessoa, atacou de volta. — Minha

vida pessoal não é da sua conta.

Scott caminhou até o círculo, melhorando sua visão.

— Você não tem vida pessoal — sibilou a mulher velha e de cabelos brancos com a

voz forte, golpeando Nora com um dedo frágil, seu queixo duplo e mole tremendo

de raiva. — Seu único propósito agora é liderar seu povo e libertá-los dos anjos

caídos. Você é a herdeira de Mão Negra, e embora eu não deseje ir contra os

desejos dele, eu votarei pela sua expulsão se precisar.

Scott olhou desconfortavelmente os Nephilim cobertos. Diversos assentiram,

concordando.

Nora, ele a chamou, falando com sua mente. O que está fazendo? O juramento de

sangue. Você tem que permanecer no poder. Diga o que for preciso. Apenas

acalme-os.

Nora olhou em sua volta com uma hostilidade cega até seus olhos encontrarem os

dele. Scott?

Ele assentiu, encorajando-a. Estou aqui. Não se alarme. Mantenha-os felizes. Depois

eu vou te tirar daqui.

Ela engoliu em seco, visivelmente tentando se recompor, mas suas bochechas

ainda queimavam com uma cor de escandalizada.

— Mão Negra morreu na noite passada. Desde então eu fui nomeada sua herdeira,

empurrada em posição de liderança, movida de uma reunião para a outra, forçada

a cumprimentar pessoas que não conheço, ordenada a usar este manto sufocante,

interrogada em uma miríade de assuntos pessoais, cutucada e espetada, avaliada e

julgava, e tudo isso sem um instante para recuperar meu fôlego. Então me

perdoem se ainda vacilo.

Os lábios da velha se comprimiram em uma linha fina, mas ela não discutiu.

— Eu sou a herdeira de Mão Negra. Ele me escolheu. Não se esqueçam — disse

Nora, e embora Scott não soubesse dizer se ela falava com convicção ou escárnio,

o efeito foi silenciador.

— Responda uma coisa — disse a velha astutamente, após uma pausa pesada. — O

que foi feito de Patch?

Antes que Nora pudesse responder, Dante deu um passo à frente.

— Ela não está mais com o Patch.

Nora e Scott olharam aguçadamente um para o outro, e então para Dante. O que

foi isso? Nora exigiu de Dante na conversa mental, incluindo Scott no papo a três.

Se eles não te deixarem liderar agora mesmo, você vai cair mortinha por causa do

juramento de sangue, respondeu Dante. Deixe que eu lido com isso.

Mentindo?

Tem uma ideia melhor?

— Nora quer liderar os Nephilim — falou Dante em voz alta. — Ela fará o que for

preciso. Terminar o trabalho de seu pai significa tudo para ela. Deem-lhe um dia

para ficar de luto, e ela vai cair de boca no trabalho, completamente

comprometida. Eu a treinarei. Ela pode fazer isso. Deem-lhe uma chance.

— Você vai treiná-la? — a velha perguntou a Dante com um olhar penetrante.

— Isso vai funcionar. Confie em mim.

A senhora ponderou por um longo instante.

— Marquem-na com a marca de Mão Negra — ela ordenou, por fim.

O olhar selvagem e assustador nos olhos de Nora quase fez com que Scott se

dobrasse e vomitasse.

Os pesadelos. Eles apareciam do nada, dançando em sua cabeça. Rápidos.

Vertiginosos. E então veio a voz. A voz de Mão Negra. Scott pôs as mãos na orelha,

recuando. A voz maníaca cacarejava e sibilava até que as palavras ficaram todas

juntas e soaram como uma colmeia de abelhas chutada. A marca de Mão Negra,

queimada em seu peito, pulsava. Uma dor recente. Ele não conseguia diferenciar

entre ontem e agora.

Sua garganta foi desobstruída com um comando.

— Parem.

O cômodo pareceu hesitar. Corpos se deslocaram, e de repente Scott sentiu-se

esmagado por olhares hostis.

Ele pestanejou com força. Não conseguia pensar. Tinha que salvá-la. Ninguém

esteve por perto para impedir Mão Negra de marcá-lo. Scott não deixaria a mesma

coisa acontecer com Nora.

A velha andou até Scott, seus saltos batendo no chão com uma cadência vagarosa

e deliberada. Sulcos profundos cortavam a pele dela. Olhos verdes aguados

espiavam de órbitas afundadas.

— Não acha que ela pode mostrar lealdade dando o exemplo? — Um sorriso fraco

e desafiador curvou os lábios dela.

O coração de Scott martelava.

— Faça-a demonstrar isso através de ações. — As palavras simplesmente saíram.

A mulher inclinou a cabeça para um lado.

— O que quer dizer?

Ao mesmo tempo, a voz de Nora deslizou para dentro de sua cabeça. Scott? disse

ela, nervosa.

Ele rezou para não estar piorando as coisas e lambeu os lábios.

— Se Mão Negra quisesse que ela fosse marcada, ele mesmo teria feito isso. Ele

confiava nela o bastante para lhe dar este cargo. Isso basta para mim. Podemos

passar o resto do dia testando ela, ou podemos começar essa guerra de uma vez. A

nem trinta metros acima das nossas cabeças tem uma cidade de anjos caídos.

Traga um até aqui. Eu mesmo farei isso. Marque-o. Se quiser que anjos caídos

saibam que falamos a sério sobre a guerra, vamos lhes mandar uma mensagem. —

Ele conseguia ouvir sua própria respiração irregular.

Um sorriso lento aqueceu o rosto da velha.

— Oh, gosto disso. Muitíssimo. E quem é você, querido?

— Scott Parnell. — Ele puxou para baixo o colarinho de sua camiseta. Seu dedão

roçou a pele distorcida que formava sua marca, um punho fechado. — Vida longa à

visão de Mão Negra. — As palavras tinham gosto de bile em sua boca.

Colocando seus dedos finos nos ombros de Scott, a mulher se inclinou para frente

e beijou cada uma das bochechas dele. Sua pele era úmida e fria como a neve.

— E eu sou Lisa Martin. Conhecia Mão Negra muito bem. Vida longa ao seu

espírito, em todos nós. Traga-me um anjo caído, jovem, e nos deixe mandar uma

mensagem aos nossos inimigos.

Acabou logo.

Scott tinha ajudado a acorrentar um anjo caído, um garoto magrelo chamado

Baruch que parecia ter 15 anos humanos. O maior medo de Scott era de que eles

esperassem que Nora marcasse o anjo caído, mas Lisa Martin tinha levado-a para

uma antecâmara privada.

Um Nephil encapuzado havia colocado o ferrete nas mãos de Scott. Ele olhou a

placa de mármore e o anjo caído algemado a ela. Ignorando os votos praguejantes

de vingança de Baruch, Scott repetiu as palavras que o Nephil encapuzado ao seu

lado murmurava em seu ouvido (um bando de besteira comparando Mão Negra a

uma divindade) e pressionou o ferro quente no peito nu do anjo caído.

Agora Scott estava curvado contra a parede do túnel do lado de fora da

antecâmara, esperando Nora. Se ela ficasse ali mais que cinco minutos, ele iria atrás

dela. Ele não confiava em Lisa Martin. Não confiava em nenhum dos Nephilim

encapuzados. Estava claro que eles faziam parte de uma sociedade, e Scott

aprendeu de maneira difícil que nada bom provinha de segredos.

A porta foi aberta. Nora saiu, e então jogou seus braços ao redor do pescoço dele e

se segurou firmemente. Obrigada.

Ele a segurou até ela parar de tremer.

Ossos do ofício, ele provocou, tentando acalmá-la da melhor maneira que podia.

Vou colocar a cobrança no correio.

Ela fungou, rindo.

— Dá pra ver que eles estavam muito empolgados em me ter como nova líder.

— Eles estão chocados.

— Chocados que Mão Negra deixou o futuro deles em minhas mãos. Viu o rosto

deles? Achei que fossem começar a choramingar. Ou isso ou jogar vegetais em

mim.

— Então, o que você vai fazer?

— Hank está morto, Scott. — Ela olhou diretamente para ele, e então secou seus olhos

passando os dedos por debaixo deles, e ele viu um relampejo de algo em sua expressão,

algo que não conseguiu decifrar. Garantia? Confiança? Ou, talvez, uma confissão direta. —

Eu vou comemorar.

CAPÍTULO

1

Eu não sou uma garota festeira. Música de estourar os ouvidos, corpos em

movimento, sorrisos embriagados... nada a ver comigo. Meu sábado a noite ideal

seria ficar em casa aninhada no sofá assistindo uma comédia romântica com meu

namorado, Patch.

Previsível, contida... normal. Meu nome é Nora Grey, e embora eu costumasse ser

uma adolescente americana normal, comprando minhas roupas em liquidação na J.

Crew e gastando meu dinheiro de babá com o iTunes, eu e a normalidade nos

tornamos perfeitas estranhas recentemente. Na verdade, eu não reconheceria algo

normal nem SE marchasse até mim e cutucasse o meu olho.

A normalidade e eu nos distanciamos quando Patch entrou na minha vida. Patch é

dezoito centímetros mais alto que eu, só trabalha com uma lógica fria e dura, se

movimenta como fumaça, e mora sozinho em um estúdio supersecreto e

superdescolado embaixo do Parque de Diversões Delphic.

O som da sua voz, grave e sexy, derrete meu coração em apenas três segundos. Ele

também é um anjo caído, expulso do céu por sua flexibilidade em seguir regras.

Pessoalmente, eu acho que o Patch deu um baita de um susto na normalidade, e

ela saiu correndo para o outro lado do planeta.

Posso não ter normalidade, mas tenho uma estabilidade. Em especial na forma da

minha melhor amiga há doze anos, Vee Sky. Vee e eu temos uma ligação inabalável

que até mesmo uma lista infindável de diferenças não pode quebrar. Dizem que os

opostos se atraem, e Vee e eu so-mos prova da legitimidade disso. Eu sou alta e

magra com um grande cabelo cacheado que testa a minha paciência, e tenho

personalidade tipo A1

1 Indivíduos do tipo A são ambiciosos, organizados, podem ser sensíveis, se importam com outras

pessoas, são verdadeiros, impacientes, sempre tentam ajudar os outros, fazem mais coisas do que são

capazes, são proativos. São, muitas vezes, workaholics, fazendo muitas tarefas ao mesmo tempo, e se

esforçam para cumprir prazos, odiando tanto atrasos como ambivalência.

Vee é ainda mais alta, com cabelo loiro-acinzentado, olhos verdes serpentinos, e

mais cur-vas do que o trilho de uma montanha-russa. Quase sempre os desejos da

Vee triunfam sobre os meus. E, ao contrário de mim, Vee adora uma boa festa. Hoje

à noite, o desejo de Vee de procurar uma boa festa nos levou para o outro lado da

cidade até um depósito feito de tijolos de quatro andares, bombando com música

de balada, inundado de identidades falsas e abarrotado de corpos produzindo suor

o bastante para elevar os gases do efeito estufa a um novo nível. A distribuição do

local era padrão: uma pista de dança imprensada entre um palco e um bar. Havia

boatos de que uma porta secreta atrás do bar dava a um porão, e o porão te levava

a um homem chamado Storky, que operava um negócio de falsificações de

sucesso. Líderes das comunidades religiosas ameaçavam fechar o viveiro de

iniquidade de adolescentes desordeiros... também conhecido como Devil’s

Handbag.

— Requebra, baby — Vee gritou para mim por cima do thump, thump, thump sem

sentido da música, entrelaçando seus dedos nos meus e balançando nossas mãos

sobre as cabeças. Estávamos no centro da pista de dança, sendo empurradas e

trombadas de todos os lados. — É assim que um sábado à noite tem que ser. Nós

duas remexendo, nos soltando, liberando o bom e velho suor das garotas.

Fiz o meu melhor para dar um aceno de entusiasmo, mas o cara atrás de mim

ficava pisan-do no calcanhar da minha sapatilha de bailarina, e, a intervalos de

cinco segundos, eu tinha que enfiar meu pé nele. A garota à minha direita dançava

com os cotovelos para fora e, se eu não fos-se cuidadosa, eu sabia que seria

esmurrada no ombro.

— Talvez devêssemos pegar umas bebidas — eu disse para Vee. — Parece que

estamos na Flórida.

— É porque eu e você estamos incendiando este lugar. Dá uma olhada naquele

cara no bar. Ele não tira os olhos dos seus movimentos sensuais. — Ela lambeu os

dedos e os apertou contra meu ombro nu, fazendo um som escaldante.

Eu segui o olhar dela... e meu coração afundou.

Dante Matterazzi levantou o queixo, me cumprimentando. Seu próximo gesto foi

um pouco mais sutil.

Nunca imaginei que você dança, ele falou na minha mente.

Engraçado, eu imaginei que você persegue pessoas, eu atirei de volta.

Dante Matterazzi e eu pertencíamos à raça Nephilim, por isso a habilidade inata de

conversar mentalmente, mas as similaridades paravam por aí. Dante não sabia

deixar nada pra lá, e eu não sabia por quanto mais tempo eu conseguiria evitá-lo.

Eu o tinha conhecido pela primeira vez esta manhã mesmo, mas ele agia como se o

nosso relacionamento datasse de anos, no mínimo.

Deixei uma mensagem no seu celular, ele disse.

Nossa, não devo ter recebido. Mais para eu deletei.

Precisamos conversar.

Estou meio ocupada Para enfatizar meu argumento, eu girei meus quadris e

balancei os braços de um lado para o outro, fazendo o meu melhor para imitar Vee,

cujo canal de TV favorito era o BET2, o que ela deixava bem claro. Ela tinha hip-hop

carimbado em sua alma.

2 BET, sigla de Black Entertainment Television, é um canal de TV a cabo cujo público-alvo são os

afrodescendentes. A programação do canal consiste música, filmes e seriados populares.

Um fraco sorriso elevou a boca de Dante.

Enquanto faz isso, peça para sua amiga te dar umas dicas. Você está toda

atrapalhada. Definitivamente um peixe fora d’água. Encontre-me lá fora em dois

minutos.

Eu olhei feio para ele.

Ocupada, lembra?

Isso não pode esperar.

Com uma arqueada significativa das sobrancelhas, ele desapareceu na multidão.

— Quem perdeu foi ele — Vee disse. — Não aguentou o calor. — Quanto àquelas

bebidas — eu disse. — Posso te trazer uma Coca? — Vee não parecia pronta para

desistir de dançar tão cedo, e por mais que eu quisesse evitar Dante, imaginei que

fosse melhor simplesmente acabar com isso logo de uma vez. Engolir o sapo e

conversar com ele. A alternativa era ter ele de sombra pelo resto da noite.

— Coca com limão — Vee disse.

Saí da pista de dança pelas beiradas e, depois de me certificar que Vee não estava

me observando, abaixei-me por um corredor lateral e saí pela porta dos fundos. O

beco estava banhado pela luz do luar. Um Porsche Panamera vermelho estava

estacionado na minha frente, e Dante se inclinava contra ele, seu braço dobrado

frouxamente sobre o peito.

Dante tem 2,05m, o físico de um soldado recém-saído do treinamento de recrutas.

Só para exemplificar: ele tem mais músculos tonificados no pescoço do que eu

tenho no meu corpo todo. Hoje à noite ele estava usando calça cáqui solta e uma

camisa de linho branca desabotoada até a metade do peito, revelando um trecho

em V de pele suave e sem pelos. Exibido.

— Belo carro — eu disse.

— Dá conta do recado.

— Assim como o meu Volkswagen, que custou consideravelmente menos.

— É preciso mais que quatro rodas para ser um carro.

Ugh.

— Então — eu disse, batendo o pé. — O que é tão urgente?

— Ainda está namorando aquele anjo caído?

Era apenas a terceira vez em três horas que ele me perguntava isso. Duas vezes por

mensagem, e agora cara a cara. Meu relacionamento com Patch tinha passado por

muitos altos e baixos, mas a direção atual era positiva. Ainda tínhamos nossos

problemas, contudo. Em um mundo onde Nephilim e anjos caídos prefeririam

morrer a sorrir um para o outro, namorar um anjo caído definitivamente estava fora

de questão.

Eu me endireitei um pouco mais e disse:

— Você sabe.

— Está tomando cuidado?

— Discrição é meu lema. — Patch e eu não precisávamos que Dante nos dissesse

que era sensato não fazermos muitas aparições públicas juntos. Nephilim e anjos

caídos nunca precisaram de uma desculpa para ensinar uma lição uns aos outros, e

as tensões raciais entre os dois grupos estavam esquentando mais a cada dia que

passava. Era outono, outubro, para ser exata, e o mês judaico do Cheshvan era em

alguns dias.

A cada ano, durante o Cheshvan, anjos caídos possuíam multidões de corpos

Nephilim. Anjos caídos têm passe livre para fazer o que bem entenderem, e já que

essa era única vez durante o ano em que eles realmente conseguiam sentir

sensações físicas, a criatividade deles não conhecia limites. Eles vão atrás de prazer,

dor, e tudo entre os dois, brincando de parasitar seus hospedeiros Nephilim. Para

os Nephilim, o Cheshvan é uma prisão infernal.

Se Patch e eu fôssemos vistos apenas de mãos dadas pelos indivíduos errados, nós

pagaríamos, de um jeito ou de outro.

— Vamos falar sobre a sua imagem — disse Dante. — Precisamos gerar uma

atenção positiva sobre o seu nome. Levantar a confiança dos Nephilim em você.

Eu estalei os dedos teatricalmente.

— Não odeia quando a sua taxa de aprovação está baixa?

Dante franziu o rosto.

— Isso não é piada, Nora. Cheshvan começa em pouco mais de 72 horas, e isso

significa guerra. Anjos caídos de um lado, nós do outro. Tudo está em suas mãos,

você é a líder do exército Nephilim.

Uma náusea instalou-se no meu estômago. Eu não tinha exatamente solicitado o

cargo. Graças ao meu falecido pai, um homem verdadeiramente doente, eu tinha

sido forçada a herdar o posto. Fiz um juramento de sangue a fim de liderar seu

exército, e a falha em fazê-lo resultaria na minha morte, e na morte da minha mãe.

Sem pressão alguma.

— Apesar das nossas precauções, há boatos de que está namorando um anjo

caído, e que sua lealdade está dividida.

— Eu estou namorando um anjo caído.

Dante revirou os olhos.

— Acha que pode dizer isso mais alto?

Eu dei de ombros. Se for isso que realmente quer. Então eu abri a boca, mas Dante

estava ao meu lado em um instante, cobrindo-a.

— Eu sei que isso te mata, mas você poderia facilitar o meu trabalho só desta vez?

— ele murmurou no meu ouvido, olhando ao redor para as sombras com uma

inquietação óbvia, mesmo eu tendo certeza de que estávamos sozinhos. Eu só era

uma Nephilim pura há 24 horas, mas confiava no meu novo e afiado sexto sentido.

Se houvesse algum bisbilhoteiro a espreita, eu saberia.

— O que você tem em mente? — perguntei quando ele baixou a mão.

— Namore Scott Parnell.

Scott Parnell tinha sido o primeiro Nephilim com quem eu fiz amizade, na tenra

idade de cinco anos. Eu não soubera nada sobre sua verdadeira identidade naquela

época, mas nos últimos meses ele tinha tomado o posto, primeiramente, de meu

algoz, então de meu parceiro no crime, e, eventualmente, de meu amigo. Não havia

segredos entre nós. Igualmente, não havia romance ou química.

Eu dei risada.

— Assim você me mata, Dante.

— Seria apenas para mostrar. Pelo bem das aparências — ele explicou. — Só até a

nossa raça começar a gostar de você. Você só é Nephilim há um mísero dia.

Ninguém te conhece. As pessoas precisam de uma razão para gostar de você.

Temos que deixá-los confortáveis para confiarem em você.

— Não posso namorar o Scott — disse a Dante. — A Vee gosta dele.

Dizer que Vee tem sido azarada no amor seria otimismo. Nos últimos seis meses

ela, se apaixonou por um predador narcisista e por um traidor asqueroso. Não era

surpresa alguma seus dois relacionamentos a terem feito duvidar seriamente de

seus instintos amorosos. Ela tem, inequivocamente, se recusado até mesmo a sorrir

para o sexo oposto... isso até Scott chegar. No começo da noite passada, poucas

horas antes de meu pai ter me coagido a me transformar em um Nephilim pura

para que eu pudesse controlar seu exército, Vee e eu tínhamos ido ao Devil’s

Handbag para ver Scott tocar baixo em sua nova banda, a Serpentine, e ela não

tinha parado de falar sobre ele. Aparecer e roubar Scott agora, mesmo que fosse

um truque, seria o maior dos golpes baixos.

— Não seria de verdade — repetiu Dante, como se isso tornasse tudo formidável.

— Vee ficaria sabendo disso?

— Não exatamente. Você e Scott teriam de ser convincentes. Seria desastroso que

isso va-zasse, então gostaria de limitar a verdade entre nós três.

Eu fiz aquele negócio de colocar as mãos no quadril, tentando ser firme e inflexível.

— Então você vai precisar escolher outra pessoa. — Eu não estava enamorada pela

ideia de fingir namorar um Nephilim para elevar minha popularidade. De fato,

parecia um desastre prestes a acontecer, mas eu queria deixar essa bagunça para

trás. Se Dante achava que um namorado Nephilim me daria mais credibilidade,

então que fosse. Não seria de verdade. Obviamente que Patch não ficaria animado,

mas um problema por vez, certo?

A boca de Dante se comprimiu em uma linha, e ele fechou os olhos brevemente.

Invocando paciência.

— Ele precisa ser respeitado na comunidade Nephilim disse Dante pensativamente,

por fim. — Alguém com quem os Nephilim possam imaginar a líder deles.

Fiz um gesto de impaciência.

— Ótimo. Só jogue outra pessoa que não o Scott em cima de mim.

— Eu.

Eu recuei.

— Perdão. O quê? Você? — Eu estava chocada demais para cair na gargalhada.

— Por que não? — perguntou Dante.

— Quer mesmo que eu comece a enumerar os motivos? Porque poso ficar aqui

com você a noite toda. Para começo de conversa, você tem namorada... qual é

mesmo o nome dela? Melinda? Marianne?

— Marina.

Eu fiz um gesto de tanto faz.

— Você também é, pelo menos, cinco anos mais velho do que eu em anos

humanos (um banquete completo para escândalos), não tem senso de humor, e...

ah é. A gente não se suporta.

— Sou o seu primeiro tenente...

— Porque o babaca do meu pai biológico te deu esta posição. Eu não tive escolha.

Dante não pareceu me ouvir.

— Nós nos conhecemos e sentimos uma ligação instantânea. É uma história que

todos acreditarão. — Ele sorriu. — Muita publicidade positiva.

— Se disser a palavra com P mais uma vez, eu vou... fazer algo drástico. — Como

dar um soco nele. E então me bater por ter considerado mesmo esse plano.

— Não seja precipitada — disse Dante. — Pense sobre isso.

— Estou pensando. — Contei até três nos dedos. — Beleza, feito. Péssima ideia.

Uma ideia realmente péssima. Eu digo não.

— Tem uma ideia melhor?

— Sim, mas eu vou precisar de um pouco de tempo para pensar em uma.

— Claro. Sem problemas, Nora. — Ele contou até três nos dedos. — Beleza, tempo

esgotado. Preciso de um nome amanhã cedo. Caso não tenha sido dolorosamente

óbvio, sua reputação está escorrendo pelo ralo. A notícia da morte do seu pai e da

sua subsequente nova posição de liderança está se espalhando como fogo. As

pessoas estão falando sobre isso, e o que elas dizem não é bom. Precisamos que os

Nephilim acreditem em você. Precisamos que eles confiem que você está pensando

nos interesses deles, e que você pode terminar o trabalho do seu pai e nos libertar

das amarras dos anjos caídos daqui a três dias. Precisamos que eles te apoiem, e

vamos mostrar-lhes uma ótima razão atrás da outra. Começando com um

namorado Nephilim respeitado.

— Ei, gata, tudo bem por aqui?

Dante e eu nos viramos. Vee estava na entrada da porta, nos olhando com

quantidades i-guais de cautela e curiosidade.

— Ei, está tudo bem — disse, um pouquinho entusiasmada demais. — Você não

voltou mais com as nossas bebidas, e comecei a ficar preocupada — disse Vee. Seu

olhar se deslocou de mim para Dante. Reconhecimento cintilou em seus olhos, e eu

percebi que ela se lembrava dele do bar. — Quem é você? — ela perguntou a ele.

— Ele? — eu interrompi. — Ah. Uh. Bem, ele é apenas um cara qualquer...

Dante deu um passo a frente, sua mão estendida.

— Dante Matterazzi. Sou um amigo da Nora. Nós nos conhecemos há alguns dias

quando um amigo em comum, Scott Parnel, nos apresentou.

Do nada, o rosto de Vee se iluminou.

— Você conhece Scott?

— É um bom amigo, na verdade.

— Qualquer amigo do Scott é meu amigo também.

Internamente, arranquei meus olhos.

— Então, o que você dois estão fazendo aqui? — Vee perguntou a nós dois.

— Dante acabou de comprar um carro novo — eu disse, indo para o lado para

fornecer uma visão desobstruída do Porsche. — Ele não resistiu e veio se exibir.

Mas não olhe com muita atenção. Acho que está faltando o número da placa.

Dante teve que recorrer ao roubo, já que gastou todo o dinheiro depilando o peito

esta manhã, mas nossa, como resplandece.

— Engraçadinha — disse Dante, e eu pensei que ele fosse abotoar no mínimo mais

um bo-tão da camisa, mas não.

— Se eu tivesse um carro desses, eu iria me exibir também — disse Vee.

Dante falou:

— Eu tentei convencer a Nora a dar uma volta, mas ela fica me dando fora.

— É porque ela tem um namorado durão. Ele deve ter sido educado em casa,

porque perdeu todas aquelas lições valiosas que aprendemos no jardim de infância

sobre como compartilhar. Se ele descobrir que você levou a Nora para dar uma

voltinha, ele vai amarrar esse Porsche brilhante na árvore mais próxima.

— Nossa — eu disse — olha só que horas são. Não tem que estar em outro lugar,

Dante?

— Na verdade, minha noite está vaga. — Ele sorriu, devagar e relaxado, e eu sabia

que ele estava saboreando cada instante em que invadia a minha vida particular. Eu

deixei claro que qualquer contanto entre nós tinha que ser em particular, e ele

estava me mostrando o que pensava sobre as minhas “regras”. Em uma tentativa

patética de igualar o placar, eu lancei a ele meu olhar mais malvado e gelado.

— Está com sorte — disse Vee. — Sabemos exatamente como preencher a sua

noite. Você vai passear com as duas garotas mais legais de Coldwater, Sr. Dante

Matterazzi.

— Dante não dança — eu interrompi rapidamente.

— Abro uma exceção, só desta vez — ele respondeu, abrindo a porta para nós.

Vee bateu palmas, pulando para cima e para baixo.

— Eu sabia que esta noite ia ser de arrebentar! — ela guinchou, passando sob o

braço de Dante.

— Depois de você — disse Dante, colocando a palma da mão na parte inferior das

minhas costas e me guiando para dentro. Eu dei um tapa na mão dele, mas, para

meu desprazer, ele se inclinou mais para perto e murmurou:

— Que bom que tivemos essa conversinha.

Não resolvemos nada, eu falei para a mente dele. Esse negócio todo de namorado

e namorada? Nada foi firmado. Só uma coisinha para você ter em mente. E que

fique registrado: minha melhor amiga não deveria saber que você existe. Sua

melhor amiga acha que eu deveria botar seu namorado para correr, ele disse,

parecen-do se divertir. Ela acha que qualquer coisa com um coração batendo

deveria substituí-lo. Eles têm assuntos inacabados.

Parece promissor.

Eles me seguiu pelo pequeno corredor que levava até a pista de dança, e eu senti

seu sorriso arrogante e açulante pelo caminho todo.

Está em menor número, Nora. Só uma coisinha para você ter em mente.

A batida alta e monótona da música perfurou meu crânio como se fossem

marteladas. Apertei a ponte do meu nariz, recuando diante de uma dor de cabeça a

caminho. Eu estava com um dos cotovelos apoiado no bar, e usei minha mão livre

para pressionar um copo de água gelada contra minha testa.

— Já está cansada? — perguntou Dante, deixando Vee na pista de dança e

deslizando na banqueta do bar ao meu lado.

— Faz ideia de quanto mais tempo ela ainda aguenta? — eu perguntei.

— Parece que ela recarregou as baterias.

— Da próxima vez que for comprar uma melhor amiga, me lembre de me afastar

das animadinhas. Ela não para nunca...

— Parece que você precisa de uma carona para casa.

Eu balancei a cabeça.

— Eu vim dirigindo, mas não posso deixar a Vee aqui. Falando sério, quanto tempo

mais ela pode durar? — Obviamente, eu vinha me fazendo essa mesma pergunta

pelos últimos trinta minutos.

— Vou te dizer uma coisa. Vá para casa. Eu fico com a Vee. Quando ela finalmente

se cansar, eu lhe dou uma carona de volta para casa.

— Achei que você não ia se envolver na minha vida pessoal. — Tentei soar

carrancuda, mas eu estava exausta, e a convicção simplesmente não transparecia.

— Sua regra, não minha.

Eu mordi o lábio.

— Talvez só desta vez. Afinal de contas, Vee gosta de você. E você realmente tem

vigor para continuar dançando com ela. Quero dizer, isso é bom, não é?

Ele cutucou a minha perna.

— Pare de racionalizar tudo e vá logo embora daqui.

Para minha surpresa, eu suspirei de alívio.

— Obrigada, Dante. Te devo uma.

— Pode me retribuir amanhã. Precisamos terminar a nossa conversa.

E, bem assim, qualquer sentimento benevolente desapareceu. Mais uma vez, Dante

era a pedra no meu sapato, insistindo em incomodar.

— Se algo acontecer a Vee, você será o culpado.

Com isso, eu fui embora.

Era uma noite sem nuvens, e a lua era de um azul assombroso contra o negro da

noite. Enquanto eu andava até o meu carro, música do Devil’s Handbag ecoava

como um ruído distante. Eu inalei o ar gélido de outubro. Só com isso minha dor

de cabeça já subsidia. Meu celular tocou.

— Como foi a noite das garotas? — Patch perguntou.

— Se eu fizesse as vontades da Vee, ficaríamos aqui a noite toda. — Eu retirei meus

sapatos de salto alto e os pendurei nos dedos, preferindo andar descalça. — Só

consigo pensar em ir para cama.

— Partilhamos o mesmo pensamento.

— Está pensando em ir para cama também?

— Estou pensando em você na minha cama.

Meu estômago teve uma daquelas palpitações. Eu tinha passado a noite na casa do

Patch pela primeira vez ontem, e apesar da atração e da tentação terem estado,

definitivamente, presentes, nós terminamos dormindo em quartos separados. Eu

não estava certa até que ponto eu queria levar a nossa relação, mas meu instinto

dizia que Patch não estava tão indeciso.

— Minha mãe está acordada me esperando — eu disse. — Má hora. — Falando em

má hora, sem querer eu me lembrei da minha conversa mais recente com Dante. —

Podemos nos encontrar amanhã? Precisamos conversar.

— Isso não parece bom.

Eu mandei um beijo pelo celular.

—Senti saudades de você hoje à noite.

— A noite ainda não terminou. Depois que eu acabar com isso aqui, eu podia

passar na sua casa. Deixe a janela do seu quarto destrancada.

— No que está trabalhando?

— Vigilância.

Franzi a testa.

— Que vago.

— Meu alvo está se movimentando. Tenho que me mandar — disse ele. — Vou

para lá assim que der.

Então desligou.

Eu andei pela calçada, me perguntando quem Patch vigiava, e por que (o negócio

todo parecia um pouquinho nebuloso), quando o meu carro, um Volkswagen

Cabriolet branco de 1984, apareceu no meu campo de visão. Joguei meus sapatos

no banco de trás e caí atrás do volante. Enfiei a chave na ignição, mas o motor não

se mexeu. Fez um som repetitivo de força e trepidação, e eu aproveitei a

oportunidade para pensar em algumas palavras inventivas e escolhidas a dedo

sobre o pedaço inútil de sucata.

O carro tinha parado em minhas mãos após uma doação de Scott Parnel, e tinha

me dado mais horas de pesar do que quilômetros rodados na estrada. Saltei para

fora do carro e abri o capô, olhando feio e especulativamente para o labirinto

seboso de mangueiras e contêineres; eu já tinha lidado com o alternador, o

carburador e as velas de ignição. O que faltava?

— Problemas com o carro?

Eu me virei, surpresa com o som da voz de um homem atrás de mim. Não havia

escutado ninguém se aproximar. Ainda mais alarmante, eu não havia sentido sua

presença.

— Aparentemente sim— disse.

— Precisa de ajuda?

— Basicamente só preciso de um carro novo.

Ele sorriu.

— Não sei se posso te ajudar nisso, mas posso dar uma carona gratuita até o seu

destino de escolha.

Mantive distância, minha mente girando de modo selvagem enquanto eu tentava

categorizá-lo. Meu instinto me dizia que ele não era humano. Tampouco Nephilim.

O engraçado era que eu também não achava que ele era anjo caído. Ele tinha um

rosto redondo e angelical, com cabelo loiro amarelado em aspecto de palha, e

orelhas de Dumbo que se projetavam ligeiramente para fora. Parecia tão

inofensivo, na verdade, que me deixou instantaneamente suspeita. Instantanea-

mente desconfortável. — Obrigada pela oferta, mas já liguei para o guincho.

Disseram que um cara vai aparecer aqui a qualquer minuto.

O sorriso dele mudou momentaneamente, adotando um ar afetado e sombrio.

— Está ficando boa em mentir, Nora. Acho que está pegando isso do seu

namorado.

Meu coração bateu mais rápido.

— Perdão, nós nos conhecemos?

— É meu trabalho conhecer seu namorado por dentro e por fora, de cima a baixo.

Onde ele vai, o que ele faz... quem ele beija. — Ele piscou, mas havia algo

inegavelmente traiçoeiro nisso.

Um pensamento aterrorizante tomou conta de mim. E se ele fosse um Nephilim e

eu não tivesse conseguido detectar isso? E se ele realmente soubesse sobre mim e

Patch? E se ele tinha me achado hoje à noite para passar uma mensagem: que

Nephilim e anjos caídos não se misturavam? Eu era uma Nephil nova, não era

páreo para ele se tivéssemos que recorrer à força física.

— Você pegou a garota errada — eu disse a ele. — Não tenho namorado. — Então

eu me virei, tentando ficar calma enquanto caminhava de volta para o Devil’s

Handbag.

— Diga a Patch que quero ter uma palavrinha com ele — o homem pronunciou

atrás de mim. — Diga que se ele não sair de seu esconderijo, eu vou sufocá-lo. Vou

queimar todo o Parque de Diversões Delphic se for necessário.

Olhei cautelosamente sobre meu ombro. Não sabia com o que Patch tinha se

metido, mas eu tinha um pressentimento desconfortável crescendo no meu

estômago. Quem quer que fosse este homem, ele falava sério, apesar de seus

traços angelicais.

Este homem se curvou sobre o Volkswagen, mexendo em algumas mangueiras

com dedos ágeis.

— Novinho em folha — anunciou, limpando as mãos. — Este pode ser o começo

de uma ótima parceria, Nora. Eu te ajudo, você me ajuda.

Eu o vi ir embora, misturando-se nas sombras, assobiando uma música que

mandou arrepios pela minha espinha.

CAPÍTULO

2

MEIA HORA DEPOIS, ESTACIONEI NA MINHA GARAGEM. Moro com minha mãe em

uma genuína casa de fazenda no Maine, com pintura branca, persianas azuis, e

coberta por um nevoeiro constante. Nesta época do ano, as árvores brilham em

tons ardentes de vermelho e dourado, e o ar contém os cheiros nítidos de seiva de

pinheiro, lenha queimando e folhas úmidas. Corri até os degraus da varanda, onde

cinco abóboras corpulentas me observavam como sentinelas, e entrei.

— Cheguei! — chamei minha mãe, a luz na sala de estar entregando sua

localização. Eu coloquei as chaves em cima do aparador e voltei para achá-la.

Ela marcou a orelha da página em que parou, levantou-se do sofá, e me apertou

em um abraço.

— Como foi a sua noite?

— Fui oficialmente drenada de cada última gota de energia. — Eu apontei escada

acima. — Se eu chegar até a cama, vai ser por puro poder mental.

— Enquanto estava fora, um homem apareceu, te procurando.

Eu franzi a testa. Que homem?

— Ele não deixou o nome, e não me disse como te conhecia — continuou minha

mãe. — Devo ficar preocupada?

— Como ele era?

— Rosto redondo, tez avermelhada, cabelos loiros.

Então era ele. O homem que tinha uma rixa com Patch. Eu fabriquei um sorriso. —

Ah, cer-to. Era um vendedor. Ficou tentando me convencer a tirar as fotos de

formatura no estúdio dele. Aí quando for ver, ele vai querer me vender os convites

também.

Seria completamente nojento se eu não lavasse o meu rosto hoje à noite? Ficar

acordada por mais dois minutos já era forçar a este ponto.

Minha mãe beijou a minha testa.

— Bons sonhos.

Subi até meu quarto, fechei a porta, e me deixei cair de braços abertos na cama. A

música do Devil’s Handbag ainda pulsava na parte de trás da minha cabeça, mas eu

estava cansada demais para me importar com isso. Meus olhos já estavam

parcialmente fechados quando me lembrei da janela. Com um resmungo,

cambaleei e retirei a tranca. Patch podia entrar, mas eu lhe desejei sorte se tentasse

me manter acordada tempo o bastante para extrair uma resposta.

Puxei minhas cobertas até o queixo, senti o puxão suave e feliz de um sonho me

chamando mais para perto, e deixei ele me arrastar...

E então o colchão se afundou com o peso de outro corpo.

— Não sei por que está tão apaixonada por esta cama — disse Patch. — Tem trinta

centímetros a menos de altura, um metro e vinte a menos de largura, e os lençóis

roxos não funcionam comigo. A minha cama, por outro lado...

Abri um olho e o encontrei esticado ao meu lado, suas mãos apertadas

frouxamente em sua nuca. Seus olhos escuros observavam os meus, e ele tinha um

cheiro de limpo e sexy. Mais que tudo, ele estava quente, pressionado contra mim.

Apesar das minhas boas intenções, esta proximidade tornava cada vez mais difícil

me concentrar em dormir.

— Ha — disse. — Eu sei que não liga se a minha cama é confortável ou não. Você

não veria problemas em um catre de tijolos. — Uma das desvantagens de Patch ser

um anjo caído era que ele não podia sentir sensações físicas. Sem dor, mas

tampouco sem prazer. Eu tinha que me contentar que, quando eu o beijava, ele

sentia meu beijo apenas emocionalmente. Eu tentei fingir que não ligava para isso,

mas queria que ele se sentisse eletrizado com o meu toque.

Ele me beijou de leve na boca.

—Sobre o que você queria falar?

Não conseguia me lembrar. Algo sobre Dante. O que quer que fosse, parecia não

ter importância. Falar, no geral, parecia não ter importância. Eu me aninhei mais

para perto, e Patch roçou sua mão pelo meu braço nu, fazendo uma sensação

quente e formigante atirar-se até os meus dedos dos pés.

— Quando é que eu vou te ver dançando? — perguntou. — Nunca dançamos

juntos no Devil's Handbag.

— Não está perdendo muita coisa. Me disseram hoje à noite que sou

definitivamente um peixe fora d'água na pista de dança.

— Vee precisa ser mais boazinha com você — ele murmurou, pressionando um

beijo no meu ouvido.

— Vee não foi a autora dessa frase. O crédito é de Dante Matterazzi — confessei

distraída, os beijos de Patch me embalando em um lugar feliz que não precisava de

muito raciocínio ou premeditação.

— Dante? — repetiu Patch, algo desagradável rastejando sobre seu tom.

Porcaria.

— Esqueci de mencionar que Dante estava lá? — perguntei. Patch também tinha

conhecido Dante nesta manhã e, na maior parte do encontro tenso, eu temi que

um fosse arrastar o outro para uma briga. Não é preciso dizer que não foi amor à

primeira vista. Patch não gostou de Dante agindo como se fosse meu assessor

político e me pressionando para entrar em guerra com os anjos caídos, e Dante..

bem, Dante odiava anjos caídos por princípio.

Os olhos de Patch gelaram.

— O que ele queria?

— Ah, agora me lembro sobre o que eu queria falar com você. — Estalei minhas

articulações dos dedos das mãos. — Dante está tentando me promover para a raça

Nephilim. Sou a líder deles agora. O problema é que eles não confiam em mim.

Não me conhecem. E Dante tem como missão mudar isso.

— Conte uma novidade.

— Dante acha que pode ser uma boa ideia que eu, hm, namore ele. Não se

preocupe! — me apressei em dizer. — É tudo de faz de conta. Tenho que fazer os

Nephilim pensarem que a líder deles está investida nisso. Vamos esmagar os

boatos de que estou namorando um anjo caído. Nada é mais solidário do que

pegar um da sua própria espécie, sabe? Gera boa publicidade. Podem até mesmo

nos chamar de Norante. Ou Danta. Acha que soa bem? — perguntei, tentando

manter o bom humor.

A boca de Patch adotou uma posição carrancuda.

— Na verdade, não acho que soa nada bem.

— Se serve de consolo, não suporto o Dante. Não se preocupe.

— Minha namorada quer namorar outro cara, é, não vou me preocupar.

— É só para aparecer. Olhe pelo lado positivo...

Patch riu, mas não havia humor nisso.

— Tem um lado positivo?

— É só no Cheshvan. Hank deixou os Nephilim todos afoitos com este momento.

Ele prometeu a eles a salvação, e eles ainda acham que vão consegui-la. Quando o

Cheshvan chegar, e acabar sendo como qualquer outro Cheshvan registrado, eles

vão perceber que era um negócio arriscado e, pouco a pouco, as coisas vão voltar

ao normal. No meio tempo, enquanto estão de temperamento quente e as

esperanças e sonhos dos Nephilim se apoiam na falsa crença de que posso libertá-

los dos anjos caídos, temos que deixá-los felizes.

— Já te ocorreu que os Nephilim podem te culpar quando a salvação deles não

acontecer? Hank fez um monte de promessas, e quando elas não forem cumpridas,

ninguém vai responsabili-zá-lo. Agora você é a líder. Você é o rosto desta

campanha, Anjo — disse ele, solene.

Encarei o teto. Sim, tinha pensado nisso. Mais vezes hoje do que eu queria

contemplar e continuar com a minha sanidade.

Há o que parecia uma eternidade, os arcanjos me fizeram o acordo dos meus

sonhos. Prometeram me dar o poder de matar Hank... se eu esmagasse a rebelião

dos Nephilim. No começo, não pensei em aceitar o negócio, mas Hank me forçou.

Ele tentou queimar a pena do Patch e mandá-lo para o inferno. Então eu atirei nele.

Hank estava morto, e os arcanjos esperavam que eu impedisse os Nephilim de

entrar em guerra.

Aqui que as coisas ficavam complicadas. Apenas horas antes de eu atirar em Hank,

eu tinha prestado um juramento a ele, jurando liderar seu exército Nephilim. Se eu

falhasse em cumpri minha missão, isso resultaria na minha morte, e na da minha

mãe.

Como cumprir minha promessa aos arcanjos e meu juramento a Hank? Eu via

apenas uma opção. Eu iria liderar o exército de Hank. E lhes trazer paz.

Provavelmente não era isso que ele tinha em mente quando me forçou a fazer o

juramento, mas ele não estava mais por perto para discutir os detalhes. Não me

tinha passado despercebido, contudo, que, ao virar as costas para a rebelião, eu

também estava permitindo que os Nephilim continuassem presos aos anjos caídos.

Não parecia certo, mas a vida era pavimentada por decisões difíceis. Como eu

estava aprendendo bem demais. Agora, eu estava mais preocupada em manter os

arcanjos felizes do que com os Nephilim.

— O que sabemos sobre o meu juramento? — perguntei a Patch. — Dante disse

que entrou em vigor quando Hank morreu, mas quem determina se eu o obedeço

ou não? Quem determina o que eu posso ou não posso fazer, em relação a cumprir

meu juramento? Você, por exemplo. Estou me confidenciando com você, um anjo

caído e inimigo jurado dos Nephilim. O juramento não vai me matar por traição?

— O juramento que você fez era o mais vago possível. Felizmente — disse Patch

com um alívio óbvio.

Ah, tinha sido bastante vago. E no ponto. Se você morrer, Hank, vou liderar o seu

exército. Nem uma palavra a mais.

— Enquanto permanecer no poder e liderar os Nephilim, acho que você está

dentro dos termos do juramento — disse Patch. — Você nunca prometeu a Hank

que guerrearia.

— Em outras palavras, o plano é ficar de fora da guerra e manter os arcanjos

felizes.

Patch suspirou, quase para si mesmo.

— Algumas coisas não mudam nunca.

— Depois do Cheshvan, depois dos Nephilim desistirem da liberdade, e depois de

colocarmos um sorriso grande e gordo de contentamento nos rostos dos arcanjos,

podemos deixar tudo isso para trás. — Eu o beijei. — Seremos só você e eu.

Patch resmungou.

— Essa parte não chega nunca.

— Ei, escuta — eu disse a ele, ansiosa para mudar para qualquer tópico que não

fosse guerra — Fui abordada por um homem hoje à noite. Um homem que quer ter

uma palavrinha com você.

Patch assentiu.

— Pepper Friberg.

— Pepper tem um rosto redondo como uma bola de basquete?

Ele assentiu de novo.

— Ele está me seguindo porque acha que voltei atrás num acordo que fizemos. Ele

não quer ter uma palavrinha comigo. Quer me acorrentar no inferno e se ver livre

de mim.

— Só eu que acho, ou isso soa meio sério?

— Pepper Friberg é um arcanjo, mas ele está metido em mais de uma coisa só. Ele

está levando uma vida dupla, passando metade do seu tempo como arcanjo, e a

outra metade se fazendo passar por humano. Até agora, ele está tirando proveito

do melhor dos dois mundos. Ele tem o poder de um arcanjo, o que ele nem sempre

utiliza para o bem, enquanto cede aos vícios dos humanos.

Então Pepper era um arcanjo. Não era de se admirar que eu não tivesse sido capaz

de identificá-lo. Eu não tinha tido muita experiência com arcanjos.

Patch continuou:

— Alguém descobriu sua desonestidade, e há rumores de que o estão

chantageando. Se Pepper não pagar logo, suas férias na Terra vão se tornar muito

mais permanentes. Os arcanjos irão tirar seu poder e arrancar suas asas se

descobrirem o que ele anda aprontando. Ele vai ficar preso aqui de vez.

As peças se encaixaram.

— Ele acha que você está chantageando ele.

— Há algum tempo eu descobri o que ele estava aprontando. Concordei em

manter o segredo dele, e, em troca, ele concordou em me ajudar a colocar as mãos

em uma cópia do Livro de Enoque. Ele ainda não cumpriu sua parte, e parece

lógico ele achar que eu estou me sentindo deixado de lado. Mas acho que ele deve

ter sido descuidado e tem outro anjo caído por aí procurando se beneficiar de seus

delitos.

— Disse isso a Pepper?

Patch sorriu.

— Estou tentando. Ele não está se sentindo muito falante.

— Ele disse que vai queimar toda a Delphic se isso for preciso para te sufocar. —

Eu sabia que arcanjos não ousavam colocar os pés dentro do Parque de Diversões

Delphic, temendo por sua segurança em um lugar construído e altamente povoado

por anjos caídos, então a ameaça fazia sentido.

— Ele está com o dele na reta e está ficando desesperado. Posso ter que me

esconder.

— Se esconder?

— Ficar fora de vista. De cabeça baixa.

Eu me apoiei em um cotovelo e encarei Patch.

— Como me encaixo neste plano?

— Ele acha que você é a passagem de ida até mim. Vai ficar grudado em você

como esparadrapo. O carro dele está estacionado na rua debaixo agora mesmo, de

olhos atentos à procura do meu carro. — Patch alisou minha bochecha com seu

polegar. — Ele é bom, mas não bom o bastante para me impedir de passar um

tempo com a minha garota.

— Prometa que sempre vai estar dois passos a frente dele. — Pensar em Pepper

capturando Patch e o colocando na estrada livre até o inferno não me dava,

precisamente, uma sensação calorosa e aconchegante.

Patch enganchou um dedo no decote da minha roupa e me puxou para um beijo.

— Não se preocupe, Anjo. Tenho sido sorrateiro há mais tempo.

Quando acordei, o outro lado da cama estava frio. Eu sorri para a lembrança de

dormir enrolada nos braços do Patch, me concentrado nisso e não na

probabilidade de que Pepper Friberg, conhecido também como Sr. Arcanjo com

um Segredo Sujo, tivesse sentado do lado de fora da minha casa a noite toda,

brincando de espião.

Pensei em um ano atrás, no outono do meu segundo ano. Naquela época, eu não

tinha nem mesmo beijado um cara. Eu nunca poderia ter imaginado o que me

aguardava. Patch significava mais para mim do que eu seria capaz de dizer. Seu

amor e fé em mim tiravam a dor das decisões difíceis que eu tinha sido forçada a

tomar recentemente. Sempre que dúvida e arrependimento rastejavam para a

minha consciência, tudo o que eu precisava fazer era pensar no Patch. Eu não tinha

certeza se fazia a escolha certa toda vez, mas tinha uma certeza. Eu tinha feito a

escolha certa com Patch. Eu não podia desistir dele. Nunca.

Ao meio-dia, Vee ligou.

— Que tal eu e você irmos correr? — disse ela. — Acabei de comprar um par novo

de tênis, e preciso lacear essas belezinhas.

— Vee, estou com bolhas por dançar a noite passada. E, espera um minuto. Desde

quando você gosta de correr?

— Não é segredo que estou com alguns quilos a mais — disse ela. — Tenho ossos

grandes, mas isso não é desculpa para deixar um pouquinho de flacidez me

segurar. Tem um cara aí chamado Scott Parnell, e se me livrar de peso extra é o que

for preciso para que eu tenha coragem de ir atrás dele, então é isso que vou fazer.

Quero que Scott me olhe do jeito que Patch olha para você. Eu não falava a sério

sobre esse negócio de fazer dieta e exercício antes, mas estou virando uma nova

página. Começando hoje, eu amo exercícios. É o meu novo melhor amigo.

— Ah é? E eu?

— Assim que eu perder esse peso, você vai voltar a ser a minha garota preferida.

Passo para te buscar em 20 minutos. Não esqueça a faixa de cabelo. Seu cabelo faz

coisas assustadoras quando fica úmido.

Eu desliguei, passei uma regata por sobre a cabeça, depois um moletom, e finalizei

com o tênis.

Bem na hora, Vee apareceu para me buscar. E, imediatamente, ficou claro que não

estávamos indo para a pista de corrida do colégio. Ela conduziu seu Neon roxo

pela cidade, na direção oposta a da escola, cantarolando para si mesma.

Eu disse:

— Para onde estamos indo?

— Estava pensando em correr nas colinas. Colinas são boas para os glúteos. — Ela

virou o Neon na estrada Deacon, e uma luz se acendeu na minha cabeça.

— Espera aí. Scott mora na estrada Deacon.

— Agora que pensei nisso, ele mora mesmo.

— Vamos correr ao lado da casa do Scott? Isso não é meio que... sei lá... coisa de

perseguidor?

— É um jeito bem pessimista de encarar as coisas, Nora. Por que não ver isso como

motivação? Olho no prêmio.

— E se ele nos vir?

— Você é amiga do Scott. Se ele nos vir, provavelmente vai sair e conversar com a

gente. E seria rude não parar e lhe dar alguns minutos do nosso tempo.

— Em outras palavras, não vamos correr. É uma emboscada.

Vee fez um meneio com a cabeça.

— Você não é nem um pouco divertida.

Ela dirigiu vagarosamente pela Deacon, um trecho sinuoso de uma estrada

pitoresca, com sempre-vivas densas beirando ambos os lados. Dentro de duas

semanas, elas estariam cobertas de neve.

Scott morava com sua mãe, Lynn Parnell, em um conjunto de apartamentos que

entrou no nosso campo de visão na curva seguinte. Durante o verão, Scott tinha se

mudado e se escondido. Ele havia desertado o exército Nephilim de Hank Millar, e

Hank havia procurado incansavelmente por ele, esperando torná-lo um exemplo.

Depois que eu matei Hank, Scott tinha ficado livre para voltar para casa.

Uma cerca de cimento protegia a propriedade, e embora eu tivesse certeza de que

a intenção tinha sido a de ter privacidade, isso dava ao local uma sensação de

prisão. Vee entrou pelo portão e eu tive um flashback da vez em que ela me ajudou

a bisbilhotar o quarto do Scott. Na época que eu achava que ele era um babaca

que iria aprontar alguma. Nossa, como as coisas tinham mudado. Vee estacionou

perto das quadras de tênis. As redes já tinham sumido há muito tempo, e alguém

havia decorado o turfe com pichação.

Saímos e nos alongamos por alguns minutos.

Vee disse:

— Não me sinto segura deixando o Neon abandonado por muito tempo nesse

bairro. Talvez devêssemos dar voltas ao redor do conjunto. Dessa forma posso ficar

de olho no meu bebê.

— Aham. Também dá ao Scott mais chance de ver a gente.

Vee usava uma calça de moletom rosa-shocking com DIVA estampado na bunda

em glitter dourado, e uma jaqueta rosa-shocking de lã. Ela também estava

maquiada completamente, com brincos de diamantes em suas orelhas, um maxi

anel de rubi, e cheirava a Pure Poison, da Dior. Simplesmente um dia normal de

corrida.

Aceleramos o passo e começamos a correr lentamente pela trilha de terra que

circulava o conjunto. O sol tinha aparecido e, após três voltas, retirei meu moletom,

amarrando-o em volta da minha cintura. Vee foi, em linha reta, até um banco

desgastado do parque e se arrastou, sugando ar.

— Acho que já foram oito quilômetros — disse ela.

Eu inspecionei a trilha. Claro... se subtraísse, mais ou menos, seis quilômetros.

— Talvez devêssemos espiar a janela do Scott — sugeriu Vee — É domingo. Ele

pode estar dormindo além da conta e precisando de um despertador amigável.

— Scott mora no terceiro andar. A não ser que você tenha uma escada de doze

metros escondida no porta-malas do Neon, espiar pela janela está fora de questão.

— Podemos tentar algo mais direto. Tipo bater na porta dele.

Bem então um Plymouth Barracuda laranja, aproximadamente dos anos 1970,

chegou no estacionamento com um vrum. Parou debaixo da garagem, e Scott saiu

de dentro. Como a maioria dos homens Nephilim, Scott tinha o corpo de alguém

aparentemente bastante familiar com uma sala de musculação. Ele também eraé

extraordinariamente alto, chegando quase a dois metros. Deixava seu cabelo

cortado tão curto quanto um presidiário, e era bonitão, de um jeito durão e

fortificado. Hoje ele vestia um shorts de basquete combinando com uma camiseta

com as mangas rasgadas.

Vee se abanou.

— Uepa!

Levantei a mão no ar, com a intenção de chamar Scott e conseguir sua atenção,

quando a porta do passageiro do Barracuda se abriu e Dante emergiu.

— Dá uma olhada só — disse Vee. — É o Dante. Faça as contas. Eles são dois, e nós

somos duas. Sabia que eu gostava de correr.

— Estou sentindo uma compulsão súbita de continuar correndo — murmurei. E de

não parar até colocar uma grande distância entre eu e Dante. Não estava com

vontade de prosseguir a conversa de ontem à noite. Do mesmo jeito, não estava

com vontade que Vee bancasse cupido. Ela era irritantemente boa nisso.

— Tarde demais. Fomos avistadas. — Vee balançou o braço em cima da sua cabeça

como uma hélice de helicóptero.

Como dito, Scott e Dante recuaram contra o Barracuda, balançando as cabeças e

sorrindo para nós.

— Está me perseguindo, Grey? — gritou Scott.

— Ele é todo seu — eu disse a Vee. — Vou terminar de correr.

— E o Dante? Ele vai ficar de vela — disse ela.

— Vai ser bom para ele, confie em mim.

— Onde é o incêndio, Grey? — Scott chamou, e, para minha consternação, ele e

Dante começaram a correr.

— Estou treinando — atirei de volta. — Estou pensando em... tentar entrar na

equipe de corrida.

— As corridas não começam até a primavera — lembrou-me Vee.

Tentei de tudo.

— Oh-ou, a frequência cardíaca está caindo — gritei para Scott. E, com isso, saí

correndo em disparada na direção oposta.

Ouvi Scott na trilha atrás de mim. Um minuto depois, ele agarrou a alça da minha

regata, puxando-a de brincadeira.

— Quer me dizer o que está acontecendo?

Eu me virei para encará-lo.

— O que parece?

— Parece que você e a Vee vieram até aqui para me ver, sob o pretexto de

correrem.

Dei um tapinha de parabéns no ombro dele.

— Bom trabalho, campeão.

— Então por que está fugindo? E por que Vee está cheirando a uma fábrica de

perfume?

Eu permaneci em silêncio, deixando que ele descobrisse.

— Ah — disse ele por fim.

Eu abri as mãos.

— Meu trabalho aqui está terminado.

— Não me entenda mal, mas não sei se estou pronto para sair com a Vee o dia

todo. Ela é bastante... intensa.

Antes que eu pudesse dar o sábio conselho “Finja até estar pronto”, Dante

apareceu do meu lado.

— Posso ter uma palavra com você? — perguntou.

— Eita — eu disse baixinho.

— Essa é a minha deixa — disse Scott, e, para meu desânimo, ele correu para

longe, me deixando a sós com Dante.

— Consegue correr e conversar ao mesmo tempo? — perguntei a Dante, pensando

que preferia não ter que olhar nos olhos dele enquanto ele reprocessava suas

opiniões sobre nossa relação provisória. Além do mais, isso dizia muito sobre o

quanto eu estava a fim de ter esta conversa.

Como resposta, Dante acelerou o passo, correndo ao meu lado.

— Que bom vê-la correndo — disse ele.

— É? Por quê? — ofeguei, empurrando alguns fios de cabelos soltos para longe do

meu rosto encharcado de suor. — Fica animado ao me ver completamente

bagunçada?

— Isso, e é um bom treinamento para o que tenho reservado para você.

— Tem algo reservado para mim? Por que tenho a sensação de que não quero

ouvir mais?

— Você pode ser uma Nephilim agora, Nora, mas está em desvantagem. Ao

contrário de Nephilim concebidos naturalmente, você não tem a vantagem de uma

altura elevada, e não é tão poderosa fisicamente.

— Sou muito mais forte do que você pensa— eu reclamei.

— Mais forte do que você era. Mas não tão forte quanto uma Nephilim do sexo

feminino. Você tem o mesmo corpo de quando era humana, e, embora fosse

adequado para seu propósito, não é o

bastante para competir agora. Sua estrutura é muito magra. Comparada a mim,

você é abismalmente baixa. E seu tônus muscular é patético.

— Nossa, quanta bajulação.

— Eu poderia te dizer o que acho que você quer escutar, ao invés do que você

precisa ouvir, mas eu seria mesmo seu amigo se fizesse isso?

— Por que acha que precisa me dizer isso?

— Não está preparada para lutar. Você não tem a mínima chance contra um anjo

caído. É simples assim.

— Estou confusa. Por que eu preciso lutar? Achei que deixei repetidamente claro

ontem que não vai haver guerra. Vou liderar os Nephilim e lhes trazer paz. — E

manter os arcanjos longe de mim. Patch e eu tínhamos decidido, sem erro, que

Nephilim enfurecidos eram um inimigo melhor do que os arcanjos todo-

poderosos. Estava evidente que Dante queria batalhar, mas nós discordávamos. E,

como líder do exército Nephilim, a decisão final era minha. Senti que Dante estava

me questionando, e não gostei nem um pouquinho disso.

Ele parou, me pegando pelo pulso para que pudesse olhar direto para mim.

— Você não pode controlar tudo que acontece daqui em diante — disse ele bem

baixo, e um arrepio de mau presságio deslizou por mim como se eu tivesse

engolido um cubo de gelo.

— Eu sei que pensa que estou pegando no seu pé, mas prometi a Hank que

cuidaria de você. Te digo uma coisa. Se a guerra estourar, ou mesmo se houver

uma baderna, você não vai sobreviver. Não no seu estado atual. Se algo acontecer

com você e você for incapaz de liderar o exército, você vai ter quebrado o seu

juramento, e sabe o que isso significa.

Ah, eu sabia o que significava, muito bem. Cavar a minha própria cova. E arrastar a

minha mãe junto.

— Eu quero lhe ensinar habilidades o bastante para você se virar, como precaução

— disse Dante. — Isso é tudo que estou sugerindo. Eu engoli em seco.

— Você acha que se eu treinar com você, vou chegar ao ponto de estar forte o

bastante pa-ra conseguir lidar com as coisas sozinha — Contra anjos caídos eu

conseguiria. Mas e quanto aos arcanjos? Prometi impedir a rebelião. Treinar para

batalha não combinava com esse objetivo.

— Acho que vale a pena.

A ideia de uma guerra transformava meu estômago em um maço de nós, mas não

queria demonstrar medo na frente de Dante. Ele já pensava que eu não sabia me

cuidar.

— Então, qual dos dois? Você é meu pseudo-namorado ou meu personal trainer?

A boca dele se contorceu.

— Ambos.

CAPÍTULO

3

QUANDO VEE ME DEIXOU APÓS A CORRIDA, haviam duas chamadas não atendidas

no meu celular. A primeira era de Marcie Millar, minha às vezes arqui-inimiga e,

como o destino sempre prega peças, minha meia-irmã de sangue, mas não por

amor. Eu passei os últimos 17 anos sem ter nenhum conhecimento de que a

menina que roubou meu leite achocolatado no primário e colou absorventes

femininos no meu armário da escola no ensino fundamental compartilhava do meu

DNA. Marcie descobriu a verdade primeiro, e arremessou-a na minha cara.

Tínhamos um contrato tácito de não discutir nossa relação publicamente, e, na

maior parte do tempo, o conhecimento disso não nos mudou de nenhuma

maneira. Marcie ainda era uma cabeça de vento mimada e anoréxica, e eu ainda

passava boa parte das minhas horas acordada observando tudo à minha volta,

querendo saber o próximo esquema de humilhação que ela tem preparado para

mim.

Marcie não havia deixado uma mensagem, e eu não conseguia adivinhar o que ela

queria de mim, então eu passei para a próxima chamada perdida. Número

desconhecido. O correio de voz consistia em uma respiração controlada, baixa e

masculina, mas não em palavras reais. Poderia ser Dante, talvez Patch. Talvez até o

Pepper Friberg. O meu número pessoal estava na lista, e, com um pouco de espírito

investigativo, Pepper poderia o ter rastreado. Não era o mais reconfortante dos

pensamentos.

Eu arrastei o meu cofre de porquinho de debaixo da minha cama, tirei o fundo

falso de borracha, e sacudi 75 dólares de dentro dele. Amanhã, Dante vinha me

pegar às cinco da manhã para praticar corrida de velocidade e levantamento de

peso, e depois de um olhar de nojo para os meus tênis atuais, ele comentou:

— Eles não vão durar nem um dia de treinamento. — Então aqui estava eu, usando

a minha mesada para comprar tênis de corrida.

Eu não achava que a ameaça de guerra fosse tão grave como Dante fazia soar,

especialmente já que Patch e eu, secretamente, temos planos para tirar os Nephilim

da revolta predestinada, mas as palavras dele sobre o meu tamanho, velocidade e

agilidade tinham me atingido em cheio. Eu era menor do que todos os outros

Nephilim que eu conhecia. Ao contrário deles, eu tinha nascido em um corpo

humano (peso na média, com tônus muscular mediano, comum em todos os

aspectos) até realizar uma transfusão de sangue e o juramento do Voto de

Transição me transformar em uma Nephilim. Eu era um deles na teoria, mas não na

prática. Eu não queria que esta discrepância pintasse um alvo nas minhas costas,

mas uma vozinha no fundo da minha mente sussurrou que talvez isso acontecesse.

E eu tinha que fazer o que fosse preciso para ficar no poder.

— Por que nós temos que começar tão cedo? — deveria ter sido minha primeira

pergunta a Dante, mas eu suspeitava que sabia a resposta. Os seres humanos mais

rápidos do mundo pareceriam que estavam dando um passeio calmo se correrem

ao lado de um Nephilim. Na velocidade máxima, eu suspeitava que um Nephilim

no seu auge poderia correr acima de 80 quilômetros por hora. Se Dante e eu

fôssemos vistos a essa velocidade na pista de corrida da escola, iríamos chamar

muita atenção indesejada. Mas na madrugada de segunda-feira, a maioria dos

seres humanos estava dormindo, dando a Dante e a mim a oportunidade perfeita

para ter um treino sem preocupações.

Eu meti o dinheiro no bolso e me dirigi para o térreo.

— Eu vou estar de volta em poucas horas! — eu gritei para minha mãe.

— O assado sai às seis, portanto não se atrase — ela respondeu da cozinha.

Vinte minutos depois, eu passava pelas portas do Pete's Locker Room e seguia para

o departamento de sapatos. Eu experimentei alguns pares de tênis de corrida, até

escolher um par da prateleira de liquidação. Dante podia ter a minha manhã de

segunda (um dia de folga da escola, devido a um conselho de classe dos

professores em todo o distrito), mas eu não iria lhe dar a soma total de minha

mesada também.

Eu paguei pelos meus sapatos e verifiquei a hora no meu celular. Nem mesmo

eram quatro ainda. Como precaução, Patch e eu tínhamos concordado em limitar

chamadas em público a um mínimo, mas um olhar apressado pelos dois lado da

calçada me confirmou que eu estava sozinha. Recuperei o telefone não rastreável

que Patch me deu da minha bolsa e disquei o seu número.

— Eu tenho duas horas livres — eu disse a ele, caminhando em direção ao meu

carro, que estava estacionado na quadra seguinte. — Tem um celeiro muito

privado e bastante isolado na Lookout Hill Park atrás do carrossel. Eu poderia

chegar lá em 15 minutos.

Eu ouvi o sorriso em sua voz.

— Você me quer demais.

— Eu preciso de um aumento de endorfina.

— E dar uns amassos em um celeiro abandonado comigo vai dar-lhe um aumento?

— Não, isto provavelmente irá me colocar em um coma de endorfina, e eu estou

mais do que feliz em testar a teoria. Estou saindo do Pete's Locker Room agora. Se

os sinais de trânsito estiverem em meu favor, eu posso chegar lá em até 10...

Eu não consegui terminar. Um saco de pano caiu sobre a minha cabeça, e eu fui

arrastada em um abraço de urso por trás. Na minha surpresa, eu deixei cair o

telefone celular. Eu gritei e tentei balançar meus braços para me libertar, mas as

mãos me empurrando para a frente em direção à rua eram muito fortes. Eu ouvi

um grande veículo fazer um estrondo na rua, e depois veio parar bruscamente ao

meu lado.

Uma porta se abriu, e eu fui empurrada para dentro.

O ar dentro da van tinha o cheiro forte de suor mascarado por um aerossol de

limão. O calor foi aumentado até o máximo, a alta temperatura vazando através de

aberturas na parte da frente, fazendo-me suar. Talvez fosse essa a intenção.

— O que está acontecendo? O que você quer? — eu exigi com raiva. O peso total

do que estava acontecendo não tinha me atingido ainda, me deixando mais

indignada do que assustada. Nenhuma resposta veio, mas eu ouvi a respiração

constante de dois indivíduos nas proximidades. Eram os dois, mais o motorista, o

que significava que havia três deles. Contra uma de mim.

Meus braços foram torcidos por trás das minhas costas, presos juntos com o que

parecia ser uma corrente para reboques. Meus tornozelos foram apertados por uma

corrente pesada semelhante. Eu estava deitada de barriga, o saco ainda sobre a

minha cabeça, o meu nariz empurrado contra o chão espaçoso da van. Eu tentei

balançar para o meu lado, mas senti como se meu ombro rasgaria do seu eixo. Eu

gritei de frustração e recebi um chute de imediato na coxa.

— Fale baixo — uma voz masculina rosnou.

Nós dirigimos por um longo tempo. Quarenta e cinco minutos, talvez. Minha mente

pulou em muitas direções para acompanhar com precisão. Será que eu poderia

escapar? Como? Ultrapassá-los? Não. Enganá-los? Talvez. E depois havia Patch. Ele

saberia que eu tinha sido levada. Ele rastrearia o meu celular para a rua do lado de

fora do Pete's Locker Room, mas como é que ele saberia para onde ir a partir daí?

No início, a van parava várias vezes em sinais de trânsito, mas, eventualmente, a

estrada ficou limpa. A van subiu mais alto, indo e voltando em zigue-zague, o que

me fez acreditar que estávamos indo para as áreas remotas e montanhosas, muito

fora da cidade. O suor escorria por baixo minha camisa, e eu não conseguia forçar

uma única respiração profunda. Cada inalação vinha rasa, pânico apertando o meu

peito.

Os pneus estouraram sobre o cascalho, firmemente rolando para cima, até que, por

fim, o motor morreu. Meus captores desamarram meus pés, me arrastaram porta

afora e puxaram o saco da minha cabeça.

Eu estava certa; haviam três deles. Dois homens, uma mulher. Eles haviam me

trazido para uma cabana de madeira, e reamarram os meus braços em um poste de

madeira decorativa que se erguia entre o nível principal até as vigas no teto. Nada

de luzes, mas isso podia ser porque a energia tinha sido desligada. Móveis eram

escassos, e cobertos por lençóis brancos. O ar não poderia estar mais do que um

ou dois graus mais quente do que do lado de fora, o que significava que não

haviam ligado o aquecedor. A quem quer que a cabine pertencesse, essa pessoa

tinha fechado-a para o inverno.

— Não se incomode em gritar — o mais volumoso deles me disse. — Não há outro

corpo quente por quilômetros. — Ele se escondia atrás de um chapéu de caubói e

óculos de sol, mas a sua precaução era desnecessária; eu estava positivamente

certa de que nunca o tinha visto antes. Meu elevado sexto sentido identificou os

três como Nephilim. Mas o que eles queriam de mim... eu não tinha nem uma pista.

Eu me empurrei contra as correntes, mas fora produzir um som fraco de moagem,

elas não se mexeram.

— Se você for uma Nephilim real, será capaz de romper as correntes — o Nephilim

com o chapéu de caubói rosnou. Ele parecia ser o porta-voz para os outros dois,

que ficaram à minha volta, limitando sua comunicação comigo em olhares de

repulsa.

— O que vocês querem? — eu repeti friamente.

A boca do Chapéu de Caubói se curvou em um sorriso de escárnio.

— Eu quero saber como uma princesinha como você pensa que pode conseguir

uma revolução para os Nephilim.

Eu mantive seu olhar de ódio, desejando que eu pudesse arremessar a verdade em

seu rosto. Não ia haver uma revolução. Uma vez iniciado o Cheshvan em menos de

dois dias, ele e seus amigos seriam possuídos por anjos caídos. Hank Millar teve a

parte mais fácil: preencher suas mentes com noções de rebeldia e liberdade. E

agora eu havia sido deixada para operar o milagre real. E eu não ia.

— Eu pesquisei sobre você — disse Chapéu de Caubói, andando na minha frente.

— Eu perguntei por aí e descobri que você está namorando Patch Cipriano, um

anjo caído. Esse relacionamento está sendo bom para você?

Engoli discretamente.

— Eu não sei com quem você esteve falando. — Eu sabia o perigo que eu

enfrentaria se o meu relacionamento com o Patch fosse descoberto. Eu tinha sido

cuidadosa, mas estava começando a perceber como não tinha tomado cuidado

suficiente. — Mas eu terminei tudo com Patch — eu menti. — Tudo o que tínhamos

está no passado. 'Eu sei onde está a minha lealdade. Assim que eu me tornei uma

Nephil...

Ele enfiou a cara na minha.

— Você não é uma Nephilim! — Seus olhos passaram por cima de mim com

desprezo. — Olhe para você. Você é patética. Você não tem o direito de chamar-se

de Nephilim. Quando eu olho para você, eu vejo uma humana. Eu vejo uma

menininha fraca, chorona e inútil.

— Você está com raiva porque eu não sou tão fisicamente forte quanto você — eu

disse calmamente.

— Quem falou em força!? Você não têm orgulho. Não há nenhuma percepção de

lealdade dentro de você. Eu respeitava Mão Negra como um líder porque ele

ganhou esse respeito. Ele tinha uma visão. Ele entrou em ação. Ele nomeou você

como seu sucessor, mas isto não significa nada para mim. Você quer meu respeito?

Faça-me dar-lhe a você. — Ele estalou os dedos selvagemente na minha face. —

Ganhe ele, princesa."

Ganhar o seu respeito? Para que eu fosse como Hank? Hank era um trapaceiro e

mentiroso. Ele tinha prometido ao seu povo o impossível com palavras suaves e

bajulação. Ele tinha usado e enganado a minha mãe e me transformado em um

peão em sua missão. Quanto mais eu pensava sobre a posição em que ele me

colocou, deixando-me para realizar sua visão demente, mais enlouquecida eu

ficava.

Eu encarei os olhos do Chapéu de Caubói friamente... depois contraí meu pé com

toda a força que eu tinha e o acertei diretamente em seu peito. Ele navegou para

trás na parede e acabou dobrado no chão.

Os outros dois correram para a frente, mas a minha raiva havia começado um

incêndio dentro de mim. Um estranho e violento poder cresceu em mim, e eu me

tencionei contra as correntes, ouvindo o metal ranger enquanto os elos estalavam

e se separavam. As correntes caíram no chão, e eu não perdi um minuto para usar

os meus punhos. Eu esmurrei o Nephil mais próximo nas costelas e dei na mulher

um chute certeiro. Meu pé colidiu com sua coxa, e eu fiquei impressionada com a

massa sólida que eram os seus músculo. Nunca antes na minha vida tinha

encontrado uma mulher de tamanha força e durabilidade.

Dante estava certo; eu não sabia como lutar. Um momento tarde demais, percebi

que eu deveria ter continuado, atacando impiedosamente enquanto eles estavam

caídos. Mas eu estava muito atordoada pelo que eu tinha feito para fazer mais do

que me agachar em uma posição defensiva, esperando para ver qual seria a

resposta deles.

Chapéu de Caubói se atirou em mim, empurrando-me para trás até a parede. O

impacto tirou todo o ar dos meus pulmões e eu me dobrei ao meio, tentando, mas

falhando, em recuperar ar.

— Eu não acabei com você, princesa. Esta foi a sua advertência. Se eu descobrir que

você ainda está andando com os anjos caídos, a coisa vai ficar feia. — Ele bateu na

minha bochecha. — Use esse tempo para reconsiderar sua lealdade. Da próxima

vez que nos encontrarmos, para o seu bem, espero que ela tenha mudado.

Ele sinalizou para os outros com um movimento de seu queixo, e todos eles saíram

pela porta.

Engoli ar, levando alguns minutos para me recuperar, então me arrastei para a

porta. Eles já haviam ido embora. Poeira da estrada circulava pelo ar, e o anoitecer

se estendia por toda a linha do horizonte, um punhado de estrelas brilhantes como

minúsculos fragmentos de vidro quebrado.

CAPÍTULO

4

SAÍ LENTAMENTE DA PEQUENA VARANDA DA CABANA, QUERENDO SABER como eu iria

percorrer o caminho até em casa, quando o som de um motor rugiu sobre o longo

caminho de cascalho à frente. Eu me preparei para o retorno do Chapéu de Caubói

e seus amigos, mas foi uma motocicleta Harley Sportster que entrou no meu

campo de visão, carregando um único passageiro.

Patch.

Ele pulou para fora e cruzou a distância até mim em três passos rápidos.

— Você está ferida? — ele perguntou, tomando meu rosto entre suas mãos e me

olhando para averiguar qualquer sinal de dano. Uma mistura de alívio,

preocupação e raiva brilhou em seus olhos. — Onde estão eles? — ele perguntou,

seu tom mais endurecido do que eu jamais tinha ouvido antes.

— Haviam três deles, todos Nephilim — eu disse, minha voz ainda trêmula de

medo e por a ter minha respiração tirada à força de mim. — Eles foram embora a

cerca de cinco minutos atrás. Como você conseguiu me encontrar?

— Eu ativei o seu dispositivo de rastreamento.— Você colocou um dispositivo de

rastreamento em mim?

— Costurado no bolso de sua jaqueta jeans. Cheshvan começa na lua nova de

terça-feira, e você é uma Nephil sem juramento. Você também é a filha do Mão

Negra. Você tem um prêmio sobre sua cabeça, e isso faz de você muito, mas muito

atraente para quase todos os anjos caídos lá fora. Você não vai jurar fidelidade à

ninguém, Anjo, fim da história. Se isto significa que eu tenho que cortar a sua

privacidade, você vai ter que lidar com isso.

— Lidar com isto? Com licença? — Eu não tinha certeza se eu deveria abraçá-lo ou

empurrá-lo.

Patch ignorou minha indignação.

— Diga-me tudo o que puder sobre eles. Descrições físicas, marca e modelo do

carro, qualquer coisa que vá me ajudar a localizá-los. — Seus olhos chiavam com

vingança. — E fazê-los pagar.

— Você também grampeou meu telefone? — Eu quis saber, ainda não

concordando com a ideia de Patch invadindo a minha privacidade sem me dizer.

Ele não hesitou.

— Sim.

— Em outras palavras, não tenho segredos.

Sua expressão se suavizou e pareceu que, se o clima não estivesse tão tenso, ele

poderia ter considerado sorrir.

— Há ainda algumas coisas que você consegue manter em segredo de mim, Anjo.

Beleza, eu caí fácil nessa.

Eu disse:

— O líder se escondeu atrás de óculos de sol e um chapéu de caubói, mas eu estou

certa de que nunca o vi antes. Os outros dois, um homem e uma mulher, usavam

roupas básicas.

— Carro?

— Eu tinha um saco na minha cabeça, mas eu estou certa que era uma van. Dois

deles se sentaram na parte de trás comigo, e a porta parecia que deslizava para o

lado na hora de abrir, quando eles me forçaram a sair.

— Qualquer outra coisa que se destaque?

Eu disse para Patch sobre como o líder ameaçou revelar nosso namoro secreto.

Patch disse:

— Se alguma notícia sobre nós escapulir, as coisas podem ficar feias bem rápido.

— Suas sobrancelhas se juntaram, e seus olhos se escureceram com incerteza. —

Tem certeza de que quer continuar tentando manter nosso relacionamento fora do

radar? Eu não quero perder você, mas eu prefiro fazê-lo em nossos termos do que

no deles.

Eu coloquei minha mão na dele, observando como a sua pele estava fria. Ele estava

imóvel também, como se esperando o pior.

— Estou nesta com você, ou eu estou fora — eu disse a ele, e disse cada palavra

seriamente. Eu tinha perdido Patch uma vez antes, e, não querendo ser

melodramática, mas achava a morte uma opção mais preferível. Patch estava na

minha vida por um motivo. Eu precisava dele. Nós dois éramos metades do mesmo

todo.

Patch puxou-me contra ele, segurando-me com uma ferocidade certamente

possessiva.

— Eu sei que você não vai gostar disso, mas você pode querer pensar sobre a

realização de uma briga pública para enviar uma mensagem clara de que a nossa

relação acabou. Se esses caras estão sérios sobre desenterrar segredos, nós não

podemos controlar o que encontrarão. Isso está começando a me parecer como

uma caça às bruxas, e pode ser melhor dar o primeiro passo.

— Fingir uma briga? — Eu repeti, temor escorrendo por mim como um vento de

inverno.

— Nós saberíamos a verdade — Patch murmurou no meu ouvido, passando as

mãos rapidamente sobre os meus braços para aquecê-los. — Eu não vou perder

você.

— Quem mais poderia saber da verdade? Vee? Minha mãe?

— Quanto menos elas souberem, mais seguro elas estarão.

Eu soltei um suspiro de conflito.

— Mentir para Vee está ficando muito costumeiro. Eu não acho que eu posso fazer

isso mais. Eu me sinto culpada cada vez que estou perto ela. Eu quero abrir o jogo.

Especialmente sobre algo tão importante como você e eu.

— A decisão é sua — Patch disse gentilmente. — Mas eles não vão machucá-la se

acharem que ela não tem nada para contar.

Eu sabia que ele estava certo. O que não deixou-me uma escolha, não é mesmo?

Quem era eu para colocar a minha melhor amiga em perigo só para apaziguar a

minha consciência?

— Nós provavelmente não seremos capazes de enganar Dante, você vai trabalhar

muito perto dele — Patch disse. — E isso pode até funcionar melhor se ele souber.

Ele pode comprovar a sua história quando ele for falar com os Nephilim influentes.

— Patch tirou o casaco de couro e colocou-o sobre os meus ombros. — Vamos te

levar para casa.

— Podemos fazer uma parada rápida no Pete's Locker Room primeiro? Eu preciso

pegar o meu celular, e o telefone não rastreável que você me deu. Deixei um cair

durante o ataque, e o outro ficou para trás na minha bolsa. Se estivermos com

sorte, meus sapatos novos ainda estarão na calçada também.

Patch beijou o topo da minha cabeça.

— Os dois telefones precisam ser desligados. Eles deixaram a sua posse, e se

assumirmos o pior, seus sequestradores Nephilim colocaram seus próprios

rastreadores ou aparelhos de escuta neles. Melhor obter novos celulares.

Uma coisa era certa. Se antes eu estava desmotivada para treinar com o Dante,

agora tudo tinha mudado. Eu precisava aprender a lutar, e rápido. Entre se esquivar

de Pepper Friberg e me aconselhar no meu novo papel como líder Nephilim, Patch

já tinha o suficiente para se preocupar sem a necessidade de correr toda a vez que

eu me metesse em apuros. Fiquei imensamente grata pela sua proteção, mas já era

hora de eu aprender a cuidar de mim.

Estava completamente escuro na hora que eu cheguei em casa. Eu entrei pela

porta, e minha mãe se apressou para fora da cozinha, parecendo tanto preocupada

quanto brava.

— Nora! Onde você esteve? Eu te liguei, mas ficava caindo no seu correio de voz.

Eu poderia bater na minha própria testa. Jantar. Às seis. Eu tinha me esquecido

completamente.

— Eu sinto muito — eu disse. — Eu esqueci o meu telefone em uma das lojas. No

momento em que eu percebi que tinha perdido, era quase hora do jantar, e eu tive

que voltar e procurar por toda a cidade. Eu não o encontrei, então agora eu não

estou só sem um celular, como te deixei na mão. Eu sinto muito. Eu não tive como

te ligar. — Eu odiava ser forçada a mentir para ela de novo. Eu tinha feito isso

tantas vezes que parecia que mais uma vez não deveria doer, mas doeu. Isso me

fez sentir menos e menos como sua filha, e mais e mais como filha do Hank. Meu

pai biológico tinha sido um especialista e incomparável mentiroso. E eu estava em

uma má posição para ser crítica.

— Você não poderia parar e encontrar alguma forma de me ligar? — ela disse, não

parecendo acreditar em minha história por um minuto.

— Isso não vai acontecer novamente. Eu prometo.

— Posso supor que você estava com Patch? — Eu não perdi a ênfase cínica que ela

deu ao falar o seu nome. Minha mãe considerava Patch com tanto carinho quanto

os guaxinins que muitas vezes causavam estragos em nossa propriedade. Eu não

duvidava que ela fantasiava estar de pé na varanda com um rifle empoleirado em

seu ombro, esperando que ele mostrasse o rosto.

Eu inalei, jurando que esta seria a minha última mentira. Se Patch e eu realmente

fôssemos adiante com a briga encenada, era melhor começar a plantar as sementes

agora. Eu disse a mim mesma que quando eu pudesse cuidar da minha mãe e de

Vee, todo o resto seria muito mais tranquilo. — Eu não estava com o Patch, Mãe.

Nós terminamos.

Ela ergueu as sobrancelhas, ainda não parecendo convencida.

— Isso simplesmente aconteceu, e não, eu não quero falar sobre isso. — Eu

comecei a me dirigir para as escadas.

— Nora...

Voltei, e haviam lágrimas em meus olhos. Elas apareceram do nada e não eram

parte da minha encenação. Eu simplesmente lembrei da última vez em que Patch e

eu terminamos de verdade, e uma sensação estranha me apertou, roubando a

minha respiração. A memória disso ia para sempre me assombrar. Patch tinha

levado as melhores partes de mim com ele, deixando uma menina perdida e vazia

para trás. Eu não queria ser esta garota novamente. Nunca mais.

A expressão de minha mãe relaxou. Ela me encontrou na escada, esfregou minhas

costas suavemente, e sussurrou no meu ouvido:

— Eu te amo. Se você mudar de ideia e quiser falar...

Eu assenti e, em seguida, fui para o meu quarto.

Pronto, eu disse a mim mesmo, tentando arduamente soar otimista. Uma já foi,

falta uma. Eu não estava exatamente mentindo para a minha mãe e para Vee sobre

a separação; eu estava apenas fazendo o que tinha que ser feito para mantê-las

seguras. Honestidade era a melhor política, na maior parte do tempo. Mas às vezes

a segurança supera todo o resto, certo? Parecia um argumento válido, mas o

pensamento azedou o meu estômago.

Havia outro pensamento preocupante arranhando o fundo da minha mente. Por

quanto tempo Patch e eu poderíamos viver uma mentira... e não deixá-la tornar-se

verdade?

Cinco horas da manhã de segunda-feira chegou muito cedo. Eu bati no meu

alarme, cortando-o no meio da música. Então eu me virei e disse a mim mesma:

Mais dois minutos. Fechei os olhos, deixei a minha mente voar, vi um novo sonho

começar a tomar forma... e quando percebi, um punhado de roupas era jogado

sobre o meu rosto.

— Levante e acorde — disse Dante, de pé ao lado da minha cama, no escuro.

— O que você está fazendo aqui? — Eu gritei grogue, arrebatando meu cobertor e

puxando-o para cima.

— Fazendo o que qualquer personal trainer decente faria. Tire sua bunda da cama

e comece a se vestir. Se você não estiver na calçada em três minutos, eu vou voltar

com um balde de água fria.

— Como foi que você entrou?

— Você deixou sua janela destrancada. Pode querer parar com esse hábito. Difícil

de controlar o que vem de fora quando você dá ao mundo um passe livre.

Ele caminhou em direção a porta do meu quarto bem quando eu vacilava para fora

da cama.

— Você está louco? Não use o corredor! Minha mãe pode ouvir você. Um cara

fazendo o que parece ser a “caminhada da vergonha” para fora da porta do meu

quarto? Eu vou ficar de castigo para o resto da vida!

Ele parecia estar se divertindo.

— Para o seu registro, eu não ficaria envergonhado.

Eu fiquei parada no lugar por mais dez segundos após a sua saída, me

perguntando se eu deveria compreender mais profundamente as suas palavras.

Claro que não. Sua fala poderia ter parecido como um flerte, mas não foi. Fim da

história.

Eu coloquei minhas leggings pretas e uma camisa elástica de microfibra, alisando o

meu cabelo em um rabo de cavalo. No mínimo eu ficaria bonita enquanto Dante

me arremessasse no chão.

Exatamente três minutos depois, eu o encontrei na entrada da garagem. Eu olhei

ao redor, sentindo a ausência de algo importante.

— Onde está o seu carro?

Dante me deu um soco de leve no ombro.

— Sentindo-se preguiçosa? Tsk, tsk. Pensei que nós poderíamos nos aquecer com

uma corrida refrescante de 16 quilômetros. — Ele apontou para a área densamente

arborizada do outro lado da rua. Quando crianças, Vee e eu tínhamos explorado os

bosques, e até construímos um forte num verão, mas eu nunca tinha tido tempo

para me perguntar até onde eles iam. Aparentemente, pelo menos dezesseis

quilômetros. — Depois de você.

Eu hesitei. Eu não me sentia bem em correr na imensidão com Dante. Ele tinha sido

um dos principais homens de Hank... razão suficiente para não gostar ou confiar

nele. Em retrospecto, eu nunca deveria ter concordado em treinar sozinha com ele,

especialmente se a nossa arena de treinamento era erma.

— Após o treinamento, provavelmente devíamos examinar o feedback que estou

recebendo de vários Grupos Nephilim sobre moral, expectativas, e você. — Dante

acrescentou.

Após o treinamento. Isto significava que ele não tinha intenção de me descartar no

fundo de um galpão abandonado na próxima hora. Além disso, Dante responde à

mim agora. Ele tinha jurado lealdade. Não mais tenente de Hank, ele agora era

meu. Ele não se atreveria a me prejudicar.

Permitindo-me o luxo de um pensar pela última vez em um sono feliz, eu retirei a

fantasia e corri para a onde as árvores começavam. Os ramos das árvores se

esticavam como um dossel acima, impedindo os poucos vestígios da luz do início

do dia que o céu poderia ter a oferecer. Baseando-me em minha visão Nephilim

elevada, corri arduamente, saltando sobre árvores caídas, esquivando dos ramos

baixos, e mantendo meus olhos atentos às rochas afiadas submersas e outros

detritos camuflados. O chão era traiçoeiramente desigual, e na velocidade que eu

viajava, um passo falso poderia ser desastroso.

— Mais rápido! — Dante gritou atrás de mim. — Pise mais leve com seus pés. Você

parece um rinoceronte em debandada. Eu poderia te encontrar e pegá-la com os

olhos fechados!

Tomei suas palavras a sério, levantando meus pés no momento em que batiam no

chão, repetindo este processo a cada passo, concentrando-me e tornando-me o

mais silenciosa e indetectável quanto possível. Dante correu à frente, me passando

com facilidade.

— Me pegue! — ordenou.

Correndo atrás dele, fiquei maravilhada com a força e agilidade do meu novo

corpo Nephilim. Fiquei impressionada pela forma como o meu desajeitado, lento e

descoordenado corpo humano tinha sido em comparação. Meu atletismo não

estava meramente melhorado, estava superior.

Eu mergulhei por baixo de ramos, pulei sobre fossas, e disparei em volta de

pedregulhos como se fosse uma pista de obstáculos que eu tinha há muito tempo

memorizado. E embora eu sentisse como se estivesse correndo rápido o suficiente

para decolar e voar para o céu a qualquer momento, meu ritmo ficava para trás de

Dante. Ele se movia como um animal, ganhando o impulso de um predador que

persegue sua próxima refeição. Logo eu o perdi de vista completamente.

Eu diminuí, forçando meus ouvidos. Nada. Momento depois ele saltou adiante para

fora da escuridão.

— Isso foi patético — criticou. — Mais uma vez.

Passei as duas horas seguintes correndo atrás dele e ouvindo as mesmas diretrizes

repetidas vez atrás de outra: Mais uma vez. E mais uma vez. Ainda não está certo,

faça mais uma vez.

Eu estava prestes a desistir (os músculos da minha perna tremiam de exaustão e

meus pulmões pareciam arranhados) quando Dante circulou de volta. Ele me deu

um tapinha de felicitações no ombro.

— Bom trabalho. Amanhã nós vamos mudar para o treinamento de força.

— Oh? Levantando pedras? — Consegui falar cinicamente, ainda que travada e

com dificuldades.

— Arrancando árvores.

Eu olhei para ele.

— Empurrando-as — ele elaborou alegremente. — Tenha uma noite inteira de

sono... você vai precisar.

— Ei! — Eu gritei para ele. — Não estamos ainda a quilômetros da minha casa?

— Oito, na verdade. Considere isso como a sua caminhada para relaxar.

CAPÍTULO

5

DOZE HORAS DEPOIS, EU ESTAVA RÍGIDA E DOLORIDA POR causa do exercício dessa

manhã, tendo cuidado ao subir e descer as escadas, que pareciam dar aos meus

músculos a pior dor. Mas qualquer descanso e repouso teria que esperar; Vee viria

me buscar em dez minutos, e eu ainda não tinha tirado o moletom que passei o dia

usando.

Patch e eu decidimos encenar nossa briga publicamente hoje à noite, então não

haveria nenhuma dúvida sobre o estado do nosso relacionamento: nós tínhamos

nos separado e estávamos firmemente em lados opostos nessa guerra de

preparação. Nós também optamos por fazer nossa cena no Devil’s Handbag,

sabendo que os Nephilim iam lá para se encontrar. Embora nós não soubéssemos

as identidades dos Nephilim que me atacaram, ou se eles estariam lá esta noite,

Patch e eu estávamos certos de que a notícia do nosso término se espalharia

rápido. Por fim, Patch tinha descoberto que o barman escalado para trabalhar no

turno da noite era um Nephilim supremacista de temperamento forte. Vital, Patch

me assegurou, para o nosso plano.

Eu tirei o meu moletom e coloquei um vestido volumoso de tricô de ponto

trançado, meia-calça, e ankle boots. Eu prendi meu cabelo em um coque baixo,

soltando algumas partes para moldar meu rosto. Exalando, eu encarei o meu

reflexo no espelho e fabriquei um sorriso. Depois de tudo, eu não parecia nada mal

para uma garota que estava prestes a se envolver em uma briga devastadora com o

amor de sua vida.

As consequências da briga de hoje à noite só têm que durar algumas semanas, eu

disse para mim mesma. Apenas até que toda essa bagunça de Cheshvan acabe.

Ademais, a briga não era real. Patch me prometeu que nós encontraríamos

maneiras para nos encontrar. Em momentos secretos e olhares roubados. Nós

apenas teríamos que ser muitos cuidadosos.

— Nora! — minha mãe me chamou pela escada. — Vee está aqui.

— Me deseje sorte — eu murmurei para o meu reflexo, então apanhei meu casaco

e cachecol e desliguei a luz do quarto.

— Eu quero você em casa as nove — minha mãe me disse quando eu desci para a

sala de estar. — Sem exceções. É noite de escola.

Eu a beijei na bochecha e empurrei a porta para fora.

Vee estava com as janelas do Neon abertas, e estava tocando Rihanna no som. Eu

sentei no banco do passageiro e falei por sobre a música:

— Eu estou surpresa que sua mãe tenha deixado você sair em uma noite de escola.

— Ela teve que viajar para Nebrasca. O tio dela, Marvin, morreu e eles estão

dividindo a sua propriedade. Tia Henny está cuidando de mim. — Vee olhou para o

lado e seu sorriso era travesso.

— A sua tia Henny não estava na reabilitação há alguns anos ?

— Essa mesma. Pena que não adiantou. Ela tem um galão de suco de maça na

geladeira, mas é o suco de maça mais fermentado que eu já provei.

— E a sua mãe a considerou responsável o suficiente para cuidar de você?

— Acho que a perspectiva de conseguir algum dinheiro do tio Marvin a suavizou.

Nós descemos pela Hawthorne, cantando as letras e dançando em nossos lugares.

Eu estava impaciente e nervosa, mas achei que era melhor agir como se nada

estivesse fora do normal.

O Devil’s Handbag estava apenas moderadamente cheio essa noite, um público

decente, mas todos não precisavam ficar de pé. Vee e eu encontramos uma mesa,

nos livramos dos nossos casacos e bolsas, e pedimos coca-cola para uma

garçonete que passava por ali. Disfarçadamente, procurei por Patch, mas ele não

tinha aparecido. Eu tinha ensaiado minhas falas vezes demais para contar, mas

minhas palmas ainda estavam suando. Eu as enxuguei na minha meia-calça,

desejando ser uma atriz melhor. Desejando que eu gostasse de drama e atenção.

— Você não parece bem — Vee disse.

Eu estava prestes a fazer uma piada sobre como a sua falta de sutileza ao dirigir

tinha me deixado enjoada, quando os olhos de Vee passaram por mim e a

expressão dela azedou.

— Ah, diabos não. Me diga que não é Marcie Millar flertando com o meu homem.

Eu estiquei o meu pescoço em direção ao palco. Scott e os outros membros da

banda Serpentine estavam no palco se preparando para o show, enquanto Marcie

apoiava seus cotovelos lindamente no palco, chamando Scott para uma conversa.

— O seu homem? — eu perguntei para Vee.

— Vai ser em breve. Não faz diferença.

— Marcie flerta com todo mundo. Eu não me preocuparia quanto a isso.

Vee respirou fundo, o que na verdade fez as narinas dela se alargarem. Marcie,

como se sentindo a vibração negativa de Vee como um vodu, olhou em nossa

direção. Ela nos deu o seu melhor aceno de miss.

— Faça alguma coisa — Vee me disse. — Afaste ela dele. Agora.

Eu saltei e caminhei até Marcie. No caminho, eu abri um sorriso. No momento em

que eu cheguei perto dela, eu tinha certeza que parecia quase verdadeiro.

— Oi — eu falei para ela.

— Oh, oi, Nora. Eu estava apenas dizendo para o Scott o quanto eu gosto de

música indie. Ninguém nessa cidade se importa com nada. Eu acho que é legal ele

tentar seguir o estrelato.

Scott piscou para mim. Eu tive que fechar os meus olhos brevemente para não rolá-

los.

— Então... — eu falei, lutando para preencher o lapso na conversa. A mando de

Vee, eu tinha vindo aqui, mas e agora? Eu não poderia simplesmente arrastar

Marcie para longe de Scott. E por que eu estava aqui bancando a juíza? Isso era

problema da Vee, não meu.

— Nós podemos conversar? — Marcie me perguntou, me salvando de ter que bolar

uma tática eu mesma.

— Claro, eu tenho um minuto — eu disse. — Por que nós não vamos para um lugar

mais calmo?

Como se estivesse lendo minha mente, Marcie agarrou meu pulso e me levou até a

porta dos fundos e depois para o beco. Depois de olhar para os dois lados para ter

certeza que estávamos sozinhas, ela disse:

— O meu pai te contou alguma coisa sobre mim? — ela baixou sua voz ainda mais.

— Sobre ser Nephilim, eu quero dizer. Eu tenho me sentido esquisita ultimamente.

Cansada e com cólica. Isso é algum tipo estranho de menstruação Nephilim?

Porque eu pensei que eu já tinha passado por isso.

Como eu iria dizer para Marcie que Nephilim de raça pura, como os pais dela,

raramente acasalavam com sucesso, e quando eles conseguiam, a prole era fraca e

doente, e que algumas das palavras finais de Hank para mim incluíam a verdade

sombria que Marcie provavelmente não viveria muito tempo?

Em resumo, eu não poderia.

— Algumas vezes eu me sinto cansada e com cólica também — eu disse — Eu

acho que é normal...

— Sim, mas o meu pai disse alguma coisa sobre isso? — ela pressionou. — O que

esperar, como lidar, esse tipo de coisa.

— Eu acho que seu pai amava você e queria que você continuasse vivendo a sua

vida, sem se estressar com essa coisa de Nephilim. Ele queria que você fosse feliz.

Marcie me olhou incrédula.

— Feliz? Eu sou uma aberração. Eu não sou nem mesmo humana. E não pense por

um minuto que eu esqueci que você também não é. Nós estamos nisso juntas. —

Ela apontou acusadoramente para mim.

Ai, minha nossa. Justamente o que eu precisava. Solidariedade… com Marcie Millar.

— O que você realmente quer de mim, Marcie? — eu perguntei.

— Eu quero ter certeza que você entende que se você insinuar, mesmo que de leve,

para alguém que eu não sou humana, eu vou queimar você. Eu vou te enterrar viva.

Eu estava perdendo a paciência.

— Primeiro, se eu quisesse anunciar para o mundo que você é Nephilim, eu já teria

feito. E segundo, quem acreditaria em mim? Pense sobre isso “Nephilim” não é

uma palavra cotidiana no dicionário da maioria das pessoas que nós conhecemos.

— Ok — Marcie bufou, aparentemente satisfeita.

— Já acabamos?

— E se eu precisar de alguém para conversar? — ela persistiu. — Não é como se eu

pudesse contar isso para o meu psiquiatra.

— Hm, sua mãe? — Eu sugeri. — Ela é uma Nephilimtambém, lembra?

— Desde que o meu pai desapareceu, ela se recusou a aceitara verdade sobre ele.

Está ocorrendo momentos de negação séria. Ela está convencida que ele vai voltar,

que ele ainda ama ela, que ele vai anular o divórcio, e que nossas vidas voltarão a

ser floridas como antes.

Negação, talvez. Mas eu não duvidaria que Hank tivesse enganado sua ex-mulher

com um encantamento tão poderoso que seus efeitos duraram além de sua morte.

Hank e a vaidade andavam juntos como meias combinando. Ele não teria querido

que alguém falasse mal de sua memória. E até onde eu sabia, ninguém em

Coldwater tinha. Era como se uma névoa entorpecente tivesse se assentado sobre a

comunidade, fazendo com que moradores humanos e Nephilim não perguntassem

sobre o que tinha acontecido com ele. Não havia uma única história percorrendo a

cidade. As pessoas, quando falavam dele, apenas murmuravam “Que choque. Que a

alma dele descanse em paz. Pobre família, deveria perguntar como eu posso

ajudar...”

Marcie continuou:

— Mas ele não irá voltar. Ele está morto. Eu não sei como ou por que ou quem fez

isso, mas de jeito nenhum meu pai iria desaparecer a menos que algo acontecesse.

Ele está morto. Eu sei disso.

Eu tentei manter minha expressão compreensiva, mas minhas palmas começaram a

suar de novo. Patch era a única pessoa na Terra que sabia que eu tinha mandado

Hank para a sepultura. Eu na tinha a intenção de adicionar o nome de Marcie na

lista privilegiada.

— Você não parece tão arrasada quanto a isso — eu disse.

— Meu pai estava metido em algumas coisas muito ruins. Ele mereceu.

Eu poderia ter me aberto com Marcie bem ali, mas algo não parecia certo. O seu

olhar cínico nunca vacilou do meu rosto, e eu tinha a sensação de que ela

suspeitava que eu sabia algo importante sobre a morte do pai dela, e a sua

indiferença era uma ato para conseguir que eu revelasse.

Eu não iria cair na armadilha, se é o que isso era.

— Não é fácil perder seu pai, acredite em mim — eu disse. — A dor nunca

desaparece de verdade, mas acabará se tornando suportável. E, de alguma maneira,

a vida continua.

— Eu não estou procurando por um cartão de simpatia, Nora.

— Está bem — eu disse com um relutante encolher de ombros. — Se você precisar

conversar, eu acho que você pode me ligar.

— Eu não vou precisar. Eu estou indo morar com você. — Marcie anunciou. — Eu

vou levar minhas coisas ainda essa semana. Minha mãe está me enlouquecendo, e

nós duas concordamos que eu preciso de outro lugar para ficar por um tempo. A

sua casa é tão boa quanto qualquer outra. Bem, eu pelo menos estou feliz que nós

tivemos essa conversa. Se tem alguma coisa que meu pai me ensinou, é que

Nephilim ficam juntos.

CAPÍTULO

6

N

ÃO — EU NEGUEI AUTOMATICAMENTE. — NÃO, NÃO, NÃO. VOCÊ não pode

simplesmente... ir morar comigo. — Um sentimento de puro pânico se intensificou

das pontas dos meus pés até os meus ouvidos, me golpeando mais rápido do que

eu poderia conter. Eu precisava de um argumento. Agora. Mas o meu cérebro

continuava enviando o mesmo pensamento frenético e completamente inútil: Não.

— Eu já decidi — Marcie disse, e foi para dentro.

— E quanto a mim? — Eu gritei. Eu chutei a porta, mas o que eu realmente senti

vontade era de chutar eu mesma por uma ou duas horas. Eu tinha feito uma favor

para Vee e olhe onde eu acabei.

Eu abri a porta e marchei para dentro. Eu encontrei Vee na nossa mesa.

— Para onde ela foi? — eu perguntei.

— Quem?

— Marcie!

— Eu pensei que ela estivesse com você.

Eu dei a Vee o meu melhor olhar indignado.

— É tudo sua culpa! Eu tenho que encontrá-la.

Sem mais explicações, eu passei pela multidão, com os olhos alertas e atenta a

qualquer sinal de Marcie. Eu precisava resolver isso antes que ficasse totalmente

fora de controle. Ela está testando você, eu disse para mim mesma. Tentando

descobrir o que está acontecendo. Nada está decidido. Além disso, minha mãe

tinha a palavra final sobre isso. E ela não iria deixar Marcie morar conosco. Marcie

tinha a sua própria família. Ela tinha apenas a sua mãe, claro, mas eu era

testemunha de que família era muito mais do que números. Animada com esse

pensamento, eu senti que minha respiração começava a se acalmar.

As luzes se apagaram e o vocalista da banda Serpentine pegou o microfone,

balançando a cabeça em um ritmo silencioso. Aproveitando a deixa, o baterista

tocou uma introdução, e Scott e o outro guitarrista se juntaram, começando o

show com uma música violenta e angustiante. A plateia foi à loucura, balançando a

cabeça e cantando a música. Eu dei uma última olhada frustrada procurando por

Marcie, então desisti. Eu teria que resolver as coisas com ela mais tarde. O começo

do show era o sinal para eu encontrar Patch no bar, e, bem assim, meu coração

voltou a se agitar no meu peito.

Eu fui para o bar e peguei o primeiro banquinho que eu vi. Eu sentei com um

pouco de força demais, perdendo o equilíbrio no último segundo. Minhas pernas

pareciam que eram feitas de borracha, e meus dedos tremiam. Eu não sabia como

eu iria passar por isso.

— Identidade, querida? — o barman perguntou. Uma corrente elétrica vibrava dele,

me alertando que ele era Nephilim. Exatamente como Patch disse que ele seria.

Eu balancei minha cabeça.

— Apenas uma Sprite, por favor.

Nem um segundo depois, eu senti Patch atrás de mim. A energia que irradiava dele

era, de longe, mais forte que a do barman, deslizando como calor pela minha pele.

Ele sempre tinha aquele efeito em mim, mas ao contrário do habitual, hoje à noite

a corrente de calor me deixou doente de ansiedade. Isso significava que Patch

tinha chegado, e que eu estava sem tempo. Eu não queria seguir em frente com

isso, mas eu entendia que eu realmente não tinha uma escolha. Eu tinha que fazer

isso de forma inteligente, pela minha segurança e pela das pessoas que eu mais

amava.

Preparada? Patch me perguntou na privacidade dos nossos pensamentos.

Se o fato de que eu estou sentindo que vou vomitar a qualquer momento significa

preparada, claro.

Eu vou até a sua casa mais tarde e nós conversamos sobre isso. Agora, vamos

simplesmente acabar com isso.

Eu concordei com a cabeça.

Assim como nós ensaiamos, ele falou calmamente na minha mente.

Patch? Não importa o que aconteça, eu amo você. Eu queria dizer mais, essas três

palavras pareciam lamentavelmente inadequadas comparadas ao jeito que eu me

sentia sobre ele. E ao mesmo tempo, tão simples e precisas, nada mais poderia ser

dito.

Sem arrependimentos, Anjo.

Nenhum, eu respondi.

O barman terminou de atender um cliente e se aproximou para pegar o pedido de

Patch. Seus olhos analisaram Patch, e pela carranca que logo apareceu em seu

rosto, era óbvio que ele tinha percebido que Patch era um anjo caído.

— O que você vai querer? — ele perguntou, seu tom cortante, enquanto ele

limpava as mãos em um pano de prato.

Patch falou com uma inconfundível voz de bêbado:

— Uma linda ruiva, de preferência alta e magra, com pernas que um homem não

consegue achar o final. — Ele traçou o dedo pela minha bochecha, e eu fiquei

tensa e me afastei.

— Não estou interessada — eu disse, tomando um gole de Sprite e fixando meu

olhar na parede espelhada atrás do bar. Eu soei ansiosa o suficiente para chamar a

atenção do barman.

Ele inclinou-se sobre o bar, descansando os seus enormes antebraços no balcão de

granito, e encarou Patch.

— Na próxima vez, olhe o menu antes de você desperdiçar o meu tempo. Nós não

oferecemos garotas desinteressadas, ruivas ou sei lá o que. — Ele deu uma pausa

com efeito ameaçador, e então encaminhou-se para o próximo cliente.

— E se ela é Nephilim, melhor ainda — Patch anunciou, bêbado.

O barman parou, os olhos brilhando com malícia.

— Você se importa de manter a sua voz baixa, camarada? Nós estamos em um

local misto. Esse lugar é aberto para humanos, também.

Patch ignorou o aviso com um aceno com o braço.

— Legal da sua parte se preocupar com os humanos, mas basta um truque de

mente depois e eles não lembrarão uma palavra que eu disse. Já fiz o truque tantas

vezes que eu consigo fazer isso até quando estou dormindo — ele disse, deixando

um pouco de arrogância fluir na sua voz.

— Você quer esse idiota fora daqui? — o barman me perguntou. — É só dizer e eu

vou chamar o segurança.

— Eu agradeço a sua oferta, mas eu posso lidar com isso eu mesma — eu disse a

ele. — Você terá que desculpar o meu ex-namorado por ser um total idiota.

Patch riu.

— Idiota? Não foi disso que você me chamou na última vez que estivemos juntos

— ele disse sugestivamente.

Eu apenas o encarei, enojada.

— Ela nem sempre foi uma Nephilim, sabe — Patch disse para o barman com uma

nostalgia melancólica. — Talvez você tenha ouvido sobre ela. A herdeira de Mão

Negra. Eu gostava mais dela quando ela era humana, mas há um certo prestígio em

andar por aí com a Nephilim mais famosa da Terra.

O barman me olhou especulativamente.

— Você é a filha de Mão Negra?

Eu olhei para Patch.

— Obrigada por isso.

— É verdade que Mão Negra está morto? — o barman perguntou. — Eu não

consigo nem compreender isso. Um grande homem, que a alma dele descanse em

paz. Minhas condolências à sua família. — Ele pausou, aturdido. — Mas morto...

realmente morto?

— É verdade — eu murmurei calmamente. Eu não conseguia nem derramar uma

lágrima por Hank, mas eu falei com uma melancólica reverência que pareceu

satisfazer o barman.

— Uma rodada de bebida de graça para o anjo caído que matou ele — Patch

interrompeu, levantando o meu copo em um brinde. — Eu acho que nós todos

podemos concordar que foi isso o que aconteceu. Imortal já não tem mais o

mesmo significado de antes. — Ele riu, batendo o punho no balcão em

comemoração.

— E você costumava namorar esse porco? — o barman me perguntou.

Eu dei uma olhada em Patch e franzi a testa.

— Um erro que eu reprimi.

— Você sabe que ele é um — o barman baixou a voz — anjo caído, certo?

Outro gole e uma tragada difícil.

— Nem me lembre disso. Eu consertei meus erros... meu novo namorado é Dante

Matterazzi, cem por cento Nephilim. Talvez você já tenha ouvido sobre ele? — Não

existia momento melhor que o presente para começar um rumor.

Seus olhos iluminaram, impressionado.

— Claro, claro. Ótimo cara. Todo mundo conhece Dante.

Patch fechou sua mão sobre o meu pulso com muita força para ser carinhoso.

— Ela entendeu tudo errado. Nós ainda estamos juntos. O que você acha de nós

irmos embora daqui, doçura?

Eu me afastei de seu toque, como se tivesse levado um choque.

— Tire as suas mãos de mim.

— Eu estou com a minha moto lá fora. Me deixe te levar para um passeio. Pelos

velhos tempos. — ele se levantou, e então me puxou do banco tão bruscamente

que ele caiu.

— Chame o segurança, — Eu pedi ao barman, deixando a ansiedade inundar a

minha voz. — Agora.

Patch me arrastou em direção à porta da frente, e enquanto eu dava um show

convincente tentando me soltar, eu sabia que o pior ainda estava por vir.

O segurança do clube, um Nephil que não tinha a vantagem apenas de ser vários

centímetros maior que Patch, mas também de ter vários quilos a mais, abriu

caminho em nossa direção. Ele agarrou Patch pelo colarinho, afastando ele de mim

e o jogando na parede. A banda Serpentine estava agitando, abafando a briga, mas

aqueles que estavam por perto se separaram, formando um semicírculo de curiosos

ao redor dos dois homens.

Patch levantou as mãos no nível dos ombros dele. Ele deu um sorriso breve e

embriagado.

— Eu não quero nenhum problema.

— Tarde demais — o segurança disse, e esmagou o punho dele no rosto de Patch.

A pele acima da sobrancelha de Patch se cortou, escorrendo sangue, e eu me

esforcei para não estremecer ou ir até ele.

O segurança sacudiu a cabeça em direção à porta.

— Se você aparecer aqui de novo, você vai arranjar problemas bem rápido. Você

entendeu?

Patch tropeçou em direção à porta, dando ao segurança uma saudação desleixada.

— Sim, sim, senhor.

O segurança colocou o pé na dobra do joelho de Patch, o fazendo tropeçar pelo

chão de cimento.

— Olhe só para isso. Meu pé escorregou.

Um homem perto da porta riu, baixo e áspero, e o som chamou minha atenção.

Essa não era a primeira vez que eu escutava aquela risada. Quando eu era humana,

eu não teria reconhecido, mas todos os meus sentidos estavam aguçados agora. Eu

olhei através da escuridão, tentando ligar a risada amargurada com um rosto.

Lá.

Chapéu de Caubói. Ele não estava usando um chapéu ou óculos de sol essa noite,

mas eu conseguiria reconhecer aqueles ombros curvados e aquele sorriso

sarcástico em qualquer lugar.

Patch! Eu gritei, incapaz de ver se ele ainda estava dentro do alcance auditivo

enquanto a multidão a minha volta estava ocupando os lugares vazios agora que a

luta tinha acabado. Um dos Nephilim da cabana. Ele está aqui! Ele está perto da

porta, usando uma camisa vermelha e preta de flanela, jeans, e botas de caubói.

Eu esperei, mas não obtive nenhuma resposta.

Patch! Eu tentei novamente, usando todo o poder mental que eu tinha. Eu não

poderia seguir ele até lá fora... não se eu queria manter a farsa.

Vee apareceu ao meu lado.

— O que está acontecendo aqui? Todo mundo está falando sobre uma briga. Eu

não posso acreditar que eu perdi isso. Você viu alguma coisa?

Eu a puxei para o lado.

— Eu preciso que você faça uma coisa para mim. Está vendo o cara perto da porta,

usando camisa de flanela, parecendo um jeca? Eu preciso que você descubra o

nome dele.

Vee franziu a testa.

— Do que se trata isso?

— Eu irei explicar mais tarde. Flerte, roube a carteira dele, qualquer coisa. Apenas

não mencione o meu nome, ok?

— Se eu fizer isso, eu quero um favor em troca. Um encontro duplo. Você e o seu

namorado maluco, e eu e o Scott.

Sem tempo para explicar que eu e Patch tínhamos acabado, eu disse:

— Sim. Agora se apresse antes que nós o percamos na multidão.

Vee estalou os dedos e se afastou. Eu não fiquei por perto para ver como ela se

saiu. Eu andei através da multidão, passando pela porta dos fundos e correndo

para o beco. Eu dei a volta no prédio, procurando em ambos os lados por Patch.

Patch! Eu gritei para as sombras.

Anjo? O que você está fazendo? Não é seguro se nós formos vistos juntos.

Eu me virei, mas Patch não estava lá. Onde você está?

No outro lado da rua. Na van.

Eu olhei para o outro lado da rua, e havia mesmo uma van Chevy marrom

enferrujada estacionada no meio-fio. Estava misturada ao pano de fundo dos

prédios dilapidados. As janelas foram escurecidas, protegendo o interior da cabine

de olhares curiosos.

Um dos Nephilim da cabana está no Devil’s Handbag!

Um momento pesado de silêncio.

Ele viu a briga? Patch me perguntou depois de um tempo.

Sim.

Como ele se parece?

Ele está usando uma camisa de flanela preta e vermelha e botas de caubói.

Faça com que ele saia do prédio. Se os outros da cabana estão com ele, faça com

que eles saiam também. Eu quero conversar com eles.

Vindo de Patch, isso soou ameaçador, mas eles mereciam. Eles perderam a minha

compaixão no momento em que eles me jogaram dentro da van deles.

Eu corri de volta para dentro do Devil’s Handbag e fui em direção à multidão que

se aglomerava ao redor do placo. Serpentine ainda estava arrasando, tocando uma

música lenta que agitou todo mundo. Eu não sabia como eu conseguiria fazer o

Chapéu de Caubói deixar o local, mas eu conhecia uma pessoa que poderia me

ajudar a esvaziar todo o local.

Scott! Eu gritei. Mas foi inútil. Ele não conseguia me ouvir por causa da música

ensurdecedora. E provavelmente não ajudou o fato de que ele estava

profundamente concentrado.

Eu me levantei na ponta dos pés e procurei por Vee. Ela estava vindo pra cá.

— Eu utilizei todo o meu charme, mas ele não estava interessado — ela me disse.

— Talvez eu precise de um novo corte de cabelo. — Ela cheirou suas axilas. — Até

onde eu posso dizer, o desodorante ainda está funcionando.

— Ele te deu um fora?

— Sim, e eu não consegui o nome dele também. Isso significa que o nosso

encontro duplo está cancelado?

— Eu já volto — eu disse, e fui em direção ao beco novamente. Eu tinha toda a

intenção de chegar perto o suficiente de Patch para falar em sua mente que forçar

o nosso amigo Nephil a sair do Devil’s Handbag iria ser mais difícil do que eu

esperava, quando duas figuras sombrias em pé na varanda traseira do prédio ao

lado, conversando em voz baixa, me fizeram parar abruptamente.

Pepper Friberg e... Dabria.

Dabria costumava ser um anjo da morte, e namorou Patch antes de ambos serem

banidos do paraíso. Patch tinha jurado que a relação entre eles era chata, casta e

mais uma conveniência do que qualquer outra coisa. Ainda assim. Depois de

decidir que eu era uma ameaça para os seus planos de reacender a relação deles

aqui na Terra, Dabria tentou me matar. Ela era legal, loira e sofisticada. Eu nunca

tinha visto ela com o cabelo feio, e o seu sorriso tinha a capacidade de preencher

as minhas veias com gelo. Agora um anjo caído, ela ganhava a vida enganando

vítimas com a falsa pretensão de ter o dom da clarividência. Ela era um dos anjos

caídos mais perigosos que eu conhecia, e eu não tinha dúvidas de que eu estava no

topo da lista das pessoas que ela odiava.

Instantaneamente eu recuei contra o Devil’s Handbag. Eu segurei a minha

respiração por cinco segundos, mas nem Pepper ou Dabria pareceram me notar. Eu

cheguei mais perto, mas eu não brinquei com a minha sorte. No momento em que

eu conseguisse chegar perto o suficiente para ouvir o que eles estavam dizendo,

um ou ambos iriam notar a minha presença.

Pepper e Dabria conversaram por alguns minutos a mais antes de Dabria girar

sobre seus calcanhares e se afastar pelo beco. Pepper fez um gesto obsceno pelas

costas dela. Apenas eu que achava, ou ele parecia especialmente descontente?

Eu esperei até Pepper ir embora também antes de sair das sombras. Fui

diretamente para dentro do Devil’s Handbag. Encontrei Vee na nossa mesa e me

sentei ao lado dela.

— Eu preciso esvaziar esse lugar agora — eu disse.

Vee piscou.

— O quê?

— E se eu gritar “fogo”? Será que funciona?

— Gritar “fogo” parece um pouco antiquado. Você poderia tentar gritando

“polícia”, mas isso cai na mesma categoria. Não que eu tenha qualquer coisa contra

coisas antiquadas. Mas qual é a pressa? Eu não acho que o Serpentine esteja

tocando tão mal assim.

— Eu irei explicar…

— Mais tarde. — Vee acenou. — Eu sabia que ia dizer isso. Se fosse eu, eu gritaria

“polícia”. Devem ter mais do que algumas poucas pessoas fazendo coisas ilegais

nesse lugar. Grite “polícia!” e você verá o movimento.

Eu mordi nervosamente o meu lábio, pensando.

— Você tem certeza? — Esse parecia um plano que tinha um grande potencial de

explodir na minha cara. Mas também, eu estava sem opções. Patch queria conversar

com o Chapéu de Caubói, e era isso o que eu queria também. Eu também queria

acabar com o interrogatório rapidamente, para que então eu pudesse contar para

Patch sobre Dabria e Pepper.

Vee disse:

— Trinta e cinco por cento de certeza...

Sua voz sumiu enquanto um ar frio tomava o lugar. No começo eu não consegui

afirmar se a queda brusca de temperatura vinha da porta, que tinha sido aberta, ou

da minha própria resposta física para intuitivamente sentir problemas... da pior

espécie.

Anjos caídos encheram o Devil’s Handbag. Eu perdi a conta no número dez, sem

nenhum sinal de que havia um fim em seus números. Eles se moveram tão rápido

que eu vi apenas borrões de movimento. Eles vieram preparados para brigar,

balançando facas e com as articulações dos dedos portando aço, tirando qualquer

coisa que estivesse em seu caminho. Entre a briga, eu olhava impotente enquanto

dois garotos Nephil caíram de joelhos, inutilmente resistindo aos anjos caídos que

estavam em pé sobre eles, claramente exigindo seus juramentos de fidelidade.

Um anjo caído, magro e pálido como a lua, bateu seu braço no pescoço de uma

menina Nephil tão violentamente, que ele o quebrou no meio do seu grito.

Ele inspecionou o rosto da menina, que estranhamente parecia o meu próprio, à

distância. O mesmo cabelo longo e cacheado. Ela também tinha quase a minha

altura e forma.

Ele estudou o seu rosto e rosnou impacientemente. Seus olhos gélidos vasculharam

a multidão, e eu tive a sensação de que ele estava caçando a sua próxima vítima.

— Nós precisamos sair daqui — Vee disse urgentemente, segurando a minha mão

com força. — Por aqui.

Antes que eu pudesse perguntar se Vee, também, tinha visto que o anjo caído

quebrou o pescoço da menina, e se ela tinha visto, como ela estava possivelmente

permanecendo tão calma, ela me empurrou para frente entre a multidão.

— Não olhe para trás — ela berrou no meu ouvido. — E ande depressa.

Andar depressa. Certo. O problema era que nós estávamos competindo com pelo

menos umas cem pessoas para conseguir chegar até a porta. Em questão de

segundos, a multidão tinha enlouquecido, empurrando e lutando para chegar a

uma saída. A banda Serpentine tinha parado no meio da música. Não tinha tempo

para voltar para Scott. Eu só poderia esperar que ele conseguisse escapar pelas

portas do palco.

Vee ficou atrás de mim, me empurrando tantas vezes por trás que eu imaginei se

ela estava tentando proteger o meu corpo. Mal ela sabia que eu tentaria protege

ela se os anjos caídos fossem atrás de nós. E apesar da minha única (porém

torturante) sessão de treinamento com Dante essa manhã, eu não achava que eu

teria alguma chance de sucesso.

A tentação de voltar e lutar cresceu de repente dentro de mim. Nephilim tinham

direitos. Eu tinha direitos. Nossos corpos não pertenciam aos anjos caídos. Eles não

tinham um motivo justo para nos possuir. Eu tinha, apressadamente, prometido aos

arcanjos que eu pararia a guerra, mas eu tinha um interesse pessoal no resultado.

Eu queria guerra, e queria liberdade, de modo que eu nunca, nunca teria que me

ajoelhar e prometer o meu corpo para outra pessoa.

Mas como eu poderia conseguir o que eu queria, e acalmar os arcanjos?

No fim, Vee e eu mergulhamos no ar frio da noite. A multidão fugiu na escuridão

pelos dois lados da rua. Sem parar para recuperar o fôlego, nós corremos em

direção ao Neon.

CAPÍTULO

7

VEE ESTACIONOU O NEON NA ENTRADA DA GARAGEM DA casa da fazenda e desligou

o som.

— Bem, aquilo foi loucura o bastante para uma noite — ela disse. — O que foi

aquilo? Greasers contra Socs?

Eu estava segurando minha respiração, mas eu exalei suavemente em alívio. Nada

de hiperventilar. Nada de gestos histéricos. Nada de mencionar pescoços

quebrados. Felizmente, Vee não tinha visto o pior. — Olha quem fala. Você nunca

leu Outsiders – Vidas Sem Rumo.

— Eu vi o filme. Matt Dillon era gostoso antes de envelhecer.

O carro foi tomado por um silêncio espesso e expectante.

— Ok, chega de papo furado — Vee disse. — A conversinha acabou. Desembucha.

— Quando eu hesitei, ela adicionou — Aquilo que aconteceu lá foi uma loucura,

mas algo estava errado bem antes daquilo. Você estava agindo de maneira

esquisita toda a noite. Eu vi você correndo para dentro e para fora do Devil’s

Handbag. E então, de repente, você quis esvaziar o lugar. Eu tenho que te dizer,

querida. Eu preciso de uma explicação.

Foi aí que as coisas ficaram complicadas. Eu queria dizer para Vee toda a verdade,

mas também era vital para a segurança dela que ela acreditasse nas mentiras que

eu estava prestes a falar. Se o Chapéu de Caubói e seus amigos estavam falando

sério sobre investigar a minha vida pessoal, mais cedo ou mais tarde eles iriam

descobrir que Vee era minha melhor amiga. Eu não podia suportar a ideia de eles

ameaçando ou interrogando ela, mas se fizessem, eu queria que cada resposta que

ela desse soasse convincente. Acima de tudo, eu queria que ela falasse para eles,

sem nenhuma hesitação, que todos os meus laços com Patch tinham sido cortados.

Eu pretendia resolver esse problema antes que saísse do controle.

— Enquanto eu estava no bar essa noite, Patch apareceu, e não foi nada bom — eu

comecei calmamente. — Ele estava... bêbado. Ele disse algumas coisas estúpidas,

eu me recusei a sair com ele, e ele ficou violento.

— Que merda — Vee murmurou baixinho.

— O segurança expulsou Patch de lá.

— Uau. Eu estou sem palavras. O que você acha de tudo isso?

Eu flexionei minhas mãos, abrindo e fechando-as no meu colo.

— Patch e eu terminamos.

— Terminaram terminaram?

— Não dá pra terminar mais que isso.

Vee se inclinou sobre o painel de controle e me deu um abraço. Ela abriu a boca,

viu minha expressão, e pensou melhor.

— Eu não vou falar, mas você sabe que eu estou pensando nisso.

Uma lágrima escorreu do meu olho. O alívio evidente de Vee só fez a mentira

parecer pior dentro de mim. Eu era uma amiga horrível. Eu sabia disso, mas eu não

sabia como ajeitar isso. Eu me recusava a colocar Vee em perigo.

— Qual a história do cara de camisa de flanela?

O que ela não sabe não pode machucá-la.

— Antes do Patch ser expulso, ele me avisou para ficar longe do cara de camisa de

flanela. Patch disse que o conhecia, e que ele era trazia problemas. Foi por isso que

eu pedi para você descobrir o nome dele. Eu vi que ele ficava me encarando, e isso

me deixou nervosa. Eu não queria que ele me seguisse até em casa, se isso era o

que ele planejava fazer, então eu decidi causar uma confusão gigantesca. Eu queria

que nós conseguíssemos sair do Devil’s Handbag sem facilitar para ele nos seguir.

Vee exalou, longo e lentamente.

— Eu acredito que você terminou com Patch. Mas eu não acredito nem por um

minuto na outra história.

Eu me encolhi.

— Vee...

Ela colocou a mão para cima.

— Eu entendo. Você tem os seus segredos, e um dia você vai me dizer o que está

acontecendo. E eu vou te dizer também. — Ela arqueou suas sobrancelhas

intencionalmente. — É isso mesmo. Você não é a única que tem segredos. Eu vou

falar quando chegar o momento certo, e eu acho que você também.

Eu a encarei. Não era assim que eu esperava que nossa conversa acabaria.

— Você tem segredos? Que segredos?

— Segredos picantes.

— Me diga!

— Olhe só para isso — Vee disse, batendo no relógio do painel. — Eu acredito que

é o seu toque de recolher.

Eu sentei de boca aberta.

— Eu não posso acreditar que você está escondendo segredos de mim.

— Eu não posso acreditar que você está sendo tão hipócrita.

— Essa conversa não acabou — eu disse, abrindo a porta relutantemente.

— Não é fácil do outro lado, né?

Eu disse boa noite para minha mãe, então fui para o quarto, me tranquei e liguei

para o Patch. Quando Vee e eu fugimos do Devil’s Handbag, a van Chevy marrom

já não estava mais estacionada no meio-fio. O meu palpite era que Patch tinha ido

embora antes da invasão surpresa dos anjos caídos, já que ele teria invadido o

clube se ele soubesse que eu estava em perigo, mas eu estava mais curiosa para

saber se ele tinha pegado o Chapéu de Caubói. Pelo que eu sabia, eles estavam

tendo uma conversa agora mesmo. Eu me perguntei se Patch estava fazendo

perguntas ou ameaças. Provavelmente ambos.

O correio de voz de Patch atendeu, e eu desliguei. Deixar uma mensagem parecia

muito arriscado. Além disso, ele veria a chamada perdida e saberia que era minha.

Eu esperava que ele ainda planejasse vir essa noite. Eu sabia que a nossa briga

desordenada tinha sido encenada, mas eu queria a garantia de que nada tinha

mudado. Eu estava agitada, e precisava saber que nós ainda estávamos no mesmo

patamar, emocionalmente, que estávamos antes da briga.

Eu liguei para Patch uma vez mais, para me certificar, então fui para cama me

sentindo inquieta.

Amanhã era terça-feira. Cheshvan começava com a ascensão da lua nova.

Com base na terrível noite de vale-tudo hoje, eu tinha a sensação de que os anjos

caídos estavam contando as horas para poderem desencadear toda sua ira.

Eu acordei com o som do assoalho rangendo. Minha visão se ajustou à escuridão, e

eu me encontrei encarando um par de pernas bastante grandes e musculosas

vestidas com calças brancas de corrida.

— Dante? — eu disse, estendendo um braço em direção ao criado-mudo,

procurando o relógio. — Uuhn. Que horas são? Que dia é hoje?

— É manhã de terça-feira — ele disse. — Você sabe o que isso significa. — Uma

bola de roupas de ginástica caiu no meu rosto. — Me encontre na entrada da

garagem da sua casa.

— Sério?

No escuro, os dentes dele brilharam com um sorriso.

— Não posso acreditar que você caiu nessa. É melhor que o seu bumbum esteja lá

fora em menos de cinco minutos.

Cinco minutos depois eu me arrastei para fora, tremendo por causa do frio de

meados de outubro. Um vento leve fez as folhas das árvores caírem e os seus

ramos rangerem. Eu estiquei as minhas pernas e pulei para cima e para baixo para

fazer o sangue fluir.

— Continue — Dante instruiu, e ele saiu correndo para a floresta.

Eu ainda não estava animada em perambular pela floresta sozinha com Dante, mas

eu cheguei à conclusão de que, se ele iria me machucar, ele tinha tido muitas

oportunidades ontem. Então eu corri atrás dele, olhando para a faixa branca aqui e

ali que me alertava sobre a presença dele. Sua visão deve ter me envergonhado,

porque enquanto eu tropeçava aqui e ali em toras, pisei em buracos naturais, e bati

minha cabeça em galhos baixos, ele percorria o terreno com uma precisão perfeita.

Toda vez que eu ouvia sua risada zombando, se divertindo, eu ficava rapidamente

de pé, determinada a empurrá-lo de uma encosta íngreme na primeira chance que

eu tivesse. Havia muitos barrancos ao redor; eu só precisava chegar perto o

suficiente dele para realizar o trabalho.

Finalmente, Dante parou, e quando eu o alcancei, ele estava estendido sobre uma

grande pedra com as mãos entrelaçadas frouxamente atrás de seu pescoço. Ele

tirou sua calça de corrida e seu casaco, ficando com um short até o joelho e uma

camiseta apertada. À exceção de um ligeiro aumento e queda de seu peito, eu

nunca poderia ter imaginado que ele tinha corrido cerca de dezesseis quilômetros

colina acima.

Eu me arrastei para a pedra e cai perto dele.

— Água — eu disse, ofegante.

Dante se levantou sobre um cotovelo e sorriu para mim.

— Não vai acontecer. Eu irei te espremer a seco. Água produz lágrimas, e lágrimas

são uma coisa que eu não suporto. E uma vez que você veja o que eu planejei, você

vai querer chorar. Para minha sorte, você não ser capaz.

Ele me pegou por debaixo das axilas e me fez ficar em pé. O amanhecer estava

apenas começando a iluminar o horizonte, colorindo o céu de um rosa gélido. Lado

a lado na pedra, nós conseguíamos ver quilômetros adiante. As árvores sempre-

verdes, abetos e cedros, espalhados como um tapete imponente em todas as

direções, rolando sobre as colinas e na bacia de uma profunda ravina que

atravessava a paisagem.

— Escolha uma — Dante instruiu.

— Escolher uma o quê?

— Uma árvore. Depois de você arrancar uma, você pode ir para casa.

Eu olhei para as árvores, com pelo menos cem anos de idade, e tão espessas

quanto três cabines telefônicas, e eu senti meu queixo cair ligeiramente.

— Dante...

— Treinamento Básico de Força. — Ele me deu um tapa de incentivo nas costas,

então se acomodou relaxadamente na pedra. — Isso vai ser melhor do que assistir

ao Today Show.

— Eu te odeio.

Ele riu.

— Ainda não, você não me odeia. Mas daqui uma hora...

E uma hora depois eu tinha utilizado cada grama de energia (e talvez a minha alma

também) para arrancar um cedro branco muito teimoso e inflexível. Além de fazê-

lo se inclinar ligeiramente, era um espécime perfeito de uma árvore batalhadora. Eu

já havia tentado puxá-la, cavá-la, chutá-la para se submeter a mim, e, inutilmente,

bater meus punhos contra ela. Dizer que a árvore tinha ganhado era um

eufemismo. E todo o tempo Dante tinha ficado sentado na pedra, bufando, rindo e

gritando observações reclamonas. Que bom que um de nós achou isso divertido.

Ele andou até mim, um leve, mas muito desagradável sorriso puxando sua boca. Ele

coçou o cotovelo.

— Bem, Comandante do Grande e Poderoso Exército Nephilim, alguma sorte?

O suor escorria como um riacho pelo meu rosto, pingando do meu nariz e queixo.

Minhas mãos estavam arranhadas, meus joelhos estavam ralados, meu tornozelo

estava torcido, e cada músculo do meu corpo gritava em agonia. Eu agarrei a frente

da camisa de Dante e usei para limpar meu rosto. E então eu assuei meu nariz nela.

Dante deu um passo para trás, com as palmas levantadas.

— Epa.

Eu apontei meu braço na direção da minha árvore escolhida.

— Eu não consigo fazer isso — admiti com um soluço. — Eu não sirvo para isso. Eu

nunca vou ser tão forte quanto você, ou qualquer outro Nephil. — Eu senti meu

lábio tremer com decepção e vergonha.

Sua expressão suavizou.

— Respire fundo, Nora. Eu sabia que você não seria capaz de fazer isso. Esse era o

objetivo. Eu queria te dar um desafio impossível para que depois, quando você

finalmente puder fazer isso, você olhar para trás e ver o quão longe você chegou.

Eu o encarei, sentindo meu temperamento ferver.

— O quê? — ele perguntou.

— O quê? O quê? Você está louco? Eu tenho escola hoje. Eu tenho que estudar

para uma prova! E eu pensei que estava desistindo de estudar por algo que valesse

a pena, mas agora eu descubro que tudo isso foi apenas para provar seu ponto?

Bem, aqui estou eu mostrando um ponto! Eu estou jogando a toalha. Pra mim